Greve dos docentes das federais: Muito além
das relvas verdejantes dos vizinhos
É impossível ignorar
as proposições de Maria Cristina Fernandes. Sem favor nem concessão, tem muitos
anos que ela representa o que há de mais sofisticado na análise política de
conjunturas políticas entre nós. Com abordagens sempre sutis e consequentes, ela
comumente ilumina situações que quase ninguém consegue notar nem ver. A sua
recomposição dos sentidos da presente greve da categoria docente das
universidades federais – publicada na edição da sexta-feira, 26/04, do Valor
Econômico, em “A grama mais verde do vizinho” – foi mais uma ocasião dela
demonstrar tudo isso com desmesurado primor.
O núcleo de seu
argumento reconhece a variabilidade de pesos e medidas da presidência Lula da
Silva na revisão das defasagens salariais do conjunto das carreiras federais e
também percebe que os docentes seguem ausentes do centro de prioridades. De
maneira irretocável e feito síntese, ela, assim, lembra que “políticas
salariais não são movidas por lealdades, mas por correlação de forças”.
E avança que frente
aos docentes das universidades federais existem servidores de setores
consoantes concretamente muito mais financeiramente valorados, valorizados e
contentes. Desde as suas contas nesse expediente, os integrantes da Política
Federal percebem vencimentos líquidos quatro vezes superiores aos docentes das
federais; os quadros da Defensoria Pública Federal, três vezes mais; e os
servidores da Receita Federal, o dobro ou quase o dobro.
Não vão, assim, nem de
longe bem a paridade nem a equivalência de relevâncias – ao menos no plano
salarial – nas carreiras federais.
Mas, ainda mais que
isso, Maria Cristina Fernandes situa toda essa disparidade num ambiente de
crescente desequilíbrio na proporcionalidade entre oferta versus demanda na
bacia das almas educacionais. Formam-se muito mais doutores para as carreiras
docentes que a capacidade dos estabelecimentos de ensino – de todos os matizes
públicos, privados ou público-privados – consegue acalentar.
Nesse ponto – como, de
resto em todos os demais –, sendo extremamente precisa, a nossa nobre colunista
do Valor Econômico desenterra os números para evidenciar que existem atualmente
aproximadamente 300 mil doutores alocados formalmente nas universidades
brasileiras, por volta de 22 mil são formados anualmente, dos quais 10 mil
conseguem colocação e os outros 12 mil amargam a constrangedora solidão dos
escolarizados forjando isso que os entendidos passaram a denominar “síndrome de
overeducated”.
Adicionado a tudo
isso, ela move o cursor do ponto de partida dessa inquestionável agonia,
dissintonia, rancor e amargor para a multidimensionalidade econômica, social e
política da crise do impeachment de 2016. Em seguida, relembra da
implacabilidade da blitzkrieg da presidência Jair Messias Bolsonaro (2019-2022)
contra o funcionalismo público federal em geral e contra as carreiras docentes
federais particularmente. Ainda adiante, alude à atual proliferação da
realidade de greve nas universidades federais como a expressão de um acerto de
contas com esses passados decompostos. E, por fim, aloca a abrangência de tudo
isso numa frase novamente irreparável e desconcertantemente vivaz que aduz que
“no governo Bolsonaro, a grama secou para todo mundo. É no início da rega que
os problemas aparecem”.
Sim: não tem jeito.
Reconheça-se: Maria Cristina Fernandes, essa – muito mais que jornalista –
cientista social, segue genial e sua análise da situação de greve nas federais
é simplesmente luminosa, precisa e completa. Nela se examinam os pontos
essenciais, os problemas fundamentais e as nuances sinceramente carentes de
solução. Bravo, novamente, Maria Cristina Fernandes.
Mas, de toda sorte e
com infinitas vênias, vai necessário ir além.
Ou melhor, talvez,
aquém.
Mais para dentro. Mais
para o fundo. Mais para nós: docentes universitários das federais.
O problema geral da
presente greve talvez não seja bem a percepção de dimensões mais verdejantes
nas relvas dos vizinhos tampouco a suposta atrofia do peso relativo da
categoria no rapport de forces político e politiqueiro nacional. Não parece
ser, assim, só pelos centavos muito menos pela minudência da relevância dos
docentes nos tablados eleitorais.
O desencanto dos
docentes das federais enseja decorrer de desconforto muito mais profundo,
fundamental e quase existencial. Qualquer servo bom e fiel desse sacerdócio
pode testemunhar a inapelável desclassificação social e moral sem precedentes
do conjunto individual e representativo da categoria e, com isso, evidenciar
uma inclemente entropia da própria natureza, sentido e significação do ser
professor universitário – das federais ou não – no Brasil nos últimos anos.
Das muitas
manifestações sinceras, inteligentes e sem parti pris ao meu singelo artigo “A
greve dos professores das Universidades federais” sobre o assunto, postado no
site A Terra é Redonda, na segunda-feira, 15/04, uma me intrigou e, confesso,
amargurou bastante. Ela veio de um dos maiores especialistas em ensino superior
no Brasil – que não vou explicitar por cortesia – que me disse basicamente o
seguinte: “concordo com a integralidade de seus argumentos, mas preciso
lembrá-lo que o desprestígio das universidades federais e de sua categoria
docente vem de mais longe. Seguramente desde 1964-1968.”
Como não parar e
voltar a meditar?
Mas não precisa parar
muito nem muito meditar para notar que esse nobre especialista dos enigmas
universitários e longamente também professor em várias universidades
brasileiras e estrangeiras tem integral razão. Tudo é, infelizmente, muito mais
grave, profundo, aterrado no tempo e sem solução no curto nem no médio prazo.
Senão, vejamos.
Falou-se muito – e
ainda se segue falando –, por estes dias, da efeméride de 1964. Entretanto,
pouco ou quase nada se tem diretamente mencionado sobre o impacto de tudo
aquilo sobre a educação em geral e sobre o ensino superior em particular.
Sem maiores
digressões, talvez seja minimamente procedente, responsável e salutar
considerar que perto de duas ou três gerações de professores e aspirantes a
professores universitários brasileiros foram mental, moral e fisicamente
acuadas, amputadas, cerceadas, desvirtuadas, perseguidas, pervertidas,
traumatizadas e violentadas durante a vigência do tacanho regime.
Consequentemente, malgrado a extraordinária expansão da malha de universidades
federais naqueles anos de desatino, os seus frequentadores e a sua ambiência
foram estruturalmente deturpados, malversados e viciados.
Com o início do
retorno à normalidade, a partir da anistia “ampla, geral e irrestrita” de fins
dos anos de 1970, projetos docentes inconclusos e carreiras universitárias
despedaçadas conseguiram reabilitar o seu fluxo. Mas tudo mudara. Especialmente
as emoções, as ilusões e as contemplações.
O Brasil era outro. A
Universidade já tinha virado um experimento muito diferente. E a ambiência
universitária foi, pouco a pouco, se revelando eivada de distorções não
raramente indecentes, insuportáveis e insuperáveis.
Se nada disso
bastasse, a justa, honesta, necessária e reparadora reincorporação dos antigos
docentes cassados e exilados produziu um complexo e permanente gap geracional
repleto de desentendimentos e amarguras no interior dos quadros funcionais
docentes das universidades em geral e notadamente das federais. Nesse processo,
uma ou duas gerações de jovens potenciais docentes universitários foi
sinceramente preterida da carreira docente em favor do retorno dos
injustiçados. Não se sabe se assim se pensou – e a memória do eterno Ministro
Eduardo Portella não permite o esvaziamento dessa afirmação –, mas foi isso que
se fez.
Mas quando esses
francamente outrora injustiçados começaram a se desligar do cotidiano
universitário por alguma razão feito morte, desmazelo, desilusão, aposentaria
ou idade, na viragem do primeiro para o segundo decênio do século 21, a
tenência da ideia de universidade perdeu o seu lastro. Por conseguinte, as
novas gerações docentes – não raramente muito mais tecnicamente competentes e
preparadas que as anteriores –, por variadas e complexas razões, não
interiorizaram os valores nem os fundamentos fiadores da natureza, do sentido e
da missão da universidade – especialmente da universidade pública – brasileira.
Quem tem dúvidas sobre
isso que retome com paciência, entre outros, o depoimento de Paulo Eduardo
Arantes, em sua longa e complexa entrevista concedida ao site A Terra é
Redonda, em setembro de 2023. Lá ele discorre – com outras categorias, palavras
e sutilezas – amplamente sobre a gravidade desse gap geracional e sobre as suas
implicações para isso que se convenciona chamar universidade pública brasileira
do século XXI. Não há, porquanto, razões para imaginar que tenha sido menos que
isso.
De toda sorte,
voltando-se ou não ao depoimento do professor Paulo Arantes, é consequente se
meditar que, por certo, não foi ao acaso nem sem razão a exteriorização –
leia-se: transferência – da natureza do “silêncio dos intelectuais” de
2005-2010 para o “silêncio da universidade” das noites de junho de 2013 ao 8 de
janeiro de 2023. Esses silêncios, quem sabe até justificáveis e justificados,
causaram danos monstruosamente irreparáveis para o pathos, ethos e logos da
universidade brasileira.
Evidentemente que nada
disso foi simples nem uniforme. Teve o choque da redemocratização, o choque da
expansão universitária e o choque da retração de verba para as universidades
notadamente federais – e, sobre tudo isso, vale reiteradamente menção ao formidável
artigo “Lula e o Ensino Superior” dos professores André Moreira Cunha &
Alessandro Donadio Miebach, publicado recentemente também em A Terra é Redonda
que contaram e ainda contam muito. Tudo foi e continua assim sendo
extraordinariamente complexo. Mas esses “silêncios” vão precisar em algum
momento serem postos em perspectiva para, enfim, receberam melhores elucidações
políticas, intelectuais, morais e reparadoras.
Uma outra camada dessa
imensa cebola talvez remeta a um episódio majoritariamente paulista e uspiano
que, com o tempo, virou nacionalizado e inerente a todas as universidades. Esse
episódio ocorreu em fins de 1990 e, portanto, sob a presidência do professor
Fernando Henrique Cardoso, quando o cotidiano Folha de S. Paulo começou a
“identificar”, “avaliar”, “auferir” e “classificar”, mediante critérios
próprios, a “qualidade”, a “diversidade” e a “profundidade” do que se produzia
dentro da Universidade de São Paulo.
Quem viveu vai se
lembrar que a grita docente dentro e fora da USP foi imensa e que a
incompreensão do conjunto da sociedade educada paulista e brasileira foi ainda
mais ainda.
A torre de marfim
parecia naquilo estar sendo reduzida a escombros e a dimensão preciosa,
invulgar e insondável de toda a sua estrutura começava a ser vandalizada como
jamais se fizera em tempos normais ou de ditadura.
Nesse redemoinho, sem
meias palavras, elementos estrangeiros ao seu convício universitário passavam,
assim, a macular impunemente a sua honra e a sua dignidade da categoria dos
docentes sob o simulacro da transparência da accountability da res publica.
O efeito tardio e
permanente dessa violação seguida de profanaçãofoi a imposição da
interiorização de padrões de conduta, atuação e verificação absolutamente
uniformizados para uma coletividade extremamente diversa, plural e pluralista
que sempre fez e faz a universidade em qualquer lugar mundo e no Brasil em
particular.
Sem adentrar nas
numerosas implicações disso tudo, talvez valha simplesmente considerar a
indecência do produtivismo “acadêmico” como o maior legado dessa infração. Foi
depois dela que o “publico, logo existo” virou o leitmotiv de parcelas
abrangentes da vida universitária em geral e da vida docente universitária em
particular. E, como consequência dela e disso, sem se notar nem antever, o
imperativo público e político da universidade pública brasileira começou a se
implodir.
Dito de outra maneira
e com atenuantes relevantes, virou decisivo reconhecer que essa selva selvagem
do produtivismo e da produtividade apresentou, sim, ganhos extraordinários em
algumas áreas. Mas, no geral, promoveu perdas impiedosas em várias outras áreas
e uma deturpação integral do sentido, da natureza e da significação geral da
universidade.
Note-se que ninguém
minimamente educado ousaria questionar a legitimidade, a autoridade tampouco a
razão existencial de nenhum docente das humanidades – história, letras,
filosofia, artes, música e afins –, por exemplo, no último quartel do século
passado. Entretanto, depois da imposição do império uniforme de produtivismo e
produtividade por aqui deixou de ser assim. E, agora, ao que tudo indica,
começa a ficar difícil de reverter. Duas ou três gerações nascidas ou crescidas
neste século acham que é verdadeiramente assim.
Outros exemplos
sensíveis conexos poderiam ser mobilizados. Mas esse terreno virou sinceramente
minado demais para ser tratado assim tão rápida e tão abertamente. Até porque
ele também possui complexas relações mediadas pela aceleração da
internacionalização do ser, fazer e ter docente no Brasil que demandaria
longuíssimas digressões.
De toda maneira,
mediante esses reduzidos e rudimentares aspectos do problema já é possível se
perceber que algo horrivelmente malcheiroso passou a habitar nesse reino do
saber no Brasil no início do presente século e que tudo ficou ainda mais
malfazejo diante da inacreditável rendição/capitulação, sem combate nem reação,
de variados campos verdejantes da universidade pública brasileira à alucinante,
desrespeitosa e contumaz ofensiva olavista, olavobolsonarista, bolsolavista ou
simplesmente bolsonarista dos últimos anos.
Não dá pra seguir
fingindo que não aconteceu.
Um autoproclamado guru
desde a Virgínia silenciou a totalidade da categoria docente brasileira e
pavimentou a ascensão de um verdadeiro estúpido à presidência da República.
Como reverter esse
trauma?
Com infligir
(auto)perdão aos “silêncios”?
Como se (auto)redimir
da monstruosidade das consequências de toda essa situação?
Como acalentar os
inocentes?
Seguramente – com
todas as vênias – não é promovendo greves por recomposições salariais.
Um curioso artigo do
professor Lorenzo Vitral, da Universidade Federal de Minas Gerais, traduziu
limpidamente num tópico frasal a integralidade do mal-estar que tudo isso
promove ao reportar que “Fizemos o L e estamos em greve”.
“Fizemos o L e estamos
em greve” indica que não há, para o distinto professor mineiro nem para o
conjunto dos integrantes da, segundo a distinta colunista
pernambucano-brasileira do Valor Econômico, “ala mais radicalizada da greve (…)
liderada pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino
Superior (Andes)”, contradição na realização de greve assim, aqui e agora.
Novamente com todas as
demandas de indulgência aos mais exaltados e convencidos da relevância da
greve, sim: existe sim.
Existe sim e
continuará existindo enquanto não se perceber, reconhecer e pautar que não são
pelos centavos nem pela percepção de talos mais verdejante nas relvas dos
vizinhos e sim pela constatação de que a pouca grama rala e seca que do lado de
cá ainda restou está bem perto de desaparecer tornando tudo ao seu redor
deserto, tapera e solidão.
Fonte: Por Daniel
Afonso da Silva, em A Terra é Redonda
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