Muralha Paulista: Tarcísio quer impor gigantesco sistema de vigilância –
e contrata corporação ligada ao bolsonarismo
Nas últimas semanas,
uma série de reportagens tem sido publicada acerca da proposta do governo do
estado de São Paulo para o programa denominado Muralha Paulista, um projeto
high-tech de segurança pública que promete reduzir os índices de criminalidade
nas cidades paulistas. Em parceria com uma empresa militar estrangeira, a
gestão Tarcísio tem articulado uma megaestrutura de espionagem em massa da
população do estado, ignorando legislações sobre proteção de dados e direitos
constitucionais. Além disso, está priorizando uma proposta de alto custo,
enquanto faltam embasamentos sobre a eficácia e o custo-benefício dessas
tecnologias para a segurança pública.
Um marco importante da
gestão Tarcísio na segurança pública tem sido as taxas de letalidade policial,
que vem estabelecendo novos recordes. Em apenas um ano, mortes causadas por
policiais militares cresceram 138% no estado. Uma iniciativa que também é digna
de atenção, com potencial de atentar contra direitos civis e que tem tudo para
perdurar durante governos futuros, é o Muralha Paulista, que conta com um
esquema de vigilância integrada, captação de dados, imagens e compartilhamento
das informações. O programa é operado essencialmente por meio de centros de
comando e controle herdados da estratégia do Exército para o esquema de
segurança de grandes eventos internacionais que ocorreram no país, como as
Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol.
Para o Muralha
Paulista, o governo vem somando esforços com uma empresa árabe de defesa e
segurança, a Edge Group, representada no Brasil por Marcos Degaut,
ex-secretário do Ministério da Defesa no governo de Jair Bolsonaro. Desde que
chegou ao Brasil, a gigante de defesa já comprou duas empresas estratégicas
brasileiras, a Siatt, fabricante de mísseis, e a Condor, fabricante de
armamento não letal. Em seu amplo leque de atuação, a Edge também está
associada a empresas que fornecem softwares de espionagem de celulares. Com um
eufemismo corporativo para evitar conotações pejorativas aos serviços que
fornece, é mais comum que se encontre termos como “equipamentos de
monitoramento“ ou, para inglês ver, equipamentos de surveillance.
Estas estruturas, bem
como sua aquisição e operação, são de alto custo. Com foco principal em
tecnologias de reconhecimento facial, elas requerem câmeras de alta resolução
espalhadas pelas cidades e softwares avançados de leitura automatizada de
imagens. Para garantir a empreitada, a Edge e o governo apostam no projeto
batizado de Bola de Cristal. É notável um apelo místico, que seduz governantes
(e até mesmo populações) com a promessa de soluções mágicas para problemas
sociais complexos. A ideia de Bola de Cristal é a ideia de que é possível
prever crimes antes que eles ocorram, semelhante ao roteiro do filme Minority
Report e que, na realidade, se manifesta como perfilamento racial
potencializado à era do algoritmo.
A proposta da gestão
Tarcísio, com o apoio da Edge, se apoia em um conjunto de palavras-chave como
“melhor alocação de recursos”, “estruturação de dados” ou “integração de
soluções”, uma retórica apelativa que cria um véu de um posicionamento técnico
e objetivo de seu escopo, algo comum nas tecnopolíticas. O que falta ser
evidenciado é o seu conteúdo, e como essa proposta é uma solução embasada e de
longo prazo para a segurança pública.
Perguntas importantes
a serem colocadas são: quais outras respostas estão sendo negligenciadas para
dar lugar a um programa de alto custo e com falta de estudos que comprovem sua
eficácia como política pública? O foco no esquema de mega vigilância da população
se dá em detrimento de quais outras respostas que um estado pode dar para
promover segurança pública?
Com uma
operacionalização que exige altos investimentos, é de se perguntar quais outras
escolhas o governo está deixando de considerar. Ainda mais quando se trata de
um projeto controverso que envolve a vigilância de toda a população paulistana
por uma variedade de dispositivos. Um sistema C4ISR, como aquele oferecido pela
Edge em parceria com o governo estadual, vai além da simples captação de
imagens. Ele rapidamente amplia sua coleta para incluir uma vasta gama de
fluxos informacionais deixados pelas pessoas em seus ambientes privados e
públicos. Hoje em dia, hábitos e localizações são informações facilmente
obtidas, representando rastros que podem ser captados sem o consentimento ou
conhecimento das pessoas. A partir desse universo de dados captados e processados
que se determina o padrão de normalidade ou de ameaça que são infligidos aos
cidadãos.
O que a Edge Group,
está vendendo para o governo do estado é uma solução criada para contextos de
conflito armado internacional (os sistemas C4ISR), de guerra, de ambientes
altamente militarizados. O que está sendo feito é uma transposição dessa
concepção para uma política de segurança pública. Guerra e segurança pública
são campos diferentes, que têm raízes diferentes e não podem contar com as
mesmas soluções. Quem pensa segurança pública como guerra não pensa em soluções
de longo prazo, pensa em violação de direitos civis como emergência em tempos
de exceção.
O governo do estado
inicia cometendo ilegalidades já na apresentação desse sistema a grupos de
interesse, ao apresentar seu aparato de espionagem em tempo real para população
civil, burlando a legislação vigente sobre proteção de dados e outros direitos constitucionais.
Conforme evidenciado
por notícias veiculadas, a proposta do governo do estado de SP é reunir imagens
captadas pelas câmeras de condomínios, de comércios, empresas de transporte
público, hospitais e centros de saúde, espaços de lazer e mais. Em última consequência,
qualquer infraestrutura da cidade é uma infraestrutura de vigilância em
potencial.
Aqui, não há
preocupação com a necessidade de proteger direitos civis e são criadas as bases
para espionagem em massa da população, com o auxílio de empresas privadas
estrangeiras.
Os limites dessa
atuação e da responsabilização não podem ser deixados nas mãos das próprias
empresas, que muitas vezes regulam suas próprias atividades, como é comum entre
empresas de inteligência artificial e outras Big Techs. Essa fiscalização
também não pode ficar apenas a cargo das entidades policiais, que não estão
imunes de corrupção. É essencial que esses limites sejam estabelecidos em um
ambiente democrático.
Se há potencial para
melhorar a segurança pública, mas também um potencial para espionagem em massa
da população, os governos devem se envolver ativamente na definição desses
limites e garantir o direito da sociedade à transparência. Ao mesmo tempo, as empresas
devem ser responsabilizadas por suas atividades que possam violar os direitos
civis. Afinal, quando falamos de tecnologias com potencial para melhorar a
segurança e, ao mesmo tempo, para infringir direitos civis, é crucial que haja
controle, transparência, debate público e accountability.
Ou é isso, ou
continuamos avançando em direção a distopias em que um pequeno grupo de
empresas e governantes exerce um poder autoritário sobre as populações através
de sistemas de vigilância e dispositivos tecnológicos.
Fonte: Por Mariana
Braghini, em Outras Palavras
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