Lara
Caldas: Neoliberalismo em tempos de desastre climático
Nas
últimas semanas, o Brasil tem assistido a um verdadeiro cenário de horror no
Rio Grande do Sul, onde fortes chuvas levaram a alagamentos em grande parte do
estado. Eventos climáticos dessa magnitude causam reações e comentários de toda
sorte, mas dois tipos que vi repercutidos em redes sociais como X, o antigo
Twitter, e Instagram me chamaram a atenção, e motivaram a escrita deste texto.
O
primeiro tipo de comentário é muito difundido entre a esquerda, e segue esta
linha: “O neoliberalismo desaparece em eventos climáticos desastrosos, quando a
necessidade ação estatal se torna escancarada”. “O neoliberalismo não tem
repertório para lidar com a crise climática”. O segundo, e mais comum, é que
falta planejamento para lidar com a crise climática, ou que as chuvas foram
completamente imprevisíveis e escaparam aos planos.
O
primeiro comentário retrata uma tese sobre o neoliberalismo como uma ideologia
(ou forma de governo) tão centrada nas soluções privadas que ela se torna
incapaz de lidar com desastres que necessitam de uma ação coordenada,
estratégica, muitas vezes centralizada, que consiga produzir e alocar um volume
gigantesco de investimentos em pouquíssimo tempo – capacidades essas associadas
ao Estado.
Dessa
maneira, mesmo políticos ou agentes privados frequentemente associados ao
neoliberalismo surpreendem ao, subitamente, aparecerem pedindo interferência
das forças especiais do Estado, principalmente aquelas de resgate, segurança e
logística, além de recursos da União para uma necessária reconstrução. Esse
seria o grande indicativo da insuficiência de um projeto neoliberal.
Essa
concepção um tanto simplista do neoliberalismo foi muito difundida, e deriva de
estudos da economia política principalmente até o início dos anos 2000, que
caracterizam o neoliberalismo como uma doutrina privatista anti Estado. Isso
acabou pintando no debate público uma associação entre o neoliberalismo e uma
forma de capitalismo extremo, em que a empresa privada substitui o Estado.
O
comentário parece ainda ter uma leitura de boa-fé, em que no senso comum se
imagina que uma “resposta para a crise climática” é, necessariamente, uma boa resposta
para a crise climática. Ou seja, qualquer reação premeditada, pensada e
executada, levando em consideração os desastres climáticos, estará –
necessariamente – visando mitigar danos, salvar vidas, enfim, o bem-comum. O
segundo comentário, que também carrega esse otimismo, complementa que se
houvesse recursos, planejamento, conhecimento e capacidades técnicas, elas
seriam postas em ação, e o problema seria mitigado. Afinal, como é possível que
se saiba da possibilidade das catástrofes, que se tenha planos e estudos de
mitigação, que se tenha dinheiro em caixa, mas não se faça nada?
Como
ano após ano sob governos mais ou menos imbuídos na ideologia neoliberal não
parece haver uma resposta eficiente do ponto de vista do bem
comum, conclui-se, por um lado, que o neoliberalismo não tem uma resposta, e
portanto está sendo inativado pela crise. É uma visão um tanto
teleológica, que acha paralelo em uma tradição do pensamento à esquerda que vê
nas contradições imanentes do capital o seu próprio fim.
Entretanto,
se faz necessário encarar algumas evidências pouco palatáveis que o
neoliberalismo, na verdade, é uma forma muito eficiente de governar pela crise.
É preciso abandonar a ideia de que toda forma de governo só é bem-sucedida (ou
seja, se perpetua) na medida em que mantém a estabilidade e busca o bem comum,
e que a incapacidade nesse sentido implica necessariamente em contradições
sociais que levariam à sua ruína.
Se
afastarmos essa visão otimista, será possível ver que o neoliberalismo tem sim
uma resposta para os desastres climáticos, e estamos vendo essa resposta em
ação nos últimos anos. E apesar dessa resposta ser desastrosa do ponto de vista
humano e ecológico, ela tem se mostrado como uma política viável (eleitoral e
institucionalmente). E entender isso me parece fundamental para construir
alternativas concretas.
O
neoliberalismo é uma ideologia da estabilidade – é verdade –, mas da
estabilidade da classe dominante enquanto tal. Visando conter ímpetos
revolucionários do começo do século XX, o neoliberalismo se molda como uma
política de reconfiguração do Estado e suas instituições, que foca em duas
frentes – uma econômica, que busca retirar do âmbito democrático as decisões
sobre economia, que a partir daí deveria se tornar uma “ciência” gerida por
experts; e outra jurídica, que cria um sistema de proteção do capital e da
propriedade privada na estrutura legal do próprio Estado.
Assim
o Estado neoliberal assume o papel de garantidor, protetor e até mesmo criador
do mercado privado. Saímos do laissez-faire (deixar fazer) e
passamos ao faire-être (fazer ser): ao invés de ‘deixar o
mercado em paz” em sua esfera separada para agir livremente (como no cânone
liberal clássico), o Estado passa a ser o produtor e protetor do mercado
capitalista. De forma que estudos mais recentes que partem da história do
neoliberalismo e seu processo de construção institucional apontam que o
neoliberalismo não é uma doutrina do Estado ausente nem de Estado mínimo, mas a
doutrina de um Estado forte, que governa para o capital privado e o protege.
Dessa maneira, desaparece a oposição entre neoliberalismo e Estado.
E
enquanto um projeto de conservação de hierarquias sociais e do capital, o
neoliberalismo assume um caráter ainda mais violento em países de herança
colonial, como o Brasil, uma vez que se busca estabilizar no sistema
desigualdades sociais e raciais abismais. Para conservar um sistema cruelmente
desigual, o neoliberalismo se desenvolveu enquanto um governo por
crises. Isso quer dizer que as respostas neoliberais para as crises, sejam
elas sociais ou ambientais, é aumentar as precariedades via um repertório que
vai das políticas de austeridade, à repressão violenta, mas sempre tendendo ao
aumento do repasse de recursos públicos para os cofres privados – com
pouquíssimo controle sobre a qualidade dos investimentos subsequentes. Cada
nova crise é resolvida com mais – e não menos – neoliberalismo.
Assim,
apesar de amplas evidências, estudos e planos, o negacionismo climático
triunfa. Como demonstrado por diversos especialistas em publicações
recentes, cientistas informaram da possibilidade de calamidade por chuvas
naquela região nos meses de março e abril.
Também foi demonstrado que existem diversos planos de contenção e mitigação de
desastres, sem que sejam postos em prática. E ainda ficou evidente que, apesar
de ter dinheiro em caixa, o governo do Rio Grande do Sul não executou nenhuma
obra de prevenção de enchentes no ano passado.
Para
piorar, o Governo do Rio do Sul tem atuado para enfraquecer o código ambiental.
No âmbito nacional, continuam tramitando no congresso projetos de lei que
reduzem proteções ambientais. No governo anterior, foi aprovado uma lei que possibilita que municípios retirem
proteções ambientais previstas para rios urbanos. Todos esses projetos avançam dentro do Estado com forte lobby
dos setores agroindustriais e da construção civil.
A
cereja no bolo são os planos atuais de urbanização não só em Porto Alegre, mas
em diversas cidades, que continuam desconsiderando todas as recomendações de
adaptação climática. Basta ver a ironia do plano de desenvolvimento em Belém do
Pará por ocasião da COP-30, em que os recursos para urbanização estão sendo empregados em um viaduto,
que corta regiões protegidas de floresta. Ou São
Paulo, que acaba de inaugurar a extensão de uma via expressa ao longo do rio
pinheiros, no valor de 29 bilhões, e planeja continuar a expansão.
Por
fim, lembro de uma terceira reação aos desastres ambientais. São vídeos
criminosos produzidos por conhecidos articuladores da extrema-direita, que
visam espalhar desinformação sobre a ação do Estado. Nesses vídeos, pessoas
mentem que agentes públicos estariam atrapalhando ou burocratizando a entrega
de donativos. A imaginação política que se busca atiçar com esse tipo de
vinculação mentirosa é a de um Estado tão intrinsecamente corrupto que é
desprovido de todo senso moral, cujo único objetivo é ‘roubar do cidadão’.
Nesse sentido, os únicos capazes de agir e ajudar a população são as
iniciativas privadas e individuais dos ‘cidadãos de bem’.
Nesse
setor político, não há preocupação com a crise climática, o aquecimento global
ou a consideração de qualquer consequência da ação humana sobre esses
desastres, que são retratados como naturais. A chuva é a única culpada
(narrativa essa também perpetuada em outros círculos). A naturalização do
desastre leva à naturalização da tragédia, que não poderia ser evitada, e à
culpabilização exclusiva de um Estado inimigo da empresa individual. O
resultado é a imaginação de um Estado que é uno, monoliticamente corrupto ou
‘inútil’, e que portanto não precisa ser disputado, em oposição à
um empresariado idealizado.
O
discurso, de consequências despolitizantes, favorece a continuidade do grupo de
interesses privados no poder ao camuflar o lugar que eles ocupam dentro desse
Estado e sua responsabilidade pela crise.
Apesar
de se ocultarem sob um discurso privatista isolado da máquina pública e suas
responsabilidades, a forma neoliberal de lidar com a crise climática é agindo
por dentro do Estado para proteger os interesses do capital privado, por um
lado, e garantindo recursos para o financiamento desses setores, por outro. Os
planos de reconstrução ou urbanização sistematicamente ignoram as
recomendações, e mantém a lógica atual de urbanização, que perpetua a crise. O
desastre repetido é visto com uma oportunidade de investimento cíclica, porque
não atinge a todos igualmente. Não esqueçamos que mesmo em desastres da
magnitude do que acontece hoje no RS, atingindo 425 dos 497 municípios, quem
efetivamente morre ou perde tudo são pessoas mais pobres e desprotegidas. O neoliberalismo,
ou o necroliberalismo, demonstra que vai “muito bem obrigada”.
Fonte:
Jornal GGN
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