terça-feira, 21 de maio de 2024

Governo Lula cita defesa da honra e imagem em ação contra desinformação sobre tragédia do RS

A AGU (Advocacia-Geral da União), órgão que representa o governo juridicamente, alegou ofensa à honra e à imagem da União em ação em que pede direito de resposta por desinformação sobre a atuação do poder público em meio à tragédia no Rio Grande do Sul (RS).

Marçal, devido a vídeos com declarações dele de que as Forças Armadas não estariam prestando auxílio no estado ou que estariam atuando de forma ineficiente.

A ação foi feita por meio da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, braço da AGU criado no governo Lula sob a justificativa de coibir desinformação. À frente da AGU está o advogado-geral da União, Jorge Messias.

Especialistas consultados pela Folha avaliam, em linhas gerais, que a argumentação de defesa da honra de ente público é problemática e que, caso ela seja acatada pelo Judiciário, poderá abrir precedente ruim para a liberdade de expressão.

Segundo a AGU, Marçal "causou danos à honra objetiva e à imagem de órgão da União, tendo abusado do direito à liberdade de expressão".

A AGU argumenta que, apesar de historicamente esses direitos fundamentais "se relacionarem com os direitos do cidadão em face do poder público", essa interpretação teria sido ampliada pela doutrina, passando a abarcar pessoas jurídicas.

Na sequência, para sustentar que tais direitos se aplicam não apenas a pessoas jurídicas de direito privado, como empresas, mas também ao poder público, a peça da AGU cita uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) em que foi reconhecida a possibilidade de indenização por danos morais ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).

O precedente citado, entretanto, envolvia uma fraude de valores vultuosos. Na decisão, inclusive, os magistrados fazem uma diferenciação do caso analisado frente aos anteriores. Um deles envolvia, por exemplo, ação indenizatória de município por programas de rádio e TV locais que faziam críticas ao governo da cidade.

"Nesses precedentes estava em jogo a livre manifestação do pensamento, a liberdade de crítica dos cidadãos ou o uso indevido de bem imaterial do ente público", diz o acórdão do STJ. Segundo a corte, entendimento contrário "constituiria subversão natural dos direitos fundamentais".

Na representação da AGU são transcritos dois trechos de falas de Marçal reproduzidas em dois links em perfis de terceiros.

"Eu num (sic) entendo é porque um empresário sozinho tem mais helicóptero lá do que a Força Aérea Brasileira. Até agora não entendi o que é que esse presidente tá fazendo", diz o coach em um deles.

No outro trecho, ele afirma que "gente que tem Exército na mão, gente que tem navio de guerra, não dá conta de fazer nada", repete então que um empresário sozinho enviou mais aeronaves que a FAB e que é "civil salvando civil".

No texto que o órgão sugere que deveria ser publicado por Marçal constam, entre outros itens, informações sobre a quantidade de aeronaves, viaturas, lanchas, botes e outros equipamentos empregados pelas Forças Armadas no RS.

"Não condiz com a realidade a omissão atribuída às Forças Armadas brasileiras no enfrentamento emergencial aos danos causados pelas enchentes no Rio Grande do Sul, assim como os números de helicópteros e aeronaves disponibilizados especificamente pela Força Aérea Brasileira", prossegue.

Ana Laura Pereira Barbosa, pesquisadora da FGV Direito SP e professora de direito da ESPM, ressalta que a liberdade de expressão não é irrestrita. Ela entende, entretanto, que presumir que entidades do poder público tenham direito a honra não é uma boa forma de lidar com desinformação.

"Quando o STJ lidou com casos relacionados a manifestação de opiniões pelos indivíduos, ele entendeu que não existia um direito à exigência de indenização por danos morais por parte de pessoas jurídicas de direito público", diz Ana Laura, que destaca que o caso do INSS foi estabelecido de forma excepcional e conectada a consequências ao patrimônio do órgão.

Carlos Affonso Souza, advogado e diretor do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade), avalia que, como os precedentes do STJ tratavam de indenização, ao pleitear apenas direito de resposta, a AGU poderia estar buscando se distanciar um pouco desses casos.

Ele vê com receio uma eventual banalização deste tipo de ação. "Na maior parte das vezes, vai estar se falando de uma situação de desequilíbrio de forças entre um particular e o poder público", diz.

Anderson Schreiber, que é advogado e professor de direito da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da FGV Direito Rio, defende que, em tese, seria possível pleitear direito de resposta em determinadas situações, mas é crítico do fundamento na honra.

"Acaba gerando uma impressão de que o problema é criticar o poder público. O problema não é criticar o poder público. O problema é atribuir fato objetivamente falso ao poder público", diz.

Na ação contra Marçal, a AGU argumenta que a extensão do direito à imagem e honra objetiva às entidades do poder público seria compatível com a natureza delas, por representarem "os interesses de toda a coletividade de pessoas, verdadeira titular desses direitos".

"Não se pode negar à sociedade (ente público) o direito ao correto entendimento de suas ações, à respeitabilidade de suas instituições, à veracidade das informações acerca de seus atos, ou seja, o direito à boa reputação do poder público", diz.

O órgão diz ainda que Marçal "extrapola a liberdade de crítica e opinião, tendo em vista que, de forma intencional, descontextualiza os fatos". Para justificar tal ponto, entretanto, diz apenas que "a intencionalidade da disseminação da desinformação está evidenciada sobretudo diante da prestação de informação oficial pela FAB, em seu sítio eletrônico".

Ivar Hartmann, professor de direito do Insper, considera ruim que o órgão cite desinformação, mas não explique qual conceito está utilizando, dado que não há definição na legislação brasileira.

Assim como os demais especialistas consultados, ele vê como insuficiente a simples menção à existência de site do poder público para comprovar a intencionalidade no ato de disseminar uma informação falsa.

"Uma questão crucial em relação à própria prática de desinformação é o conhecimento sobre a falsidade", diz Hartmann.

 

•        Fake news viram arma política na tragédia climática do RS

 

Rede organizada de disparo de notícias falsas por influenciadores e parlamentares da extrema direita explora discurso “anti-Estado” de olho nas eleições, apontam especialistas. Em meio ao desastre climático no Rio Grande do Sul, aumentou a disseminação de desinformação sobre as enchentes por influenciadores e parlamentares de extrema direita, cujas postagens nas redes sociais estão sob investigação da Polícia Federal. Nas publicações, eles exaltam o trabalho de voluntários e atacam a ação de governos e Forças Armadas.

“A desinformação no Brasil é um fenômeno político. Dependendo da ideologia que a pessoa segue, escolhe certas fontes. A mediação dos algoritmos sugere outros conteúdos e outras pessoas para seguir nessa linha. Então, cai no buraco de uma teoria da conspiração ou desinformação não por ignorância, mas pelos seus valores”, analisa o professor de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Yurij Castelfranchi. A catástrofe ambiental, diz, agravou esse fenômeno.

Castelfranchi é coautor de uma pesquisa recém-lançada que avaliou o consumo de informações pelos brasileiros. O estudo, produzido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, constatou que o meio ambiente e as mudanças climáticas estão entre os temas de maior interesse do público (76,2%). No entanto, metade dos entrevistados disse já ter se deparado com fake news, e 9% admitiram compartilhar esses conteúdos mesmo sabendo disso.

•        Desinformação para propagar visão “anti-Estado”

Segundo especialistas, catástrofes climáticas como a enfrentada pelo Rio Grande do Sul favorecem a circulação de desinformação, propagada por perfis alinhados à extrema direita. “Pegam no imaginário de uma população extremamente carente, que já tem péssimas experiências com o setor público e que vai acreditar que há essa sabotagem do Estado. Isso cria uma má vontade em relação ao trabalho da polícia, do Exército, e fortalece os amadores e influenciadores”, explica Fabrício Pontin, professor de Relações Internacionais da Universidade LaSalle, de Canoas (RS), região atingida pelas chuvas.

O aumento na disseminação de fake news sobre a tragédia climática foi constatado pelo grupo de pesquisa da USP Monitor Político, que analisa a polarização do debate político. Emnota técnica, eles apontam que “a profusão de mensagens indicava que o fenômeno era muito significativo”, com praticamente uma em cada três mensagens publicadas no X (antigo Twitter) adotando um tom “anti-Estado”.

•        Antagonismo entre voluntários e governo

Entre as postagens falsas compartilhadas estão a que relatava que a entrada de caminhões com doações para as vítimas tinha sido barrada pela Receita Federal e que voluntários em barcos e helicópteros foram impedidos de realizar resgates. Outra dizia que a cantora Madonna doou R$ 10 milhões às vítimas. Em comum, as publicações exaltam a solidariedade de voluntários em oposição a uma suposta falência do Estado.

Outra notícia falsa de alcance local alega que pessoas com uniforme do Departamento Municipal de Águas e Esgoto (Dmae) de Porto Alegre estão assaltando casas. Como resultado, moradores passaram a barrar os servidores públicos.

“As consequências políticas desse tipo de disseminação são enormes, são danosas, podem custar vidas. Estamos gastando o dobro de energia para alertar sobre notícias falsas ao invés de orientar as pessoas sobre como devem deixar suas casas”, alerta Pontin.

Segundo o professor, os grupos que espalham fake news testaram vários tipos de notícias falsas. As mais bem sucedidas não promoviam o negacionismo climático, mas sim o discurso de que a atuação do governo está atrapalhando o trabalho dos voluntários.

“Tem um interesse muito claro de agentes políticos em fazer circular informação que ataque o grupo político oposto”, afirma o jornalista Alisson Coelho, que atua desmentindo esses boatos em Novo Hamburgo (RS). “A ideia de que o Estado só atrapalha é mais próxima da centro-direita.”

Coelho diz que esse tipo de conteúdo começou a ser compartilhado em perfis pequenos, com até 2 mil seguidores, mas explodiu quando foi amplificado por influenciadores e políticos, reforçando a polarização entre direita e esquerda.

•        Tragédia climática como plataforma de campanha

Para especialistas, a mobilização da desinformação sobre a tragédia climática pela extrema direita é uma estratégia para ganhar espaço nas eleições municipais de outubro.

Essa tendência de compartilhamento organizado de notícias falsas é observada no Brasil desde 2016, e se intensificou nas campanhas eleitorais.

Doutor em comunicação e professor da Universidade do Rio dos Sinos (Unisinos), Christian Gonzatti explica que a performance digital dos políticos visa manter o eleitorado engajado. “Precisam desse diálogo com o público para ter poder. Apelam à ideia de um perigo que precisa ser denunciado para ganhar visibilidade e depois convertê-la em outras formas de poder.”

Segundo Pontin, esses grupos por onde a desinformação circula amplificam perfis de possíveis candidatos que defendem pautas neoliberais de redução do Estado e negacionismo climático. O discurso cola no público “não porque são contra o meio ambiente, mas porque têm medo das consequências de ter que mudar o paradigma”. “Assim, criam-se lideranças que podem ser candidatas na eleição”, diz.

•        Por que as plataformas alimentam essa dinâmica

Segundo Gonzatti, a própria arquitetura da informação das redes sociais favorece a circulação de notícias falsas. “As redes são construídas para manter os usuários o máximo de tempo possível consumindo conteúdo em sequência. Por isso não vão confrontá-las na sua visão de mundo, porque precisam desse ambiente que prende a atenção. Isso dá retorno financeiro para as plataformas”, afirma.

Pontin explica que a reprodução de fake news em grupos de mensagem ajuda a manter os participantes coesos. “Quando o conteúdo começa a se propagar e viralizar dentro dessas comunidades, a opinião se consolida. E isso tem consequências enormes, pois se isso se dá em cima de uma notícia falsa, fica muito difícil reverter isso.”

Ele aponta que a disseminação de notícias falsas, além de estratégia política, é também um modelo de negócios. “As plataformas recompensam a atenção, só que não fazem distinção entre atenção ruim e boa. O conteúdo que gera atenção é recompensado, e as plataformas o mantém em circulação. Por mais que tentem fazer uma checagem, algumas com maior ou menor boa vontade, há um incentivo para que produtores façam esse tipo de conteúdo e recebam valores por isso.”

•        Ações governamentais

A narrativa de omissão por parte das autoridades é falsa. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nomeou o ministro Paulo Pimenta para a secretaria extraordinária de reconstrução do Rio Grande do Sul, e anunciou um pacote de R$ 50 bilhões que prevê, entre outras medidas, o pagamento de benefícios e auxílios às pessoas afetadas pelas enchentes.

O resgate e medidas de infraestrutura demandam um grande aparato. Segundo balanço do Exército, mais de 33 mil militares, policiais e agentes estão envolvidos nas ações de socorro ao estado, que teve 461 cidades atingidas pelas enchentes. Para isso, foram destinadas à operação 5,1 mil viaturas e 90 equipamentos de engenharia, além de 80 aviões, 410 embarcações, seis navios multitarefas e nove hospitais de campanha. O governador Eduardo Leite (PSDB) estima em R$ 19 bilhões os custos da reconstrução do estado.

O governo reagiu à campanha de fake news sobre a tragédia denunciando o caso à PF. Segundo a Advocacia-Geral da União (AGU), o objetivo é “evitar que o esforço de enfrentamento da calamidade seja prejudicado pela desinformação”. O inquérito tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) sob relatoria da ministra Cármen Lúcia.

•        Governos contribuíram para a catástrofe climática

Apesar de os governos estarem reagindo ao desastre climático, eles ignoraram alertas de pesquisadores do clima e contribuíram para o desmonte de políticas ambientais.

A ONG Observatório do Clima mapeou 25 projetos de lei e três propostas de emenda à Constituição (PECs) em tramitação no Congresso que enfraquecem a proteção ao meio ambiente. As medidas preveem a redução da reserva legal na Amazônia, obras de irrigação em áreas de proteção permanente e relaxamento das regras de licenciamento ambiental, dentre outras mudanças.

 

Fonte: FolhaPress

 

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