Nem a tragédia está imune ao racismo
Uma das marcas do
Brasil já foi cantada de diferentes formas, mas ficou muito conhecida pelo
verso de Jorge Ben: "um país tropical, abençoado por Deus e bonito por
natureza".
A benção, em questão,
pode ter diferentes sentidos, mas um deles se deve ao fato do Brasil não ser
acometido por catástrofes naturais de grande envergadura como terremotos,
maremotos, erupções vulcânica, tufões e furacões. É um país de natureza bonita,
diversificada e tranquila.
Essa forma de entender
o Brasil amplia ainda mais o sentimento de horror e desamparo frente à tragédia
que acometeu o estado do Rio Grande Sul nas últimas semanas. A maior tragédia
climática do RS, que conseguiu relativizar o estrago causado pela enchente de
1941 em Porto Alegre, quando 24 dias de chuva torrencial elevaram o nível do
lago Guaíba a 4,71 metros, deixando boa parte da região central da cidade
inundada, afetando diretamente a vida deum quarto da população da cidade.
No entanto, é inegável
que a atual tragédia é mais complexa que aquela de 80 anos atrás. Conforme
noticiado pelo The Intercept, parte dos estragos poderia ter sido evitada se o
poder público tivesse destinado a verba existente para investimento, atualização
e manutenção das estruturas que poderiam prevenir as enchentes.
Outro ponto
fundamental foi a pouca importância para estudos científicos que apontavam a
possibilidade de eventos dessa envergadura no estado. Mas há uma preocupação
mundial com a situação do Rio Grande do Sul, já que ela está sendo lida como
uma tragédia climática cujas causas estão diretamente ligadas ao aquecimento do
planeta Terra, que está se tornando uma questão incontornável.
Junto com a
implementação efetiva de políticas públicas que previnam esse tipo de situação,
precisamos enfrentar com urgência um debate sobre como o capitalismo já se
mostrou um sistema insustentável em longo prazo, que irá consumir todas nossas
reservas naturais. E é preciso dizer que o capitalismo não é um ente
sobre-humano que governa nossas vidas. O capitalismo somos nós: nosso padrão de
consumo desenfreado, nossa produção exacerbada de lixo, a emissão
estratosférica de carbono. E, no Brasil, o capitalismo também é o agronegócio e
sua dinâmica de destruição de matas e ecossistemas inteiros, em nome de uma
produção gigantesca de alimentos em um país em que quase 10% da população passa
fome.
Então, compreender as
razões que estão por trás da tragédia do Rio Grande Sul também significa olhar
para nossa história num arco temporal maior, entendendo, por exemplo, porque o
Brasil nunca enfrentou a reforma agrária, se mantendo desde os tempos coloniais
como uma terra de poucos latifundiários. E, aqui, é preciso reafirmar que o
governo estatual estava tentando alterar aproximadamente 500 pontos do código
florestal do Rio Grande do Sul para privilegiar os interesses de setores do
agronegócio.
• Ignorância caminha de mãos dadas com o
racismo
Acontece, que parece
muito mais fácil suspender todo esse debate e reduzir o que aconteceu à ira de
Deus. Esse foi o argumento utilizado por uma influencer cristã. A ira de Deus
por conta da grande quantidade de terreiros de candomblé existentes no Rio Grande
do Sul. A ignorância que caminha de mãos dadas com o racismo mostrou sua cara
feia mais uma vez, num combo perverso de racismo, negacionismo, xenofobia e
intolerância religiosa. Para setores ultraconservadores, o Brasil não parece
ser mais um país abençoado por Deus.
Ainda que devam
existir aqueles que concordem que esse combo, muita gente criticou a tal
influencer, a ponto dela decidir fechar suas redes para o público mais amplo.
Só que o racismo tem
várias formas de se expressar.
Na última semana, o
governador Eduardo Leite disse que o "poder público não tem estrutura
suficiente para atender todas as pontas". Aqui ele não estava tratando das
dificuldades gerais que o poder público está enfrentando para tentar controlar as
consequências da tragédia. Essa fala tinha endereço: responder às suplicas das
comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul.
O estado tem 170
comunidades quilombolas e pelo menos 15 delas ficaram completamente isoladas
devido às enchentes.Todas as cerca de 6,8 mil famílias quilombolas do Rio
Grande do Sul foram afetadas. Se recusar a cumprir as funções de Estado numa
situação dessas, é corroborar que existe uma hierarquia entre quem deve ser
assistido pelo poder público. E, como não poderia deixar de ser, essa
hierarquia também obedece a uma determinação racial.
Infelizmente, no caso
do Rio Grande do Sul, não podemos culpas apenas as mudanças climáticas. É
necessário entender como os governos do estado têm agido, quais são os
interesses e as pessoas que são privilegiadas tanto na implementação (ou não)
de políticas públicas, quanto na hora de decidir que "ponta" o estado
vai abraçar em ações de salvamento. Porque, como estamos vendo, nem mesmo numa
tragédia dessa natureza, o racismo fica imune.
¨ Desmatamento, um agravante das enchentes históricas no Rio
Grande do Sul
O desmatamento, em
grande parte relacionado ao cultivo da soja, contribuiu para a gravidade das
enchentes devastadoras no Rio Grande do Sul, pois a vegetação nativa desempenha
um papel-chave na retenção da água, coincidem especialistas, que defendem a recomposição
da mata.
O estado gaúcho viveu
nas últimas semanas um desastre climático inédito, com áreas urbanas e rurais
devastadas por rios que transbordaram por causa dos grandes volumes de chuva.
Foi o quarto e o pior
evento climático extremo registrado na região em menos de um ano, um fenômeno
que cientistas relacionam ao aquecimento global, mas também ao desmatamento
praticado nas últimas décadas na região.
"Tem um fenômeno
global climático e um fenômeno regional, que é a perda da vegetação nativa. E
isso aumentou a intensidade das enchentes", explica à AFP o biólogo
Eduardo Vélez, do MapBiomas, consórcio climático de ONGs e universidades
brasileiras.
Entre 1985 e 2022, o
Rio Grande do Sul, um motor da economia nacional graças à atividade
agropecuária, perdeu 3,6 milhões de hectares de vegetação nativa, cerca de 22%,
segundo um estudo da rede chefiado por Vélez.
A vegetação,
majoritariamente de arbustos, perdeu terreno para áreas de cultivo,
especialmente de soja, cereal do qual o Brasil é o primeiro produtor e
exportador mundial.
Também se desmatou
para estender os campos de arroz ou a silvicultura, baseada na monocultura de
árvores como pinheiros e eucaliptos para exploração econômica, aponta o estudo
publicado este mês com base em dados compilados por satélite.
- Caminho livre para a
água -
Esta perda fez que,
com as chuvas intensas, a água corresse mais livremente porque a mata nativa
"assegura sua infiltração no solo" e evita que haja um acúmulo na
superfície, diz Jaqueline Sordi, bióloga e jornalista especializada em mudanças
climáticas radicada na região.
Além disso, a
vegetação atua como uma camada protetora do solo, ao impedir que a água o
arraste.
A cor amarronzada da
água que inundou 90% dos municípios gaúchos, inclusive a capital, Porto Alegre,
evidencia "as toneladas e toneladas de solo que foram perdidas",
explica Vélez.
Esta lama se acumula
agora nos leitos dos rios, somando-se à terra já depositada com as enchentes
dos últimos tempos.
Isto, por sua vez, faz
com que os cursos d'água percam profundidade e, consequentemente, que as cheias
ocorram com mais facilidade quando chove forte, em um ciclo vicioso.
- Reflorestar -
Recuperar a vegetação
nativa é chave para conter as novas inundações, que vão se agravar e tornar
mais frequentes com as mudanças climáticas, destacam os especialistas.
"Além das medidas
de deslocação da população" que vive em áreas de risco e da
"reconstrução da infraestrutura, é muito importante que se tenha políticas
de recomposição da vegetação nativa", afirma Velez.
O Instituto Escolhas,
especializado em desenvolvimento sustentável, estimou, em um estudo do ano
passado, que o Rio Grande do Sul deveria reflorestar 1,16 milhão de hectares de
forma "urgente" para que a floresta desempenhe suas funções ambientais.
Para Vélez, não existe
atualmente nenhuma iniciativa "de fôlego" neste sentido no Rio Grande
do Sul, que em 2023 assinou com outros estados do sul e do sudeste do Brasil um
pacto para reflorestar 90 mil hectares de vegetação até 2026.
- 'Abrir os olhos' -
Em nível federal,
afirma Sordi, a situação piorou durante o governo do ex-presidente Jair
Bolsonaro (2019-2022), grande aliado dos interesses do agronegócio e cético das
mudanças climáticas.
Neste período,
"houve uma facilidade de licenciamentos e o Rio Grande do Sul foi
protagonista. Criou-se uma espécie de licenciamento automático" de
desmatamento para cultivos, "em que não se precisa nem de estudos
independentes" sobre o meio ambiente, explica.
O vereador Sandro
Fantinel (PL), de Caxias do Sul, gerou polêmica na semana passada ao defender a
derrubada de árvores "cinco metros para cada lado" das principais
rodovias do interior do estado porque, segundo ele, com as raízes encharcadas e
seu peso, provocam desmoronamentos.
Para Sordi, desastres
como o atual têm o potencial de "abrir os olhos" da sociedade para a
ciência e seus "sinais". "Às vezes a gente só presta atenção
quando o problema chega".
• Governo Federal aprova 318 planos de
trabalho para reconstruir municípios gaúchos
O governo federal
aprovou até essa terça-feira (21), por meio do Ministério da Integração e
Desenvolvimento Regional (MIDR), 318 planos de trabalho dos municípios para
resposta, restabelecimento e reconstrução das localidades afetadas pelas fortes
chuvas de abril e maio no Rio Grande do Sul. Com isso, R$ 233 milhões estão
sendo repassados pela União para as ações de Defesa Civil. Outros planos de
trabalho estão em análise pela pasta.
Os números foram
confirmados nessa terça-feira (21), em Porto Alegre (RS), pelo ministro da
Integração e do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, em entrevista coletiva
sobre as últimas ações do governo para ajuda ao estado.
“Tudo que o município
necessitar, o governo do presidente Lula — sob a liderança do ministro
Pimenta — irá apoiar. Quantos milhões
[de reais] foram necessários para ajudar a limpar, destinar o entulho,
restabelecer a vida das pessoas, identificar o que precisa reconstruir; e para
ser feito um bom plano de trabalho por parte da prefeitura, do governo do
estado e até para as demandas da gente [governo federal].”
• Fracionamento da limpeza
Waldez Góes orientou
as prefeituras gaúchas a não aguardarem a água baixar totalmente para o
município enviar ao ministério o plano de limpeza, pois a ação pode ser
fracionada, começando por bairros já secos. “Um bairro que já está em condições
de limpar, [a prefeitura] pode fazer o plano de trabalho e o governo federal
banca a limpeza. Não esperem a cidade toda ficar seca para fazer um plano de
trabalho único. Não é recomendável.”
“Quanto mais rápido a
gente for limpando cada área da cidade, fazendo o bota-fora, levando para o
lugar devido o entulho que se perdeu, será melhor até para os planos de
trabalho de retenção [de águas]”.
• Assessoria técnica
O ministro Waldez Góes
informou que a pasta está convocando especialistas em planos de reconstrução de
cidades e restabelecimento de serviços, treinados pela Secretaria de Defesa
Civil Nacional, para reforçar a equipe que tem lidado com as prefeituras gaúchas.
“Há muitos cálculos de
engenharia necessários, entramos em outro nível de informação. Por isso, quanto
mais próximos nós tivermos dos prefeitos para elaboração de planos de trabalho
bem estruturados, mais rápido a gente pode aprová-los sumariamente, evitando
diligências ou que estejam fora da realidade”, o que evitaria a reprovação do
plano ou atrasos na análise, afirmou Waldez.
• Balanço
De acordo com boletim
atualizado pela Defesa Civil do Rio Grande do Sul, às 18h de ontem, o número de
municípios afetados chegava a 467. São 71,5 mil pessoas em abrigos, 581,6 mil
desalojados e 2,34 milhões de pessoas afetadas. As consequências dos eventos
climáticos extremos deixaram 161 mortos. Há 806 feridos e 85 desaparecidos. O
número de pessoas resgatadas supera 82,6 mil, e o número de animais resgatados
é de 12,3 mil.
• Governo promete novo sistema de alerta
de desastres em celulares para dezembro
O novo Sistema de Alerta de Desastres para
celulares deve chegar aos estados das regiões Sul e Sudeste em dezembro. A
promessa foi feita nesta quarta-feira (22) pelo superintendente de Controle de
Obrigações da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), Gustavo Borges, em
entrevista à Globo News e à TV Globo, e confirmada pela Folha.
Considerado mais
eficiente do que os avisos usados atualmente pelos órgãos de Defesa Civil em
estados e municípios, o novo sistema emite alerta sonoro e traz mensagens de
texto que se sobrepõem a qualquer outra informação nas telas de celular.
Ele é emitido
instantaneamente a todos os celulares que estejam em áreas atingidas pelo risco
de um desastre, como deslizamento ou inundação causada pela chuva, e não é
necessário cadastrar os destinatários com base no CEP.
Ainda não há previsão
de ampliação do sistema de alertas para as demais regiões do país.
Como mostrou a coluna
Painel S.A. da Folha, o sistema já está pronto e foi testado pelas operadoras
de telefonia. No início deste mês, o Ministério da Integração e do
Desenvolvimento Regional afirmou que a plataforma de alertas estava em fase de
ajustes e finalização.
A Anatel afirmou, em
nota, que o lançamento do sistema para a população agora "requer prévia
comunicação para com a população nos municípios de testes e treinamento com as
defesas civis municipais". Em março do ano passado, agência publicou uma
nota oficial em que estipulava o prazo de implementação para dezembro do ano
passado.
Esse prazo, porém, era
apenas "para a implementação, pelas prestadoras, nas redes de
telefonia", afirmou nesta quarta a Anatel.
A implantação da nova
tecnologia, chamada de cellbroadcast, partiu de uma determinação da própria
Anatel às operadoras. Esse tema é coordenado pela agência em um grupo de
trabalho que reúne as empresas Claro, Tim, Vivo, Algar, Sercomtel, o sindicato
das empresas de telefonia e órgãos da Defesa Civil.
A ideia é que as
Defesas Civis municipais operem o sistema de alertas. Enquanto a tecnologia não
for implementada totalmente nas regiões Sul e Sudeste, ele será testado em dez
municípios onde deslizamentos e enchentes são frequentes.
Fonte: Por Ynaê Lopes
dos Santos, para Deutsche Welle/ AFP/IstoÉ/FolhaPress
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