Governo Lula cita defesa da honra e imagem
em ação contra desinformação sobre tragédia do RS
A AGU (Advocacia-Geral
da União), órgão que representa o governo juridicamente, alegou ofensa à honra
e à imagem da União em ação em que pede direito de resposta por desinformação
sobre a atuação do poder público em meio à tragédia no Rio Grande do Sul (RS).
Marçal, devido a
vídeos com declarações dele de que as Forças Armadas não estariam prestando
auxílio no estado ou que estariam atuando de forma ineficiente.
A ação foi feita por
meio da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, braço da AGU criado no
governo Lula sob a justificativa de coibir desinformação. À frente da AGU está
o advogado-geral da União, Jorge Messias.
Especialistas
consultados pela Folha avaliam, em linhas gerais, que a argumentação de defesa
da honra de ente público é problemática e que, caso ela seja acatada pelo
Judiciário, poderá abrir precedente ruim para a liberdade de expressão.
Segundo a AGU, Marçal
"causou danos à honra objetiva e à imagem de órgão da União, tendo abusado
do direito à liberdade de expressão".
A AGU argumenta que,
apesar de historicamente esses direitos fundamentais "se relacionarem com
os direitos do cidadão em face do poder público", essa interpretação teria
sido ampliada pela doutrina, passando a abarcar pessoas jurídicas.
Na sequência, para
sustentar que tais direitos se aplicam não apenas a pessoas jurídicas de
direito privado, como empresas, mas também ao poder público, a peça da AGU cita
uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) em que foi reconhecida a
possibilidade de indenização por danos morais ao INSS (Instituto Nacional do
Seguro Social).
O precedente citado,
entretanto, envolvia uma fraude de valores vultuosos. Na decisão, inclusive, os
magistrados fazem uma diferenciação do caso analisado frente aos anteriores. Um
deles envolvia, por exemplo, ação indenizatória de município por programas de
rádio e TV locais que faziam críticas ao governo da cidade.
"Nesses
precedentes estava em jogo a livre manifestação do pensamento, a liberdade de
crítica dos cidadãos ou o uso indevido de bem imaterial do ente público",
diz o acórdão do STJ. Segundo a corte, entendimento contrário
"constituiria subversão natural dos direitos fundamentais".
Na representação da
AGU são transcritos dois trechos de falas de Marçal reproduzidas em dois links
em perfis de terceiros.
"Eu num (sic)
entendo é porque um empresário sozinho tem mais helicóptero lá do que a Força
Aérea Brasileira. Até agora não entendi o que é que esse presidente tá
fazendo", diz o coach em um deles.
No outro trecho, ele
afirma que "gente que tem Exército na mão, gente que tem navio de guerra,
não dá conta de fazer nada", repete então que um empresário sozinho enviou
mais aeronaves que a FAB e que é "civil salvando civil".
No texto que o órgão
sugere que deveria ser publicado por Marçal constam, entre outros itens,
informações sobre a quantidade de aeronaves, viaturas, lanchas, botes e outros
equipamentos empregados pelas Forças Armadas no RS.
"Não condiz com a
realidade a omissão atribuída às Forças Armadas brasileiras no enfrentamento
emergencial aos danos causados pelas enchentes no Rio Grande do Sul, assim como
os números de helicópteros e aeronaves disponibilizados especificamente pela
Força Aérea Brasileira", prossegue.
Ana Laura Pereira
Barbosa, pesquisadora da FGV Direito SP e professora de direito da ESPM,
ressalta que a liberdade de expressão não é irrestrita. Ela entende,
entretanto, que presumir que entidades do poder público tenham direito a honra
não é uma boa forma de lidar com desinformação.
"Quando o STJ
lidou com casos relacionados a manifestação de opiniões pelos indivíduos, ele
entendeu que não existia um direito à exigência de indenização por danos morais
por parte de pessoas jurídicas de direito público", diz Ana Laura, que destaca
que o caso do INSS foi estabelecido de forma excepcional e conectada a
consequências ao patrimônio do órgão.
Carlos Affonso Souza,
advogado e diretor do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade), avalia que,
como os precedentes do STJ tratavam de indenização, ao pleitear apenas direito
de resposta, a AGU poderia estar buscando se distanciar um pouco desses casos.
Ele vê com receio uma
eventual banalização deste tipo de ação. "Na maior parte das vezes, vai
estar se falando de uma situação de desequilíbrio de forças entre um particular
e o poder público", diz.
Anderson Schreiber,
que é advogado e professor de direito da UERJ (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro) e da FGV Direito Rio, defende que, em tese, seria possível pleitear
direito de resposta em determinadas situações, mas é crítico do fundamento na
honra.
"Acaba gerando
uma impressão de que o problema é criticar o poder público. O problema não é
criticar o poder público. O problema é atribuir fato objetivamente falso ao
poder público", diz.
Na ação contra Marçal,
a AGU argumenta que a extensão do direito à imagem e honra objetiva às
entidades do poder público seria compatível com a natureza delas, por
representarem "os interesses de toda a coletividade de pessoas, verdadeira
titular desses direitos".
"Não se pode
negar à sociedade (ente público) o direito ao correto entendimento de suas
ações, à respeitabilidade de suas instituições, à veracidade das informações
acerca de seus atos, ou seja, o direito à boa reputação do poder público",
diz.
O órgão diz ainda que
Marçal "extrapola a liberdade de crítica e opinião, tendo em vista que, de
forma intencional, descontextualiza os fatos". Para justificar tal ponto,
entretanto, diz apenas que "a intencionalidade da disseminação da desinformação
está evidenciada sobretudo diante da prestação de informação oficial pela FAB,
em seu sítio eletrônico".
Ivar Hartmann,
professor de direito do Insper, considera ruim que o órgão cite desinformação,
mas não explique qual conceito está utilizando, dado que não há definição na
legislação brasileira.
Assim como os demais
especialistas consultados, ele vê como insuficiente a simples menção à
existência de site do poder público para comprovar a intencionalidade no ato de
disseminar uma informação falsa.
"Uma questão
crucial em relação à própria prática de desinformação é o conhecimento sobre a
falsidade", diz Hartmann.
• Fake news viram arma política na
tragédia climática do RS
Rede organizada de
disparo de notícias falsas por influenciadores e parlamentares da extrema
direita explora discurso “anti-Estado” de olho nas eleições, apontam
especialistas. Em meio ao desastre climático no Rio Grande do Sul, aumentou a
disseminação de desinformação sobre as enchentes por influenciadores e
parlamentares de extrema direita, cujas postagens nas redes sociais estão sob
investigação da Polícia Federal. Nas publicações, eles exaltam o trabalho de
voluntários e atacam a ação de governos e Forças Armadas.
“A desinformação no
Brasil é um fenômeno político. Dependendo da ideologia que a pessoa segue,
escolhe certas fontes. A mediação dos algoritmos sugere outros conteúdos e
outras pessoas para seguir nessa linha. Então, cai no buraco de uma teoria da
conspiração ou desinformação não por ignorância, mas pelos seus valores”,
analisa o professor de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) Yurij Castelfranchi. A catástrofe ambiental, diz, agravou esse fenômeno.
Castelfranchi é
coautor de uma pesquisa recém-lançada que avaliou o consumo de informações
pelos brasileiros. O estudo, produzido pelo Centro de Gestão e Estudos
Estratégicos (CGEE), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, constatou
que o meio ambiente e as mudanças climáticas estão entre os temas de maior
interesse do público (76,2%). No entanto, metade dos entrevistados disse já ter
se deparado com fake news, e 9% admitiram compartilhar esses conteúdos mesmo
sabendo disso.
• Desinformação para propagar visão
“anti-Estado”
Segundo especialistas,
catástrofes climáticas como a enfrentada pelo Rio Grande do Sul favorecem a
circulação de desinformação, propagada por perfis alinhados à extrema direita.
“Pegam no imaginário de uma população extremamente carente, que já tem péssimas
experiências com o setor público e que vai acreditar que há essa sabotagem do
Estado. Isso cria uma má vontade em relação ao trabalho da polícia, do
Exército, e fortalece os amadores e influenciadores”, explica Fabrício Pontin,
professor de Relações Internacionais da Universidade LaSalle, de Canoas (RS),
região atingida pelas chuvas.
O aumento na
disseminação de fake news sobre a tragédia climática foi constatado pelo grupo
de pesquisa da USP Monitor Político, que analisa a polarização do debate
político. Emnota técnica, eles apontam que “a profusão de mensagens indicava
que o fenômeno era muito significativo”, com praticamente uma em cada três
mensagens publicadas no X (antigo Twitter) adotando um tom “anti-Estado”.
• Antagonismo entre voluntários e governo
Entre as postagens
falsas compartilhadas estão a que relatava que a entrada de caminhões com
doações para as vítimas tinha sido barrada pela Receita Federal e que
voluntários em barcos e helicópteros foram impedidos de realizar resgates.
Outra dizia que a cantora Madonna doou R$ 10 milhões às vítimas. Em comum, as
publicações exaltam a solidariedade de voluntários em oposição a uma suposta
falência do Estado.
Outra notícia falsa de
alcance local alega que pessoas com uniforme do Departamento Municipal de Águas
e Esgoto (Dmae) de Porto Alegre estão assaltando casas. Como resultado,
moradores passaram a barrar os servidores públicos.
“As consequências
políticas desse tipo de disseminação são enormes, são danosas, podem custar
vidas. Estamos gastando o dobro de energia para alertar sobre notícias falsas
ao invés de orientar as pessoas sobre como devem deixar suas casas”, alerta
Pontin.
Segundo o professor,
os grupos que espalham fake news testaram vários tipos de notícias falsas. As
mais bem sucedidas não promoviam o negacionismo climático, mas sim o discurso
de que a atuação do governo está atrapalhando o trabalho dos voluntários.
“Tem um interesse
muito claro de agentes políticos em fazer circular informação que ataque o
grupo político oposto”, afirma o jornalista Alisson Coelho, que atua
desmentindo esses boatos em Novo Hamburgo (RS). “A ideia de que o Estado só
atrapalha é mais próxima da centro-direita.”
Coelho diz que esse
tipo de conteúdo começou a ser compartilhado em perfis pequenos, com até 2 mil
seguidores, mas explodiu quando foi amplificado por influenciadores e
políticos, reforçando a polarização entre direita e esquerda.
• Tragédia climática como plataforma de
campanha
Para especialistas, a
mobilização da desinformação sobre a tragédia climática pela extrema direita é
uma estratégia para ganhar espaço nas eleições municipais de outubro.
Essa tendência de
compartilhamento organizado de notícias falsas é observada no Brasil desde
2016, e se intensificou nas campanhas eleitorais.
Doutor em comunicação
e professor da Universidade do Rio dos Sinos (Unisinos), Christian Gonzatti
explica que a performance digital dos políticos visa manter o eleitorado
engajado. “Precisam desse diálogo com o público para ter poder. Apelam à ideia
de um perigo que precisa ser denunciado para ganhar visibilidade e depois
convertê-la em outras formas de poder.”
Segundo Pontin, esses
grupos por onde a desinformação circula amplificam perfis de possíveis
candidatos que defendem pautas neoliberais de redução do Estado e negacionismo
climático. O discurso cola no público “não porque são contra o meio ambiente,
mas porque têm medo das consequências de ter que mudar o paradigma”. “Assim,
criam-se lideranças que podem ser candidatas na eleição”, diz.
• Por que as plataformas alimentam essa
dinâmica
Segundo Gonzatti, a
própria arquitetura da informação das redes sociais favorece a circulação de
notícias falsas. “As redes são construídas para manter os usuários o máximo de
tempo possível consumindo conteúdo em sequência. Por isso não vão confrontá-las
na sua visão de mundo, porque precisam desse ambiente que prende a atenção.
Isso dá retorno financeiro para as plataformas”, afirma.
Pontin explica que a
reprodução de fake news em grupos de mensagem ajuda a manter os participantes
coesos. “Quando o conteúdo começa a se propagar e viralizar dentro dessas
comunidades, a opinião se consolida. E isso tem consequências enormes, pois se
isso se dá em cima de uma notícia falsa, fica muito difícil reverter isso.”
Ele aponta que a
disseminação de notícias falsas, além de estratégia política, é também um
modelo de negócios. “As plataformas recompensam a atenção, só que não fazem
distinção entre atenção ruim e boa. O conteúdo que gera atenção é recompensado,
e as plataformas o mantém em circulação. Por mais que tentem fazer uma
checagem, algumas com maior ou menor boa vontade, há um incentivo para que
produtores façam esse tipo de conteúdo e recebam valores por isso.”
• Ações governamentais
A narrativa de omissão
por parte das autoridades é falsa. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
nomeou o ministro Paulo Pimenta para a secretaria extraordinária de
reconstrução do Rio Grande do Sul, e anunciou um pacote de R$ 50 bilhões que
prevê, entre outras medidas, o pagamento de benefícios e auxílios às pessoas
afetadas pelas enchentes.
O resgate e medidas de
infraestrutura demandam um grande aparato. Segundo balanço do Exército, mais de
33 mil militares, policiais e agentes estão envolvidos nas ações de socorro ao
estado, que teve 461 cidades atingidas pelas enchentes. Para isso, foram
destinadas à operação 5,1 mil viaturas e 90 equipamentos de engenharia, além de
80 aviões, 410 embarcações, seis navios multitarefas e nove hospitais de
campanha. O governador Eduardo Leite (PSDB) estima em R$ 19 bilhões os custos
da reconstrução do estado.
O governo reagiu à
campanha de fake news sobre a tragédia denunciando o caso à PF. Segundo a
Advocacia-Geral da União (AGU), o objetivo é “evitar que o esforço de
enfrentamento da calamidade seja prejudicado pela desinformação”. O inquérito
tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) sob relatoria da ministra Cármen
Lúcia.
• Governos contribuíram para a catástrofe
climática
Apesar de os governos
estarem reagindo ao desastre climático, eles ignoraram alertas de pesquisadores
do clima e contribuíram para o desmonte de políticas ambientais.
A ONG Observatório do
Clima mapeou 25 projetos de lei e três propostas de emenda à Constituição
(PECs) em tramitação no Congresso que enfraquecem a proteção ao meio ambiente.
As medidas preveem a redução da reserva legal na Amazônia, obras de irrigação em
áreas de proteção permanente e relaxamento das regras de licenciamento
ambiental, dentre outras mudanças.
Fonte: FolhaPress
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