sábado, 25 de maio de 2024

Nem a tragédia está imune ao racismo

Uma das marcas do Brasil já foi cantada de diferentes formas, mas ficou muito conhecida pelo verso de Jorge Ben: "um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza".

A benção, em questão, pode ter diferentes sentidos, mas um deles se deve ao fato do Brasil não ser acometido por catástrofes naturais de grande envergadura como terremotos, maremotos, erupções vulcânica, tufões e furacões. É um país de natureza bonita, diversificada e tranquila.

Essa forma de entender o Brasil amplia ainda mais o sentimento de horror e desamparo frente à tragédia que acometeu o estado do Rio Grande Sul nas últimas semanas. A maior tragédia climática do RS, que conseguiu relativizar o estrago causado pela enchente de 1941 em Porto Alegre, quando 24 dias de chuva torrencial elevaram o nível do lago Guaíba a 4,71 metros, deixando boa parte da região central da cidade inundada, afetando diretamente a vida deum quarto da população da cidade.

No entanto, é inegável que a atual tragédia é mais complexa que aquela de 80 anos atrás. Conforme noticiado pelo The Intercept, parte dos estragos poderia ter sido evitada se o poder público tivesse destinado a verba existente para investimento, atualização e manutenção das estruturas que poderiam prevenir as enchentes.

Outro ponto fundamental foi a pouca importância para estudos científicos que apontavam a possibilidade de eventos dessa envergadura no estado. Mas há uma preocupação mundial com a situação do Rio Grande do Sul, já que ela está sendo lida como uma tragédia climática cujas causas estão diretamente ligadas ao aquecimento do planeta Terra, que está se tornando uma questão incontornável.

Junto com a implementação efetiva de políticas públicas que previnam esse tipo de situação, precisamos enfrentar com urgência um debate sobre como o capitalismo já se mostrou um sistema insustentável em longo prazo, que irá consumir todas nossas reservas naturais. E é preciso dizer que o capitalismo não é um ente sobre-humano que governa nossas vidas. O capitalismo somos nós: nosso padrão de consumo desenfreado, nossa produção exacerbada de lixo, a emissão estratosférica de carbono. E, no Brasil, o capitalismo também é o agronegócio e sua dinâmica de destruição de matas e ecossistemas inteiros, em nome de uma produção gigantesca de alimentos em um país em que quase 10% da população passa fome.

Então, compreender as razões que estão por trás da tragédia do Rio Grande Sul também significa olhar para nossa história num arco temporal maior, entendendo, por exemplo, porque o Brasil nunca enfrentou a reforma agrária, se mantendo desde os tempos coloniais como uma terra de poucos latifundiários. E, aqui, é preciso reafirmar que o governo estatual estava tentando alterar aproximadamente 500 pontos do código florestal do Rio Grande do Sul para privilegiar os interesses de setores do agronegócio.

•        Ignorância caminha de mãos dadas com o racismo

Acontece, que parece muito mais fácil suspender todo esse debate e reduzir o que aconteceu à ira de Deus. Esse foi o argumento utilizado por uma influencer cristã. A ira de Deus por conta da grande quantidade de terreiros de candomblé existentes no Rio Grande do Sul. A ignorância que caminha de mãos dadas com o racismo mostrou sua cara feia mais uma vez, num combo perverso de racismo, negacionismo, xenofobia e intolerância religiosa. Para setores ultraconservadores, o Brasil não parece ser mais um país abençoado por Deus.

Ainda que devam existir aqueles que concordem que esse combo, muita gente criticou a tal influencer, a ponto dela decidir fechar suas redes para o público mais amplo.

Só que o racismo tem várias formas de se expressar.

Na última semana, o governador Eduardo Leite disse que o "poder público não tem estrutura suficiente para atender todas as pontas". Aqui ele não estava tratando das dificuldades gerais que o poder público está enfrentando para tentar controlar as consequências da tragédia. Essa fala tinha endereço: responder às suplicas das comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul.

O estado tem 170 comunidades quilombolas e pelo menos 15 delas ficaram completamente isoladas devido às enchentes.Todas as cerca de 6,8 mil famílias quilombolas do Rio Grande do Sul foram afetadas. Se recusar a cumprir as funções de Estado numa situação dessas, é corroborar que existe uma hierarquia entre quem deve ser assistido pelo poder público. E, como não poderia deixar de ser, essa hierarquia também obedece a uma determinação racial.

Infelizmente, no caso do Rio Grande do Sul, não podemos culpas apenas as mudanças climáticas. É necessário entender como os governos do estado têm agido, quais são os interesses e as pessoas que são privilegiadas tanto na implementação (ou não) de políticas públicas, quanto na hora de decidir que "ponta" o estado vai abraçar em ações de salvamento. Porque, como estamos vendo, nem mesmo numa tragédia dessa natureza, o racismo fica imune.

 

¨      Desmatamento, um agravante das enchentes históricas no Rio Grande do Sul

O desmatamento, em grande parte relacionado ao cultivo da soja, contribuiu para a gravidade das enchentes devastadoras no Rio Grande do Sul, pois a vegetação nativa desempenha um papel-chave na retenção da água, coincidem especialistas, que defendem a recomposição da mata.

O estado gaúcho viveu nas últimas semanas um desastre climático inédito, com áreas urbanas e rurais devastadas por rios que transbordaram por causa dos grandes volumes de chuva.

Foi o quarto e o pior evento climático extremo registrado na região em menos de um ano, um fenômeno que cientistas relacionam ao aquecimento global, mas também ao desmatamento praticado nas últimas décadas na região.

"Tem um fenômeno global climático e um fenômeno regional, que é a perda da vegetação nativa. E isso aumentou a intensidade das enchentes", explica à AFP o biólogo Eduardo Vélez, do MapBiomas, consórcio climático de ONGs e universidades brasileiras.

Entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul, um motor da economia nacional graças à atividade agropecuária, perdeu 3,6 milhões de hectares de vegetação nativa, cerca de 22%, segundo um estudo da rede chefiado por Vélez.

A vegetação, majoritariamente de arbustos, perdeu terreno para áreas de cultivo, especialmente de soja, cereal do qual o Brasil é o primeiro produtor e exportador mundial.

Também se desmatou para estender os campos de arroz ou a silvicultura, baseada na monocultura de árvores como pinheiros e eucaliptos para exploração econômica, aponta o estudo publicado este mês com base em dados compilados por satélite.

- Caminho livre para a água -

Esta perda fez que, com as chuvas intensas, a água corresse mais livremente porque a mata nativa "assegura sua infiltração no solo" e evita que haja um acúmulo na superfície, diz Jaqueline Sordi, bióloga e jornalista especializada em mudanças climáticas radicada na região.

Além disso, a vegetação atua como uma camada protetora do solo, ao impedir que a água o arraste.

A cor amarronzada da água que inundou 90% dos municípios gaúchos, inclusive a capital, Porto Alegre, evidencia "as toneladas e toneladas de solo que foram perdidas", explica Vélez.

Esta lama se acumula agora nos leitos dos rios, somando-se à terra já depositada com as enchentes dos últimos tempos.

Isto, por sua vez, faz com que os cursos d'água percam profundidade e, consequentemente, que as cheias ocorram com mais facilidade quando chove forte, em um ciclo vicioso.

- Reflorestar -

Recuperar a vegetação nativa é chave para conter as novas inundações, que vão se agravar e tornar mais frequentes com as mudanças climáticas, destacam os especialistas.

"Além das medidas de deslocação da população" que vive em áreas de risco e da "reconstrução da infraestrutura, é muito importante que se tenha políticas de recomposição da vegetação nativa", afirma Velez.

O Instituto Escolhas, especializado em desenvolvimento sustentável, estimou, em um estudo do ano passado, que o Rio Grande do Sul deveria reflorestar 1,16 milhão de hectares de forma "urgente" para que a floresta desempenhe suas funções ambientais.

Para Vélez, não existe atualmente nenhuma iniciativa "de fôlego" neste sentido no Rio Grande do Sul, que em 2023 assinou com outros estados do sul e do sudeste do Brasil um pacto para reflorestar 90 mil hectares de vegetação até 2026.

- 'Abrir os olhos' -

Em nível federal, afirma Sordi, a situação piorou durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), grande aliado dos interesses do agronegócio e cético das mudanças climáticas.

Neste período, "houve uma facilidade de licenciamentos e o Rio Grande do Sul foi protagonista. Criou-se uma espécie de licenciamento automático" de desmatamento para cultivos, "em que não se precisa nem de estudos independentes" sobre o meio ambiente, explica.

O vereador Sandro Fantinel (PL), de Caxias do Sul, gerou polêmica na semana passada ao defender a derrubada de árvores "cinco metros para cada lado" das principais rodovias do interior do estado porque, segundo ele, com as raízes encharcadas e seu peso, provocam desmoronamentos.

Para Sordi, desastres como o atual têm o potencial de "abrir os olhos" da sociedade para a ciência e seus "sinais". "Às vezes a gente só presta atenção quando o problema chega".

•        Governo Federal aprova 318 planos de trabalho para reconstruir municípios gaúchos

O governo federal aprovou até essa terça-feira (21), por meio do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR), 318 planos de trabalho dos municípios para resposta, restabelecimento e reconstrução das localidades afetadas pelas fortes chuvas de abril e maio no Rio Grande do Sul. Com isso, R$ 233 milhões estão sendo repassados pela União para as ações de Defesa Civil. Outros planos de trabalho estão em análise pela pasta.

Os números foram confirmados nessa terça-feira (21), em Porto Alegre (RS), pelo ministro da Integração e do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, em entrevista coletiva sobre as últimas ações do governo para ajuda ao estado.

“Tudo que o município necessitar, o governo do presidente Lula — sob a liderança do ministro Pimenta  — irá apoiar. Quantos milhões [de reais] foram necessários para ajudar a limpar, destinar o entulho, restabelecer a vida das pessoas, identificar o que precisa reconstruir; e para ser feito um bom plano de trabalho por parte da prefeitura, do governo do estado e até para as demandas da gente [governo federal].”

•        Fracionamento da limpeza

Waldez Góes orientou as prefeituras gaúchas a não aguardarem a água baixar totalmente para o município enviar ao ministério o plano de limpeza, pois a ação pode ser fracionada, começando por bairros já secos. “Um bairro que já está em condições de limpar, [a prefeitura] pode fazer o plano de trabalho e o governo federal banca a limpeza. Não esperem a cidade toda ficar seca para fazer um plano de trabalho único. Não é recomendável.”

“Quanto mais rápido a gente for limpando cada área da cidade, fazendo o bota-fora, levando para o lugar devido o entulho que se perdeu, será melhor até para os planos de trabalho de retenção [de águas]”.

•        Assessoria técnica

O ministro Waldez Góes informou que a pasta está convocando especialistas em planos de reconstrução de cidades e restabelecimento de serviços, treinados pela Secretaria de Defesa Civil Nacional, para reforçar a equipe que tem lidado com as prefeituras gaúchas.

“Há muitos cálculos de engenharia necessários, entramos em outro nível de informação. Por isso, quanto mais próximos nós tivermos dos prefeitos para elaboração de planos de trabalho bem estruturados, mais rápido a gente pode aprová-los sumariamente, evitando diligências ou que estejam fora da realidade”, o que evitaria a reprovação do plano ou atrasos na análise, afirmou Waldez.

•        Balanço

De acordo com boletim atualizado pela Defesa Civil do Rio Grande do Sul, às 18h de ontem, o número de municípios afetados chegava a 467. São 71,5 mil pessoas em abrigos, 581,6 mil desalojados e 2,34 milhões de pessoas afetadas. As consequências dos eventos climáticos extremos deixaram 161 mortos. Há 806 feridos e 85 desaparecidos. O número de pessoas resgatadas supera 82,6 mil, e o número de animais resgatados é de 12,3 mil.

•        Governo promete novo sistema de alerta de desastres em celulares para dezembro

 O novo Sistema de Alerta de Desastres para celulares deve chegar aos estados das regiões Sul e Sudeste em dezembro. A promessa foi feita nesta quarta-feira (22) pelo superintendente de Controle de Obrigações da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), Gustavo Borges, em entrevista à Globo News e à TV Globo, e confirmada pela Folha.

Considerado mais eficiente do que os avisos usados atualmente pelos órgãos de Defesa Civil em estados e municípios, o novo sistema emite alerta sonoro e traz mensagens de texto que se sobrepõem a qualquer outra informação nas telas de celular.

Ele é emitido instantaneamente a todos os celulares que estejam em áreas atingidas pelo risco de um desastre, como deslizamento ou inundação causada pela chuva, e não é necessário cadastrar os destinatários com base no CEP.

Ainda não há previsão de ampliação do sistema de alertas para as demais regiões do país.

Como mostrou a coluna Painel S.A. da Folha, o sistema já está pronto e foi testado pelas operadoras de telefonia. No início deste mês, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional afirmou que a plataforma de alertas estava em fase de ajustes e finalização.

A Anatel afirmou, em nota, que o lançamento do sistema para a população agora "requer prévia comunicação para com a população nos municípios de testes e treinamento com as defesas civis municipais". Em março do ano passado, agência publicou uma nota oficial em que estipulava o prazo de implementação para dezembro do ano passado.

Esse prazo, porém, era apenas "para a implementação, pelas prestadoras, nas redes de telefonia", afirmou nesta quarta a Anatel.

A implantação da nova tecnologia, chamada de cellbroadcast, partiu de uma determinação da própria Anatel às operadoras. Esse tema é coordenado pela agência em um grupo de trabalho que reúne as empresas Claro, Tim, Vivo, Algar, Sercomtel, o sindicato das empresas de telefonia e órgãos da Defesa Civil.

A ideia é que as Defesas Civis municipais operem o sistema de alertas. Enquanto a tecnologia não for implementada totalmente nas regiões Sul e Sudeste, ele será testado em dez municípios onde deslizamentos e enchentes são frequentes.

 

Fonte: Por Ynaê Lopes dos Santos, para Deutsche Welle/ AFP/IstoÉ/FolhaPress

 

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