quinta-feira, 23 de maio de 2024

Lara Caldas: Neoliberalismo em tempos de desastre climático

Nas últimas semanas, o Brasil tem assistido a um verdadeiro cenário de horror no Rio Grande do Sul, onde fortes chuvas levaram a alagamentos em grande parte do estado. Eventos climáticos dessa magnitude causam reações e comentários de toda sorte, mas dois tipos que vi repercutidos em redes sociais como X, o antigo Twitter, e Instagram me chamaram a atenção, e motivaram a escrita deste texto.

O primeiro tipo de comentário é muito difundido entre a esquerda, e segue esta linha: “O neoliberalismo desaparece em eventos climáticos desastrosos, quando a necessidade ação estatal se torna escancarada”. “O neoliberalismo não tem repertório para lidar com a crise climática”. O segundo, e mais comum, é que falta planejamento para lidar com a crise climática, ou que as chuvas foram completamente imprevisíveis e escaparam aos planos.

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O primeiro comentário retrata uma tese sobre o neoliberalismo como uma ideologia (ou forma de governo) tão centrada nas soluções privadas que ela se torna incapaz de lidar com desastres que necessitam de uma ação coordenada, estratégica, muitas vezes centralizada, que consiga produzir e alocar um volume gigantesco de investimentos em pouquíssimo tempo – capacidades essas associadas ao Estado.

Dessa maneira, mesmo políticos ou agentes privados frequentemente associados ao neoliberalismo surpreendem ao, subitamente, aparecerem pedindo interferência das forças especiais do Estado, principalmente aquelas de resgate, segurança e logística, além de recursos da União para uma necessária reconstrução. Esse seria o grande indicativo da insuficiência de um projeto neoliberal.

Essa concepção um tanto simplista do neoliberalismo foi muito difundida, e deriva de estudos da economia política principalmente até o início dos anos 2000, que caracterizam o neoliberalismo como uma doutrina privatista anti Estado. Isso acabou pintando no debate público uma associação entre o neoliberalismo e uma forma de capitalismo extremo, em que a empresa privada substitui o Estado.

O comentário parece ainda ter uma leitura de boa-fé, em que no senso comum se imagina que uma “resposta para a crise climática” é, necessariamente, uma boa resposta para a crise climática. Ou seja, qualquer reação premeditada, pensada e executada, levando em consideração os desastres climáticos, estará – necessariamente – visando mitigar danos, salvar vidas, enfim, o bem-comum. O segundo comentário, que também carrega esse otimismo, complementa que se houvesse recursos, planejamento, conhecimento e capacidades técnicas, elas seriam postas em ação, e o problema seria mitigado. Afinal, como é possível que se saiba da possibilidade das catástrofes, que se tenha planos e estudos de mitigação, que se tenha dinheiro em caixa, mas não se faça nada?

Como ano após ano sob governos mais ou menos imbuídos na ideologia neoliberal não parece haver uma resposta eficiente do ponto de vista do bem comum, conclui-se, por um lado, que o neoliberalismo não tem uma resposta, e portanto está sendo inativado pela crise. É uma visão um tanto teleológica, que acha paralelo em uma tradição do pensamento à esquerda que vê nas contradições imanentes do capital o seu próprio fim.

Entretanto, se faz necessário encarar algumas evidências pouco palatáveis que o neoliberalismo, na verdade, é uma forma muito eficiente de governar pela crise. É preciso abandonar a ideia de que toda forma de governo só é bem-sucedida (ou seja, se perpetua) na medida em que mantém a estabilidade e busca o bem comum, e que a incapacidade nesse sentido implica necessariamente em contradições sociais que levariam à sua ruína.

Se afastarmos essa visão otimista, será possível ver que o neoliberalismo tem sim uma resposta para os desastres climáticos, e estamos vendo essa resposta em ação nos últimos anos. E apesar dessa resposta ser desastrosa do ponto de vista humano e ecológico, ela tem se mostrado como uma política viável (eleitoral e institucionalmente). E entender isso me parece fundamental para construir alternativas concretas.

O neoliberalismo é uma ideologia da estabilidade – é verdade –, mas da estabilidade da classe dominante enquanto tal. Visando conter ímpetos revolucionários do começo do século XX, o neoliberalismo se molda como uma política de reconfiguração do Estado e suas instituições, que foca em duas frentes – uma econômica, que busca retirar do âmbito democrático as decisões sobre economia, que a partir daí deveria se tornar uma “ciência” gerida por experts; e outra jurídica, que cria um sistema de proteção do capital e da propriedade privada na estrutura legal do próprio Estado.

Assim o Estado neoliberal assume o papel de garantidor, protetor e até mesmo criador do mercado privado. Saímos do laissez-faire (deixar fazer) e passamos ao faire-être (fazer ser): ao invés de ‘deixar o mercado em paz” em sua esfera separada para agir livremente (como no cânone liberal clássico), o Estado passa a ser o produtor e protetor do mercado capitalista. De forma que estudos mais recentes que partem da história do neoliberalismo e seu processo de construção institucional apontam que o neoliberalismo não é uma doutrina do Estado ausente nem de Estado mínimo, mas a doutrina de um Estado forte, que governa para o capital privado e o protege. Dessa maneira, desaparece a oposição entre neoliberalismo e Estado.

E enquanto um projeto de conservação de hierarquias sociais e do capital, o neoliberalismo assume um caráter ainda mais violento em países de herança colonial, como o Brasil, uma vez que se busca estabilizar no sistema desigualdades sociais e raciais abismais. Para conservar um sistema cruelmente desigual, o neoliberalismo se desenvolveu enquanto um governo por crises. Isso quer dizer que as respostas neoliberais para as crises, sejam elas sociais ou ambientais, é aumentar as precariedades via um repertório que vai das políticas de austeridade, à repressão violenta, mas sempre tendendo ao aumento do repasse de recursos públicos para os cofres privados – com pouquíssimo controle sobre a qualidade dos investimentos subsequentes. Cada nova crise é resolvida com mais – e não menos – neoliberalismo.

Assim, apesar de amplas evidências, estudos e planos, o negacionismo climático triunfa. Como demonstrado por diversos especialistas em publicações recentes, cientistas informaram da possibilidade de calamidade por chuvas naquela região nos meses de março e abril. Também foi demonstrado que existem diversos planos de contenção e mitigação de desastres, sem que sejam postos em prática. E ainda ficou evidente que, apesar de ter dinheiro em caixa, o governo do Rio Grande do Sul não executou nenhuma obra de prevenção de enchentes no ano passado.

Para piorar, o Governo do Rio do Sul tem atuado para enfraquecer o código ambiental. No âmbito nacional, continuam tramitando no congresso projetos de lei que reduzem proteções ambientais. No governo anterior, foi aprovado uma lei que possibilita que municípios retirem proteções ambientais previstas para rios urbanos. Todos esses projetos avançam dentro do Estado com forte lobby dos setores agroindustriais e da construção civil.

A cereja no bolo são os planos atuais de urbanização não só em Porto Alegre, mas em diversas cidades, que continuam desconsiderando todas as recomendações de adaptação climática. Basta ver a ironia do plano de desenvolvimento em Belém do Pará por ocasião da COP-30, em que os recursos para urbanização estão sendo empregados em um viaduto, que corta regiões protegidas de floresta. Ou São Paulo, que acaba de inaugurar a extensão de uma via expressa ao longo do rio pinheiros, no valor de 29 bilhões, e planeja continuar a expansão.

Por fim, lembro de uma terceira reação aos desastres ambientais. São vídeos criminosos produzidos por conhecidos articuladores da extrema-direita, que visam espalhar desinformação sobre a ação do Estado. Nesses vídeos, pessoas mentem que agentes públicos estariam atrapalhando ou burocratizando a entrega de donativos. A imaginação política que se busca atiçar com esse tipo de vinculação mentirosa é a de um Estado tão intrinsecamente corrupto que é desprovido de todo senso moral, cujo único objetivo é ‘roubar do cidadão’. Nesse sentido, os únicos capazes de agir e ajudar a população são as iniciativas privadas e individuais dos ‘cidadãos de bem’.

Nesse setor político, não há preocupação com a crise climática, o aquecimento global ou a consideração de qualquer consequência da ação humana sobre esses desastres, que são retratados como naturais. A chuva é a única culpada (narrativa essa também perpetuada em outros círculos). A naturalização do desastre leva à naturalização da tragédia, que não poderia ser evitada, e à culpabilização exclusiva de um Estado inimigo da empresa individual. O resultado é a imaginação de um Estado que é uno, monoliticamente corrupto ou ‘inútil’, e que portanto não precisa ser disputado, em oposição à um empresariado idealizado.

O discurso, de consequências despolitizantes, favorece a continuidade do grupo de interesses privados no poder ao camuflar o lugar que eles ocupam dentro desse Estado e sua responsabilidade pela crise.

Apesar de se ocultarem sob um discurso privatista isolado da máquina pública e suas responsabilidades, a forma neoliberal de lidar com a crise climática é agindo por dentro do Estado para proteger os interesses do capital privado, por um lado, e garantindo recursos para o financiamento desses setores, por outro. Os planos de reconstrução ou urbanização sistematicamente ignoram as recomendações, e mantém a lógica atual de urbanização, que perpetua a crise. O desastre repetido é visto com uma oportunidade de investimento cíclica, porque não atinge a todos igualmente. Não esqueçamos que mesmo em desastres da magnitude do que acontece hoje no RS, atingindo 425 dos 497 municípios, quem efetivamente morre ou perde tudo são pessoas mais pobres e desprotegidas. O neoliberalismo, ou o necroliberalismo, demonstra que vai “muito bem obrigada”.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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