'Fiz uma descoberta importante sobre o
vírus que matou meu pai', diz pesquisadora
Os cientistas costumam usar
termos técnicos, descritivos e impessoais para explicar um determinado trabalho
que acabaram de publicar. Mas a brasileira Marcella Cardoso classifica o seu
artigo acadêmico mais recente como uma "carta de amor".
A pesquisa à qual ela
se refere foi realizada na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e divulgada pela Cell, uma das
revistas acadêmicas mais prestigiadas do mundo.
O trabalho permitiu
desvendar um importante mecanismo por trás dos casos graves de covid-19 e abre alas para
novos tratamentos contra doenças
virais no futuro.
A infecção pelo coronavírus, aliás, foi a doença
que matou o pai dela — para quem é endereçada a tal carta de amor.
A perda precoce
motivou uma verdadeira virada de chave na carreira da pesquisadora — que foi
diretamente influenciada por uma série de eventos globais, profissionais e
pessoais.
Mas, para entender
como a cientista chegou até aqui, é preciso dar alguns passos para trás e
entender de onde ela veio.
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A educação liberta
Nascida e criada no
interior paulista, Cardoso precisou lidar com exigências e altas expectativas
desde a infância.
A mãe dela, Regina
Cardoso, era professora da rede pública e privada — e, com seis anos, a menina
foi matriculada numa escola particular, onde tinha uma bolsa de estudos
oferecida aos filhos de funcionários da instituição.
"Essa bolsa
sempre esteve atrelada ao meu desempenho escolar, então eu precisava tirar boas
notas e aprendi cedo a ser muito aplicada nos estudos", diz.
Ela se lembra da
disparidade econômica entre a família dela e dos colegas de classe. "Para
minha mãe conseguir sustento, ela trabalhava três turnos, manhã, tarde e noite.
Nossa casa era extremamente simples."
Cardoso lembra de uma
frase que a mãe disse à época. "Ela me falou: 'Marcela, o estudo é a
maneira de você mudar a realidade e ter um futuro". Essa ideia me
acompanha até hoje."
Na adolescência, após
alguns vestibulares frustrados, ela finalmente foi aprovada no curso de
Ciências Biológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), também no
interior de São Paulo.
"Nos últimos anos
de faculdade, em meados de 2011, fiz uma iniciação científica e realmente me
apaixonei pela área de pesquisa", destaca ela.
A iniciação científica
mencionada pela especialista é um projeto feito por alunos do Ensino Médio ou
da graduação universitária, com a orientação de professores. O objetivo aqui é
estimular a produção do conhecimento nas primeiras etapas da formação intelectual
e acadêmica.
Com o diploma em mãos,
Cardoso foi direto para o mestrado na Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde se especializou em saúde
materna.
Com mais essa etapa
concluída, ela seguiu para o doutorado na mesma Unicamp, onde mergulhou no
campo da oncologia ginecológica e mamária.
"O doutorado foi
um divisor de águas. Tive a primeira oportunidade de fazer um estágio fora do
país em Barcelona, na Espanha", conta ela.
Em 2019, quando estava
prestes a completar o doutorado, Cardoso ficou sabendo de uma oportunidade pela
qual ansiava há tempos: a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), órgão vinculado ao Governo Federal, havia aberto um edital de
mobilidade internacional, para alunos que desejavam estudar fora.
"Eu tinha que
jogar para ganhar. Então, antes mesmo de fazer a inscrição no edital, eu entrei
em contato com um grupo de pesquisa da Escola de Medicina de Harvard, fiz uma
série de entrevistas e fui selecionada para uma vaga."
"Com isso, me
candidatei à bolsa da Capes com essa carta na manga e acabei aprovada."
Cardoso chegou aos
Estados Unidos no finalzinho de janeiro de 2020 e viveu quase um mês de
normalidade — até que março chegou e trouxe junto a pandemia de covid-19.
"Eu trabalhei de
casa por algum tempo, mas minhas pesquisas eram realizadas no Massachusetts
General Hospital, que está entre os maiores centros médicos dos EUA. Então logo
voltamos ao presencial", diz ela.
Em fevereiro de 2021,
passado quase um ano desde que o coronavírus se espalhou pelo mundo, a
cientista recebeu uma notícia decisiva. "Meu pai me ligou para dizer que
tinha testado positivo para covid."
·
Salto de fé 1
Após a fatídica
ligação, Cardoso começou a bolar um plano. "Eu já tinha tomado a primeira
dose da vacina e recebi o treinamento sobre como lidar com pacientes com
covid-19", resume.
Ela pensou que, ao
tomar a segunda dose, poderia retornar ao Brasil para ficar perto do pai, o
corretor de imóveis Luiz Carlos Cardoso.
Mas a decisão de
voltar ao país significava uma encruzilhada para a cientista. "O Brasil
vivia uma das piores ondas da pandemia e o consulado dos Estados Unidos estava
completamente fechado", diz.
"Se eu fosse ao
Brasil, não existia qualquer garantia de que conseguiria voltar para os EUA e
terminar o meu doutorado aqui."
Para ela, tomar uma
decisão desse tamanho foi algo muito cruel. "Tive que dar esse salto de
fé. Eu precisava ver meu pai… Na verdade, algo já dizia dentro de mim que seria
uma despedida e eu precisava ao menos dar um enterro digno a ele."
Enquanto planejava o
retorno, Cardoso tentava acompanhar a saúde do pai à distância.
Nesse meio tempo, Luiz
Carlos teve uma piora do quadro e precisou ser internado numa Unidade de
Terapia Intensiva (UTI) de um hospital público localizado em Campinas.
"É torturante
lidar com o silêncio. Fiquei sem notícias do meu pai durante quase 48
horas."
A cientista descobriu
o telefone da UTI do hospital e, após diversas tentativas frustradas de
ligação, alguém atendeu do outro lado. "Eu me lembro da adrenalina que
senti. Pedi informação e a pessoa me respondeu que não estava autorizada a
falar."
"Eu estava de
joelhos e implorei para que ela apenas me dissesse se meu pai estava
vivo."
De volta ao Brasil, a
única coisa que Cardoso conseguiu fazer foi uma reunião com a médica
responsável pela UTI onde o pai estava. Mesmo vacinada e com treinamento, ela
não foi autorizada a visitá-lo.
"Eu queria muito
ver meu pai, para poder me despedir dele."
No dia 14 de março de
2021, Luiz Carlos morreu de covid.
"Ele faleceu por
volta do meio dia, mas só recebemos a ligação para irmos ao hospital no final
da noite. Quando me informaram da morte, pediram que eu reconhecesse o corpo
dele."
"Quer dizer, eu
não podia me despedir do meu pai pelo risco do contato com alguém infectado,
mas agora que ele morreu tudo bem eu ir lá?"
"Isso mostra como
a situação estava dramática no Brasil. Não culpo a equipe do hospital, porque
sei que eles estavam fazendo o melhor possível diante das condições."
Cardoso diz que a
penúria se prolongou por dias. "Após a morte, tive que ligar para as
pessoas e pedir para que elas não fossem no velório."
"Minha mãe mesmo
ficou em casa. Imagina, você perder a pessoa que mais ama e não poder nem se
consolar com amigos e familiares…Eu mesma não pude abraçar minha mãe naquele
momento."
"Foi tudo muito
dramático. Meu pai morreu sem ter ao menos a oportunidade de tomar a
vacina", complementa ela.
·
Salto de fé 2
"Meu pai faleceu
em março de 2021. Mas, como o mundo não para, precisei recolher os pedaços do
meu coração, porque no mês seguinte eu tinha que fazer o exame de qualificação
para o doutorado", continua Cardoso.
O tal exame de
qualificação é uma das etapas mais importantes da formação. Ela ocorre antes de
o aluno fazer a defesa da tese, em que reúne todas as informações daquilo que
pesquisou até aquele momento e, caso seja aprovado, ganha o título de doutor.
E, para fechar essa
etapa da carreira acadêmica, a cientista precisava voltar a Harvard.
"Mas as
embaixadas e os consulados americanos estavam fechados. Descobri que, naquele
momento, só existiam três exceções em que se permitia a alguém entrar nos EUA:
se você estivesse fazendo um tratamento médico, se tivesse um filho no país ou
se era pesquisador e estivesse trabalhando em temas relacionados à saúde, ou
mais especificamente à covid."
Como se encaixava no
terceiro grupo, a brasileira pediu que os colegas da universidade fizessem uma
carta para solicitar o retorno dela às terras americanas.
Quatro meses depois,
em meados de julho de 2021, ela tinha toda a papelada em mãos e obteve a
autorização para regressar.
De volta à bancada do
laboratório, Cardoso enfrentou novas dificuldades. "A bolsa que eu ganhava
da Capes acabou e tive que dar um novo salto de fé. Precisei morar de favor
durante alguns meses, porque Boston é uma cidade muito cara."
Nesse período, ela
também sofreu um acidente grave. "Eu estava vestida com uma camisa larga,
de material sintético, que por acaso me lembrava muito o meu pai."
"Me aproximei de
um balcão, onde havia acendido uma vela aromática."
"Em questão de
segundos, a camisa estava em chamas. Tive queimaduras de segundo e terceiro
grau", diz ela.
Cardoso diz que sentiu
muita dor, mas não conseguia chorar. "Não sou uma pessoa que tem aquela
positividade tóxica. Mas, naquele momento, lembro de ter pensado: 'Marcela,
você acabou de enterrar o seu pai. Nada pode ser pior do que isso'."
Recuperada do
acidente, Cardoso finalmente defendeu o doutorado em setembro de 2021 — e já
havia engatilhado um pós-doutorado na sequência.
Em outubro, ela
começou a nova etapa da carreira acadêmica no Instituto Ragon, um centro de
referência em imunologia, mantido por Harvard, Massachusetts Institute of
Technology (MIT) e Massachusetts General Hospital.
"A priori, fui
contratada para fazer estudos sobre imunoterapia e câncer de mama."
"Mas estávamos no
meio da pandemia e, com uma certa audácia, perguntei se eles deixariam que eu
liderasse uma linha de pesquisas sobre a covid-19. E eles disseram que
sim."
·
'Minha pesquisa
composta por sangue latino'
O trabalho encabeçado
por Cardoso tinha como objetivo principal responder uma questão: por que
algumas pessoas, mesmo jovens e saudáveis, sem nenhuma comorbidade, desenvolvem
a forma grave da covid-19 e precisam ser internadas e intubadas?
"O que acontece
que o sistema imunológico desses indivíduos não consegue contra-atacar a
infecção?", questiona ela.
A curiosidade, aliás,
tem a ver com a história do próprio pai dela que, apesar de estar com 67 anos,
não possuía nenhuma condição de saúde mais preocupante.
"Quando meu pai
morreu, eu criei um compromisso comigo mesmo de, a partir da minha bagagem
acadêmica, usar minha inteligência, criatividade e senso crítico para fazer
algo significativo sobre a covid", relata.
Outro cuidado de
Cardoso foi trazer o Brasil para a pesquisa. Ela estabeleceu uma parceria com
especialistas do Hospital de Clínicas da Unicamp, que enviaram amostras de
sangue colhidas de pacientes que desenvolveram a covid grave.
Esse material foi
usado para observar em detalhes como as células se comportam diante de um
ataque viral.
"Geralmente, as
pesquisas relacionadas ao Brasil carregam o estigma da escassez e das doenças
típicas do terceiro mundo. Mas gostaria que nosso país pudesse ser olhado sob
outro prisma."
"Eu queria que a
minha pesquisa fosse composta por sangue latino", brinca ela.
Como Cardoso tinha
acesso a um laboratório com altíssimo nível de biossegurança, ela podia
trabalhar diretamente com o coronavírus em carne e osso (ou proteínas e ácidos
nucleicos, para ser mais exato). "Nós nos vestimos com roupas especiais,
parecíamos astronautas", caracteriza a cientista.
O trabalho consistia
basicamente em testar uma a uma as dezenas de proteínas do coronavírus, para
ver se alguma estava relacionada à gravidade da infecção.
Foi aí que a
pesquisadora brasileira encontrou a ORF6, uma proteína produzida pelo genoma do
Sars-CoV-2 (o patógeno causador da covid).
E aqui vale uma breve
aula de biologia. Quando uma célula do nosso corpo está doente — foi infectada
por um vírus, por exemplo — ela "ganha" receptores na superfície
chamados MIC-A e MIC-B.
Esses tais receptores
servem como uma pista para que células do sistema imunológico conhecidas como
NK (sigla em inglês para natural killers, algo como ‘assassinos naturais’)
entrem em ação.
Como o próprio nome
sugere, as NK matam as células doentes para evitar que o problema cresça, se
agrave ou se espalhe.
"É como se as
células NK fossem os guardiões do nosso corpo, patrulhando constantemente para
detectar e destruir qualquer célula que tenha sido comprometida por um
vírus", explica Cardoso.
Mas o coronavírus
encontrou uma maneira de "driblar" essa camada de proteção do nosso
corpo. Aquela proteína ORF6 fabricada pelo patógeno inibe os receptores MIC-A e
MIC-B que deveriam aparecer nas células doentes.
Sem esse sinal, as
células NK não detectam o perigo — e o coronavírus fica quietinho dentro da
célula, usando todo o maquinário biológico para criar novas cópias de si mesmo,
que vão repetir esse processo em outras partes do organismo.
E esse fenômeno,
conhecido no meio científico como evasão imune, acontece de forma mais
pronunciada justamente nos pacientes com covid grave.
"Foi um trabalho
muito exaustivo", admite a cientista.
"Tivemos que
comprovar esse mecanismo de diferentes maneiras, para ter certeza que ele de
fato está envolvido com a gravidade da infecção."
Mas a pesquisa feita
por Cardoso foi além: o time de especialistas decidiu avaliar se um remédio
experimental chamado 7C6, da classe dos anticorpos monoclonais, poderia servir
de proteção para esses indivíduos.
"Esse anticorpo
se liga ao MIC-A e MIC-B da célula e serve como uma espécie de escudo. Com
isso, a proteína ORF6 do coronavírus não consegue varrer esses
receptores", explica ela.
Daí, com os tais
receptores ativados, as células NK podem fazer o trabalho de eliminar as
unidades doentes antes que o agente infeccioso cause um estrago muito grande.
·
Carta de amor
Na prática, esses
resultados obtidos no experimento abrem a possibilidade de novos tratamentos
contra a covid e contra outras doenças infecciosas no futuro.
"Atualmente,
estamos fazendo testes pré-clínicos, com camundongos geneticamente modificados,
que são um modelo mais próximo do ser humano", conta ela.
Segundo Cardoso,
pesquisas como a dela constroem uma espécie de alicerce para entender melhor
outras infecções virais no futuro.
"Imagina tudo o
que tivemos que construir e aprender a ferro e fogo durante a pandemia de
covid-19", reflete.
"Quando vier a
próxima pandemia, e é só uma questão de tempo para termos outra, conhecer a
ORF6 pode ser determinante para termos um prognóstico diferente."
A brasileira também se
incomoda com o fato de olharmos a covid-19 como algo que ficou no passado.
"A doença ainda
afeta pessoas hoje e precisamos continuar a dar a importância devida a
ela."
Os resultados da
pesquisa, que detalha o papel da ORF6 e o potencial terapêutico da molécula
7C6, foram publicadas no final de abril na Cell, uma publicação acadêmica que está entre as mais prestigiadas
no ramo das ciências biológicas, ao lado de Science e Nature.
O artigo contou com a
supervisão dos pesquisadores Wilfredo F. Garcia-Beltran e Julie Boucau e teve a
contribuição do aluno de mestrado Jordan Hartmann, que divide a autoria da
publicação com Cardoso.
"Para você ter
ideia do rigor desse processo, nós submetemos o artigo para publicação em 25 de
julho de 2023 e ele foi oficialmente aceito apenas em março de 2024",
informa a cientista.
A coincidência de
datas, aliás, não passou despercebida por ela.
"O aceite da
publicação do estudo veio exatamente três anos depois que meu pai morreu."
Mais do que apenas uma
descoberta técnica e científica, Cardoso classifica o trabalho como uma espécie
de homenagem.
"Esse artigo é
uma carta de amor que escrevi para meu pai", conclui ela.
Fonte: BBC News Brasil
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