Imposto seletivo ou subsídio, saúde ou
doença
Um dos grandes
problemas de uma atividade industrial com poucas empresas no setor é a
amplificação dos efeitos negativos de tais empreendimentos, que comprometem
adversamente no geral seus resultados positivos particulares.
Em 1920, o importante
economista inglês Arthur Cecil Pigou (1877-1959), um dos fundadores da escola
de economia da Universidade de Cambridge, observou que o desequilíbrio causado
por mercados assimétricos, ou dominados por grandes conglomerados, poderiam ser
melhor regulados a partir da aplicação de tributos específicos, ou seletivos,
cujo objetivo seria reduzir as externalidades negativas dessas atividades
econômicas para o bem comum. Pigou ancorou sua tese numa das bases da teoria
liberal clássica que imputa ao Estado soberano o poder de regulação do conjunto
de atividades dos mercados que se multiplicam em seu território e afetam sua
população, já que não há ambiente de livre mercado sem Estado organizado e
legislação confiante.
Como todo economista
deveria informar, mercados concentrados e imperfeitos, que são o fato evidente
da economia contemporânea, deturpam o princípio de competição livre e impõem
controle sobre a própria forma de vida das comunidades e sociedades por eles afetadas.
Ademais, o poder da aliança entre esse capital concentrado e a indução
cognitiva promovida pela publicidade pode até transformar o absurdo e doentio
em algo normal. Exemplos não faltam, e incluem o cigarro e a bebida. Antes não
sabíamos, agora já sabemos. Bem-vindos ao século XXI. Talvez no futuro saibamos
o mesmo sobre combustíveis fósseis.
Nas últimas três
décadas o mundo assistiu ao rápido desenvolvimento de sistemas industriais de
alimentação integrados e globalizados. Cada vez mais, muita comida e bebida
passaram a ser servidas em caixas coloridas, pacotes prateados, finas vasilhas
plásticas e exuberantes latinhas de alumínio. A composição de tais alimentos
ultraprocessados é o resultado de fórmulas químicas e um processo de engenharia
industrial de re-solidificação de partes pulverizadas ou re-liquidificação de
partes concentradas com adição de inúmeros aditivos cosméticos para conferir
sabor, aroma e textura tornando-os hiper-palatáveis. Esse é o fundamento
irredutível do ultraprocessamento, que cria alimentos com sabor adicionado, não
intrínseco, danosos tanto para a saúde humana como animal quando consumidos em
alta frequência.
Os ultraprocessados
estão ligados ao aumento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como
obesidade, diabetes, cânceres, doenças hepáticas e cardiovasculares, segundo o
British Medical Journal, que associa mais de trinta doenças ao consumo desses
produtos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) nomeou a transição de mercado
para sistemas alimentares que ampliam o consumo de ultraprocessados, e a
conseguinte proliferação das Doenças Crônicas Não Transmissíveis de
“determinantes comerciais da saúde”.
Os ultraprocessados,
ademais, não têm apenas efeitos na saúde coletiva humana, mas também nos
ecossistemas, pois são embalados em plásticos cujo grau de poluição atingiu
números alarmantes. Tal realidade suscitou a negociação de um tratado global
vinculante, em negociação nesse momento, para lidar com os impactos da poluição
plástica na saúde humana e planetária. O processo de produção do plástico, da
extração ao descarte, contém diversas classes de substâncias químicas nocivas
que são disruptores endócrinos que causam graves impactos à saúde e ao meio
ambiente, que inclusive afetam de forma desproporcional povos originários em
todo mundo.
Em outras palavras, a
força do mercado como co-indutor de doenças não infecciosas pode ser
exemplificada de diversas formas: na jovem que sai da academia tomando uma
latinha de refrigerante e no jovem trabalhador que come um salgadinho com um
refri na volta para casa e, embora jovens, sem o saber são pré-diabéticos.
Ou no pescador cuja
pesca que o alimenta é contaminada por microplásticos. As embalagens dos
ultraprocessados estão entre as campeãs na poluição plástica no mundo. O Brasil
é o maior produtor de plástico da América Latina, com 500 bilhões de itens
descartáveis, e segue recebendo incentivos fiscais (R$ 500 milhões em 2023 e R$
1 bilhão em 2024 – decreto 11.668 de 2023). Somos o quarto maior produtor de
resíduos plásticos no mundo, com uma taxa ínfima de reciclagem, de apenas
1,28%. Grande parte desse volume, que cresce ano a ano, são embalagens de
ultraprocessados.
Recente estudo da
Colaboração dos Fatores de Risco de DCNT, publicado no prestigioso jornal de
ciência The Lancet, mostra um crescimento logarítmico da incidência de
obesidade em jovens nos últimos vinte anos no Brasil. O crescimento acentuado
no consumo frequente de calorias com baixo valor nutricional, como o de
salgadinhos, salsichas e refrigerantes, fez explodir os casos de diabetes no
Brasil, que em quinze anos duplicaram sua prevalência na população, de 5% para
10%. O mesmo processo, ocorrido anos antes nos Estados Unidos pelas mesmas
mudanças dietárias, onde ultraprocessados são acessíveis e comida saudável é
cara, vem se agravando agora no Brasil. Entre a população dos Estados Unidos,
em 2022, 11,3% foram diagnosticados diabéticos, 38% se encontram em estado
pré-diabético, e um grande número não tem diagnóstico, por não haver um sistema
de saúde público. No Brasil, também já uma a cada dez pessoas são portadoras
diagnosticadas dessa DCNT, levando a dados alarmantes do ponto de vista de
saúde pública, como o consumo de insulina e o número de amputações.
A indústria de
alimentos ultraprocessados no Brasil é dominada por grandes conglomerados
transnacionais que exercem um evidente oligopólio de produção, inclusive com
controle indireto nas redes de distribuição de seus produtos. A cadeia de valor
dos refrigerantes, por exemplo, inclui produção do insumo principal, o xarope,
sob proteção da Zona Franca de Manaus. Segundo dados da Associação Brasileira
da Indústria de Refrigerantes (ABIR), três empresas dominam 92% do mercado
nacional dessas bebidas, sendo uma detentora de 60%. Essas indústrias têm alta
rentabilidade, porém mais de 80% de seus produtos são compostos de água, e essa
não é cobrada, ou tem qualquer tributo inserido em sua exploração. Enquanto as
embalagens tamanho família colocaram esses produtos no centro da mesa diária
brasileira, as embalagens menores otimizam o lucro por volume – um vício
propagado pela publicidade em eventos diversos relacionados ao entretenimento.
Somos seduzidos e convencidos a nos refrescar com tais bebidas altamente adoçadas
e carbonizadas em copos cheios de gelo, e diante de tanto apelo que a bomba de
açúcar traz, imaginar seu controle é, sem dúvida, difícil.
Como mostrou Pigou,
célebre economista com foco no bem estar e nos ciclos econômicos virtuosos,
diante de tamanha extrapolação de um mercado altamente concentrado, com tamanho
poder de impacto e enorme efeito de spill over caracterizado por pressão negativa
no sistema de saúde pública e nos ecossistemas, cabe ao Estado a
responsabilidade de atuar positivamente para reduzir tamanhos impactos
coletivos. Há mais de um século se sabe que o tributo seletivo é o mais
eficiente instrumento de mudança de padrões de produção, consumo e de
comportamento empresarial. Quanto maior a alíquota nesses casos emblemáticos,
melhor para demonstrar o efeito moral da medida para a saúde pública, para a
diversificação da economia e para as contas públicas do país, como foi o caso
também com os cigarros e o tabagismo.
A reforma tributária é
uma oportunidade única de corrigir distorções e assimetrias de uma arquitetura
tributária que tem impactos significativos sobre a saúde pública, o meio
ambiente e a justiça social. O projeto de lei enviado ao Congresso Nacional sobre
a emenda constitucional da reforma, que por si só tem uma série de
ambiguidades, avança em alguns pontos, como imposto seletivo sobre cigarros,
bebidas alcoólicas e refrigerantes, além de ampliar o acesso aos alimentos
saudáveis e prever cashback para parcela da população mais vulnerável. No
entanto, o caminho para de fato conseguirmos beneficiar a saúde e o planeta
está exposto aos lobbies que não querem abrir mão de mercados e margens de
lucro imensas, e farão de tudo para minar os esforços daqueles que buscam uma
reforma tributária que seja saudável, sustentável e solidária.
Impostos seletivos
para produtos danosos à saúde pública e ao meio ambiente afetarão as
indústrias, por óbvio. Entretanto, tal efeito pode ser visto de duas formas
distintas: com má-fé passiva que não aguenta mudanças e preconiza desastres; ou
com boa-fé proativa que impulsionará tais indústrias a inovar e criar novos
produtos que contribuam positivamente para a saúde da população brasileira e
dos ecossistemas. Essas escolhas não são individuais, mas coletivas, pois seus
efeitos não são apenas individuais, são sentidos por todos. A escassez de
recursos públicos que deixarão de ir, por exemplo, para cuidados pré-natais na
saúde pública, por irem para amputações de pacientes diabéticos, será sentida
por mães e filhos que nunca fizeram essa escolha.
Neste momento, a
decisão sobre a regulamentação da reforma tributária está no Congresso
Nacional. Esperamos que os parlamentares e o governo ajam aqui não em benefício
dos seletos grupos acostumados com privilégios de mercados tão imperfeitos, mas
de acordo com a sua responsabilidade pública para com seus eleitores e o bem
comum, e em consonância com os princípios de saúde pública e respeito ao meio
ambiente consagrados na Constituição Federal.
Fonte: Por Claudio
Fernandes, Carolina Marchiori, Marcos Woortmann e Paula Johns, no Le Monde
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