Orçamento contra desastres naturais no RS é
só 9% do anunciado por governo Leite, diz oposição
POUCOS DIAS APÓS o
início das chuvas que devastaram boa parte do Rio Grande do Sul, o governo do
estado informou ter R$ 117 milhões reservados para projetos relacionados a
desastres naturais em 2024. Uma análise do orçamento para políticas de
prevenção da Defesa Civil, porém, revela que o valor alocado para esse tipo de
ação é bem menor: R$ 10,75 milhões – apenas 9% do anunciado.
Desse total, apenas R$
640 mil foram de fato gastos até o início de maio, segundo levantamento
realizado pelo gabinete da deputada estadual Luciana Genro (Psol), que faz
oposição ao governador Eduardo Leite (PSDB) no estado.
Tanto o valor
reservado quanto o de fato investido são “irrisórios” frente às necessidades de
prevenção do estado, avalia o urbanista Roberto Andrés, professor da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em entrevista ao
jornal Folha de S.Paulo, Leite afirmou que estudos indicavam a possibilidade de
haver uma elevação no nível das chuvas que poderia causar grandes enchentes no
estado, mas que não investiu mais recursos na prevenção porque “o governo também
vive outras agendas” e que a pauta “que se impunha era a questão fiscal”.
Além das fortes chuvas
ocorridas no ano passado, que deixaram 75 mortos, o relatório do Painel
Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) e uma análise recente do
Instituto Nacional de Meteorologia (a Normal Climatológica) já tinham apontado
o aumento de precipitações extremas no Sul do país, reforçando a necessidade de
políticas de prevenção.
“Fica muito nítido que
o desastre não é natural, ele é político e tem uma relação direta com o que é
feito e o que não é feito pelos governantes”, afirma Andrés, ressaltando que o
estado tinha condições de se preparar melhor.
Procurado pela
Repórter Brasil, o governo do Estado afirmou que os R$ 117 milhões anunciados
contemplam diversas ações relacionadas a desastres climáticos. A lista
apresentada, porém, inclui mais de um valor não relacionado à prevenção, como
R$ 31 milhões destinados ao programa Irriga Mais RS, que promove a implantação,
ampliação e adequação de sistemas de irrigação, e R$ 15,3 milhões para o
programa Volta por Cima e aluguel social.
• Apenas R$ 640 mil em quatro meses
Os R$ 640 mil gastos
até o fim de abril foram para a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do
Estado do Rio Grande do Sul. Detalhes dos contratos não estão acessíveis devido
à inundação das instalações da Procergs, que cuida do processamento de dados do
Rio Grande do Sul. O governo estadual também não esmiuçou os números.
O levantamento obtido
pela Repórter Brasil toma como base os dados do portal geral de Transparência
do Estado.
Foram consideradas
apenas as rubricas diretamente relacionadas à prevenção de desastres, incluindo
gastos com o Centro estadual de gestão integrada de riscos e desastres, Sistema
estadual de gestão integrada de riscos e desastres, sistema de acumulação de
água, fortalecimento de inteligência, gestão de projetos e respostas a
desastres naturais e implementação de sistema de gestão de riscos.
“O que nos choca é
que, mesmo com tudo que aconteceu no final do último semestre de 2023, não
houve celeridade para aplicar esses recursos, que já são baixos”, afirma o
advogado Conrado Klöckner, coordenador-geral do estudo.
“A Defesa Civil nunca
recebeu a atenção devida dos governos do Estado, especialmente no que concerne
à prevenção decorrente de desastres naturais. Seja em enchentes pontuais, quer
em períodos de estiagem, a ação sempre foi majoritariamente reativa, desarticulada
e desorganizada, havendo clara ausência de gestão de riscos e fragilissimus
protocolos de gestão de crise”, afirma o documento.
Ainda de acordo com o
levantamento, houve um esforço do governo gaúcho para inflar a verba referente
a prevenção de desastres e, assim, chegar ao montante de R$ 117 milhões. O
governo estadual, porém, só divulgou uma planilha com detalhes dos valores após
o pedido da Repórter Brasil.
O jornal gaúcho Zero
Hora fez um levantamento extraoficial, considerando os termos sob os termos
“Defesa Civil”, “desastres ambientais” e “controle ambiental” e chegou a um
montante de R$ 111 milhões. Os dados, porém, também incluem rubricas não
relacionadas à prevenção de desastres, segundo o levantamento do PSOL.
O professor do
Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Fernando Dornelles, considera que a questão principal não é apenas o
orçamento para a prevenção, mas a forma como foi utilizado. “Tem que saber em
que investiram”, diz.
Ele cita como exemplo
os gastos com radares meteorológicos, contratados pelo governo após as
enchentes do ano passado. Para Dornelles, seria mais efetivo investir em
equipamentos para aferir o aumento do nível de rios.
“O mais importante é
termos uma rede telemétrica [conjunto de instrumentos de medição de
precipitação (pluviógrafos) e nível de rios (linígrafos) que transmitem as
informações automaticamente por telefonia móvel ou satélite] robusta e
confiável, para não termos falta desta informação quando ela é mais
necessária”, afirma.
Andrés, da UFMG,
reforça que não é possível evitar os eventos climáticos extremos, mas é
possível reduzir seus impactos. “Produzir um sistema ambiental mais resiliente
para absorver as cheias das águas, ter sistemas de drenagem nas cidades com
manutenção atualizadas que vão contribuir para que a água não chegue nos
bairros…Tem muito a ser feito”, afirma.
Neste ano, as chuvas
já deixaram ao menos 161 mortos e mais de 580 mil desalojados.
>>>> O que
diz o governo estadual:
A título de
esclarecimento, informamos que nos R$ 117 milhões previstos pelo Estado – dados
de abril de 2024 – estão contempladas as seguintes ações, diretamente
relacionadas a desastres climáticos:
– R$ 2,3 milhões
enfrentamento para a área da saúde e recuperação de hospitais
– R$ 31 milhões Irriga
Mais RS
– R$ 26,1 milhões
projetos de recuperação para pequenos produtores rurais
– R$ 3,3 milhões para
recuperação de escolas
– R$ 33,9 milhões para
Defesa Civil para repasse aos municípios atingidos, Fundo a Fundo e
aparelhamento
– R$ 15,3 milhões
Volta por Cima e aluguel social
– R$ 5,2 milhões para
revitalização de bacias hidrográficas, monitoramento hidrometeorológico e
modernização de sistema de outorga
Cumpre acrescentar
ainda que, depois das enchentes deste mês de maio, o governo já anunciou mais
R$ 398 milhões em ações de enfrentamento, sendo:
– R$ 157 milhões para
recuperação de estradas
– R$ 70 milhões para
Fundo a Fundo da Defesa Civil aos municípios;
– R$ 50 milhões para
Volta Por Cima;
– R$ 30 milhões para
Aluguel Social;
– R$ 70 milhões para
rede hospitalar, atenção primária e saúde mental.
– R$ 12 milhões para
estrutura de abrigos
Fora isso, o governo
ainda antecipou:
– R$ 12,9 milhões para
antecipação do Todo Jovem na Escola
– R$ 10 milhões para
antecipação de autonomia financeira
De 2023 a 2024, o
Estado empenhou R$ 579 milhões em recursos para o enfrentamento a desastres
naturais em diversas frentes. O orçamento da Defesa Civil do Rio Grande do Sul
passou de R$ 1,8 milhão em 2021 para R$ 10 milhões no período seguinte. Chegou
a R$ 118 milhões em 2023 e a R$ 109 milhões em 2024, nesses dois últimos anos
incluídos os recursos de transferências Fundo a Fundo da Defesa Civil para os
municípios.
• Chuva no RS alaga terra indígena do povo
Kaingang afetada pelo marco temporal
UMA COMUNIDADE
INDÍGENA ficou desabrigada após as chuvas alagarem a terra indígena Segu, no
norte do Rio Grande do Sul. As 27 famílias do povo Kaingang foram removidas
para Constantina, a cidade mais próxima, onde permaneceram por oito dias. Três
casas foram destruídas.
Os 135 indígenas vivem
em apenas um hectare de terra – o equivalente a um campo de futebol – nas margens do rio Xingu, bacia do rio
Uruguai. Sujeitos a novas enchentes, a
comunidade não tem para onde ir.
Isso porque a terra
indígena não está regularizada, e por isso as famílias vivem em situação
precária e com pouca assistência, em uma área ocupada desde 2004. A Funai
(Fundação Nacional dos Povos Indígenas) chegou a iniciar o processo de
demarcação, em 2009. Mas anos depois o órgão rejeitou os estudos de
identificação com base na tese do marco temporal.
“Vivemos oprimidos em
um pequeno espaço nas margens do rio. Não sabemos o dia de amanhã, se pode ter
outra enchente. Essa insegurança é muito ruim”, relata Gerson Amantino,
vice-cacique da aldeia Novo Xingu. A comunidade já enfrentou ao menos quatro
enchentes, mas “nunca nessa proporção”, alerta a liderança.
O território
tradicional dos Kaingang da terra indígena Segu se estenderia por 4.651
hectares, de acordo com o estudo acessado pela Repórter Brasil. “Os locais onde
eles poderiam estar residindo iriam garantir a eles segurança contra
inundações, seria uma segurança para a vida deles”, pondera Ivan Cesar Cima,
coordenador da regional sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Após o período na
cidade, os indígenas retornaram para a aldeia. Algumas famílias ficaram sem
casas que foram destruídas na inundação. Elas foram alojadas na escola ou na
casa de reza dentro da área ocupada por eles, conta Amantino.
As enchentes no Rio
Grande do Sul já afetaram pelo menos 80 comunidades indígenas dos povos Mbya
Guarani, Kaingang, Xokleng e Charrua, de acordo com levantamento de
organizações indígenas e indigenistas.
Na última quinta-feira
(16), o coletivo divulgou uma carta em que pedem maior atuação do poder público
e o estabelecimento de um “núcleo multi-institucional de atuação de emergência,
reconstrução e consolidação de assistência às famílias indígenas”.
Diante da situação de vulnerabilidade e insegurança
fundiária de parte das comunidades, como no caso dos Kaingang da Segu, as
organizações também solicitam que “sejam empenhados todos os esforços para
garantir o acesso à terra, à regularização fundiária e à infraestrutura digna
nos territórios indígenas”. Em 2023, um estudo do MapBiomas mostrou que as
terras indígenas são mais preservadas do que áreas privadas, fundamentais,
portanto, para o equilíbrio climático.
• Luta pela demarcação
Os indígenas
reivindicam a demarcação de seu território desde os anos 2000, mas o processo
começou oficialmente em 2009 com o início dos estudos de identificação da área,
durante o segundo mandato do governo Lula.
O resultado foi a
consolidação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID)
em 2015.
O documento,
coordenado por um grupo de especialistas nomeado pela Funai, identificou a área
como terra de ocupação tradicional dos Kaingang. “Todos os dados levantados não
deixam dúvidas da existência de diversos elementos que confirmam a presença de
grupos kaingang na região do Segu”, afirmou o relatório encaminhado à Funai,
dando seguimento ao rito da demarcação.
Porém, em novembro de
2016, já no governo de Michel Temer, o órgão indigenista rejeitou os estudos.
Em parecer, a Funai disse à época que não era possível comprovar a presença do
grupo na região. “A reivindicação dos Kaingang se consolida a partir da ‘retomada’
de um território histórico sobre o qual esse povo - formal ou informalmente -
não logrou manter a posse plena ou parcial”, afirmou o órgão indigenista.
O argumento utilizado
pela Funai remete ao chamado “marco temporal”. Segundo essa tese, os indígenas
só teriam direito à demarcação de suas terras se ocupassem ou reivindicassem o
local na data da promulgação da Constituição, em outubro de 1988.
O marco temporal foi
considerado inconstitucional pelo STF em setembro do ano passado, mas ganhou
roupagem nova em dezembro, quando foi aprovado pelo Congresso na lei 14.701. Em
abril deste ano, a Procuradoria Geral da República enviou um parecer ao STF,
defendendo a derrubada do marco temporal.
“A Funai se baseou no
marco temporal, dizendo que não estávamos aqui antes da Constituição Federal,
mas como eles vão estipular uma data se nós existimos muito antes de 1988?”,
questiona Gerson Amantino, liderança Kaingang.
Para Ivan Cesar Cima,
do Cimi, a situação do Segu “mostra o quanto essa tese é nefasta”.“Eles [Funai]
estão dizendo que os Kaingang não estavam lá, mas por que eles não estavam lá?
Devido a um processo histórico de colonização da região que os expulsou do
território”, explica.
• Expulsão
“Quando a minha mãe
estava com oito anos, eles – os colonos – começaram a invadir e matar os
índios. Quantos foram mortos aqui! Ela dizia que nós saímos de lá porque os
colonos começaram a entrar e começaram a matar os índios”, conta Martina
Vergueiro, em depoimento registrado em 2010 no relatório de identificação da
área.
Os familiares de
Martina saíram da região por volta de 1925. O mesmo aconteceu com os parentes
de outro indígena, Vivaldino Claudino Sales: “a mãe me botou num cesto, colocou
nas costas e saiu com o pai”, contou o ancião, segundo os relatos colhidos pela
equipe de antropólogos da Funai.
A fala dos dois
indígenas indica um violento processo de expulsão dos Kaingang do Segu,
impulsionado pela colonização da região a partir do final do século 19. “A fuga dessa região foi a única saída diante
do contato intenso e tenso com as frentes de expansão”, descreve o relatório.
• Judicialização do caso
Após a própria Funai
paralisar a demarcação, os indígenas acionaram o Ministério Público Federal
(MPF). Um parecer técnico de 2018 contestou o argumento do órgão indigenista.
Segundo os procuradores, ao desconsiderar o histórico de expropriações dos Kaingang
do Segu, a Funai “comprometeu uma adequada verificação relativa aos direitos
territoriais indígenas que estão em questão".
Em abril de 2022, o
MPF entrou com uma ação civil pública contra a Funai, pedindo que seja feita
uma nova análise dos estudos do território dos Kaingang, o RCID.
Segundo nota divulgada
pela Procuradoria, desde a divulgação do parecer do MPF, em 2018, a Funai se
recusa a proceder com a reanálise, paralisando o processo de demarcação
“embasando seu posicionamento em falsas premissas” – uma referência ao marco temporal.
“A Funai fazia o que o
governo anti-indigena mandava, que era negar relatório e suspender todas as
demarcações. Enquanto isso, todas as comunidades indígenas sofrem por causa do
atraso nas demarcações”, alerta Amantino, do povo Kaingang, em alusão a gestão
de Jair Bolsonaro (2019-2022).
Fonte: Repórter Brasil
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