'Estudantes protestam como contra o
Vietnã': a crise nas universidades dos EUA por guerra em Gaza
"Trouxe meus
filhos para inspirá-los", diz Shaan Sethi enquanto levanta as crianças, de
7 e 9 anos, para que possam enxergar o que está além do bloqueio da segurança.
Estamos na
Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA, na sigla em ingês), uma das
mais prestigiosas instituições de ensino superior dos Estados Unidos.
Do outro lado da cerca
dupla, vigiada por agentes e "decorada" com faixas que dizem
"Palestina Livre" ou "Parem o Genocídio", cerca de duzentos
estudantes acampam desde quinta-feira (25/4) para exigir que a instituição se
dissocie de empresas e indivíduos que "estão se beneficiando" da
operação militar israelense em Gaza.
A incursão militar
começou como uma retaliação ao ataque de 7 de outubro perpetrado por militantes
do Hamas, que deixou 1.200 mortos e 240 reféns, segundo o governo israelense.
Desde então, a
operação militar já custou a vida de mais de 34 mil palestinos, segundo o
Ministério da Saúde da Faixa de Gaza.
Segundo as Nações
Unidas, existem cerca de 2 milhões de civis à beira da fome.
"Esta sempre foi
uma área aberta, onde os alunos descansavam na grama ou se reuniam entre as
aulas", diz Sethi, que se formou em Economia Internacional neste mesmo
campus anos atrás.
Ele conta que nunca
tinha visto esta área cercada e rodeada por seguranças.
"Então, quis
mostrar aos meus filhos, porque é algo inédito mas também para que eles
entendam o país está polarizado atualmente", acrescenta.
Os campi
universitários tornaram-se o maior reflexo da tensão que a guerra no Oriente
Médio gera nos Estados Unidos e da divisão cada vez mais acentuada da sociedade
americana frente ao apoio do governo americano a um aliado histórico: Israel.
• Protestos e tensão crescente
Os protestos nas
universidades americanas devido à guerra em Gaza não são uma coisa nova.
Eles têm ocorrido, com
maior ou menor intensidade, desde o ataque do Hamas e o início da ofensiva
israelense no território palestino.
Acompanhados de perto
por parlamentares democratas e republicanos no Capitólio, fizeram com que
vários responsáveis pelos principais centros universitários dos Estados Unidos
comparecessem perante o Congresso.
Em janeiro, as
polêmicas decorrentes desse conflito acabaram custando à então reitora de
Harvard, Claudine Gay, o seu cargo.
Mas as mobilizações
ganharam outra dimensão nas últimas duas semanas, depois que a polícia invadiu
a Universidade de Columbia, em Nova York, e prendeu uma centena de estudantes
pró-Palestina que estavam acampados no campus.
Os estudantes
continuam com os protestos em Columbia, correndo o risco de serem suspensos por
não terem cumprido o prazo de remoção do acampamento estabelecido pelas
autoridades da universidade — às 14h locais da segunda-feira (13h pelo horário
de Brasília).
E não só as
manifestações não pararam em Columbia, como se espalharam por universidades de
todo o país, de Yale ao Instituto de tecnologia de Massachusetts (MIT),
passando por Emory, Emerson, Tufts, Brown, Stanford e a Universidade do Texas
em Austin.
A costa oeste não é
exceção. A Universidade do Sul da Califórnia (USC), localizada em Los Angeles e
um dos mais importantes centros educacionais privados do Estado, anunciou na
quinta-feira que cancelaria sua cerimônia de formatura "dados os riscos de
segurança representados pelos protestos".
Mais a noroeste, no
campus da UCLA, o dia de maior tensão ocorreu no domingo, quando manifestantes
pró-palestinos se depararam com um contraprotesto promovido pelo Conselho
Americano-Israelense.
A organização, fundada
com a missão de "construir uma comunidade israelense-americana
comprometida e unida que fortaleça a identidade israelense e judaica da próxima
geração e o vínculo com o Estado de Israel" proclama em suas redes sociais
que é "inaceitável que qualquer campus universitário se torne uma
plataforma para atividades pró-terroristas e antiamericanas".
Cercas foram
derrubadas, houve confrontos verbais, insultos, algumas escaramuças, uma mulher
com ferimentos leves na cabeça.
A polícia do campus
chegou por volta das 14h30 e as dezenas de pessoas reunidas foram convidadas a
se dispersar.
"A UCLA tem uma
longa história como local de protesto pacífico", afirmou Mary Osako,
vice-presidente de Comunicações Estratégicas, num comunicado divulgado pela
assessoria de imprensa da universidade. "Estamos consternados com a
violência que eclodiu."
Nesta segunda-feira,
só restou a segurança reforçada, uma calma tensa e o enorme telão e
alto-falantes que os organizadores do contraprotesto colocaram na véspera no
Dickson Plaza, num pedaço de gramado a poucos metros do acampamento estudantil
cercado.
Adornada com faixas
exigindo a libertação dos reféns e sublinhando o apoio a Israel, o aparato
audiovisual continuava a transmitir repetidamente imagens do ataque de 7 de
outubro, entrevistas com sobreviventes e mensagens de apoio de figuras da
comunidade judaica.
"Queremos educar
os estudantes e todos os que por aqui passam, mostrar-lhes o que o Hamas faz e
o que este campus apoia quando gritam 'Intifada, intifada, revolução' ou 'Do
rio ao mar'", lema que se refere à área geográfica entre o rio Jordão e o
mar Mediterrâneo, diz um dos organizadores do contraprotesto, que afirma não
ter vínculos com a universidade e pede para manter o anonimato.
• 'Não me sinto bem-vindo'
"Estou
desgostoso, enojado. É incrível que aqueles que se dizem ativistas a favor dos
direitos humanos cantem e façam proclamações de morte e destruição”, acrescenta
Alex Jacobs, que se identifica como estudante da UCLA, mas prefere não dizer de
que faculdade.
Ele usa óculos
escuros, boné e máscara para evitar ser reconhecido, enquanto aponta para os
campistas.
"Entendo a
necessidade de se manifestar, de expressar opiniões, mas como estudante judeu e
pró-Israel não me sinto mais bem-vindo nesta universidade onde sempre sonhei
estudar", diz Andrew Gerbs, estudante de Sociologia da UCLA, que chegou
cedo para observar a situação e que, ao contrário de outros, está aberto a
falar com os meios de comunicação e a deixar-se fotografar.
"Acho que posso
falar por outros estudantes judeus. Isso nos gera ansiedade, nos distrai dos
estudos, porque afinal isso é um centro de estudos", enfatiza, embora
reconheça que as aulas continuam sendo ministradas normalmente no campus, algo
que a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, também conseguiu
verificar.
"Venham, venham
conhecer a verdade!", grita uma mulher para vários estudantes que passam
em frente à praça.
Mas já é meio-dia e os
estudantes a ignoram e correm para outra parte do campus.
• Lugar para ideias e debate
Acontece que para este
horário, 12 horas, estavam previstas duas marchas simultâneas, convocadas pela
Faculdade de Justiça na Palestina, que reúne professores e demais funcionários
da universidade, e pelos Estudantes da UCLA pela Justiça na Palestina.
"Estamos com
nossos alunos", diz a faixa levada por professores simpatizantes do
acampamento.
Ouvem-se palavras de
ordem a favor da libertação da Palestina. Outros cantos citam diretamente o
primeiro-ministro israelense: "Diga-nos, Netanyahu, quantas crianças matou
hoje?"
São dezenas de pessoas
e alguns usam suas insígnias acadêmicas enquanto marcham pela rua Plaza
Portola.
"A universidade é
um lugar de ideias, de debate, e defendemos o direito dos estudantes de
expressá-las, seu direito de mobilização", diz Ananya Roy, diretora
fundadora do Instituto Luskin sobre Desigualdade e Democracia da UCLA e
professora de Planejamento Urbano, Bem-estar Social e Geografia.
"Os estudantes
protestam agora por Gaza como fizeram aqueles que protestaram pelo
Vietnã", acrescenta.
Ela reconhece as
diferenças, mas traça um paralelo com os protestos estudantis que, no final da
década de 1960, acabaram por tomar conta da cena política nacional e são
lembrados mais e mais entre aqueles que comentam a situação atual nos campi.
"Onde vamos
protestar se não aqui? Este é o lugar ideal para fazer isso", diz um
estudante que prefere não revelar seu nome, mas que atua como contato de
imprensa para uma coalizão estudantil.
"O que pedimos é
que a Universidade da Califórnia pare de investir fundos naqueles que lucram
com o genocídio em Gaza. E vamos protestar até conseguir", enfatiza ao
lado da biblioteca Powell.
Enquanto isso, do
outro lado da área do acampamento, pelos corredores do Royce Hall, centenas de
estudantes marcham com a mesma reivindicação, alguns com keffias (lenços
árabes) amarradas no pescoço ou cobrindo a cabeça, outros com camisetas
pró-Palestina, muitos com máscaras.
"Antissionismo
não é o mesmo que antissemitismo", diz uma das faixas que levantam.
"A terra pela
qual você mata não lhe pertence", escreveram em outro pedaço de papelão.
"O poder do povo
é mais forte do que o das pessoas no poder", diz outro cartaz.
"Invista na
educação, não na guerra", clama mais um.
Não demora muito para
perceberem que também há jornalistas entre os estudantes.
"Não fale com a
imprensa", diz um dos estudantes que coordena o protesto. "Não deixe
que fotos sejam tiradas."
Deixo-os avançar sob
os arcos do corredor de onde se avistam as barracas de acampamento
multicoloridas, refaço meu caminho e sigo para o outro lado do perímetro de
segurança.
Lá, lembro-me da
primeira conversa da manhã, com Sethi, o pai que tentava fazer com que seus
filhos entendessem o mundo dividido em que vivemos.
"Digo a eles que
são como dois times", ele me disse.
"Mas aí, eles me
perguntam: 'E nós, em qual estamos?'"
Ao que Sethi
respondeu: "Estamos entre aqueles que apoiam a paz."
• Irã acusa ONU de 'padrão duplo' diante
de protestos pró-Palestina em universidades dos EUA
Autoridade iraniana
diz que a organização acusa o Irã de promover violações aos direitos humanos,
mas ignora a violenta repressão dos EUA contra universitários em atos
pró-Palestina. Pelo menos 900 pessoas foram presas desde meados de abril,
quando eclodiram os protestos.
O secretário do
Conselho Superior para os Direitos Humanos do Irã, Kazem Gharibabadi, acusou o
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH, na sigla
em inglês) de ter um "padrão duplo" em suas considerações. A
informação foi veiculada pela agência iraniana Tasnim.
Segundo Gharibabadi, o
ACNUDH acusa o Irã de promover violações aos direitos humanos, mas ignora a
violenta repressão contra estudantes que realizam protestos pró-Palestina em
universidades dos Estados Unidos.
"O Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos não tomou conhecimento
do que está acontecendo nos EUA, mas ao mesmo tempo emitiu três declarações
acusando o Irã de violações dos direitos humanos, o que é prova de contradições
e padrões duplos no organismo da ONU [Organização das Nações Unidas]",
disse Gharibabadi.
Operações policiais em
universidades nos estados de Illinois, Califórnia, Nova York e Texas resultaram
na prisão de estudantes e professores que protestavam contra a ofensiva de
Israel na Faixa de Gaza. Os agentes desmantelaram acampamentos erguidos em campi
universitários e usaram spray de pimenta contra os manifestantes. Pelo menos
900 manifestantes foram presos desde o início das manifestações, em meados de
abril.
As imagens dos agentes
expulsando os manifestantes dos acampamentos circularam o mundo e os protestos
universitários foram comparados ao movimento que eclodiu nos Estados Unidos na
década de 1960 contra a Guerra do Vietnã.
Os protestos iniciaram
de forma pacífica, mas a repressão violenta da polícia desencadeou confrontos
entre os agentes e manifestantes.
Nesta terça-feira
(30), questionado sobre os protestos universitários nos EUA, o secretário-geral
da ONU, António Guterres, afirmou em coletiva que é "essencial"
garantir "a liberdade de expressão e a liberdade de manifestação pacífica".
"Ao mesmo tempo,
é obvio que o discurso de ódio é inaceitável. Acredito que cabem às autoridades
universitárias terem sabedoria para gerir adequadamente situações como as que
temos testemunhado", disse Guterres.
Em paralelo, Guterres
pediu uma investigação internacional a respeito das valas comuns
recém-encontradas na Faixa de Gaza.
"Estou
profundamente alarmado com relatos de que valas comuns foram descobertas em
vários locais de Gaza, incluindo o Complexo Médico Al-Shifa e o Complexo Médico
Nasser. Só em Nasser, mais de 390 corpos teriam sido exumados", afirmou
Guterres.
Pelo menos 34.535
palestinos foram mortos e 77.704 foram feridos em ataques israelenses em Gaza
desde 7 de outubro. Na terça-feira (29), o serviço de Defesa Civil da Palestina
disse que mais de 10 mil pessoas ainda estão desaparecidas sob os escombros na
Faixa de Gaza, segundo a agência Anadolu.
Fonte: BBC News
Mundo/Sputnik Brasil
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