Entenda o que é o transtorno do espectro
autista
A infância e a
adolescência, em Volta Redonda, no sul fluminense, foram difíceis para Ricardo.
Ele não conseguia conversar com outras pessoas da sua idade e evitava ambientes
muito cheios. Era incompreendido pelos colegas e, por não conseguir se
enturmar, foi vítima de bullying.
“Eu sempre tive a
compreensão de que eu era diferente. Que eu não conseguia fazer as mesmas
coisas que as pessoas faziam. Falavam que eu era chato, enjoado, antissocial”,
relembra ele. “Eu achava que era só isso. Não imaginava que tivesse um
diagnóstico para isso”.
Ricardo Fulgoni hoje é
juiz de direito e atua na Justiça estadual do Paraná, onde tomou posse em 2022,
pouco depois de descobrir o motivo de ter tanta dificuldade para se relacionar
com outras pessoas.
“Os anos foram
passando. Na vida adulta, eu, com a compreensão de que era diferente, fui
seguindo minha vida. Sabia que não conseguia fazer algumas coisas, mas fui
seguindo, criando estratégias para superar as minhas dificuldades”.
Quando chegou a
pandemia de covid-19, ele ainda era oficial de Justiça e se preparava para o
concurso da magistratura. A mudança de rotinas, provocada pelo isolamento
social, prejudicou seu cronograma de estudos e isso o afetou muito.
“Eu tinha provas já
marcadas e eu estava com um cronograma de estudos muito bem desenhado. Eu
sempre fui muito apegado ao planejamento, ao cronograma, à programação. Preciso
disso para me sentir confortável. Imprevistos sempre foram muito difíceis para
mim. E a pandemia foi uma quebra de rotina gigantesca. Eu tinha o roteiro todo
traçado, com as datas das provas que eu ia fazer e aquilo me derrubou”.
Afetado pelas grandes
mudanças e sem vontade de sair da cama, Ricardo pensou que estava com
depressão, procurou ajuda profissional e começou a se tratar com
antidepressivos. Mas isso não resolveu o problema.
“Depois de vários
meses, nessas idas e vindas, tentando entender o que estava acontecendo comigo,
veio a sugestão de que essas minhas crises de ficar de cama o dia inteiro
poderiam não ser decorrentes da depressão, mas ser algo típico do autismo. Tem
até um nome para isso: shutdown, que é o desligamento. Quando você está num
nível de sobrecarga sensorial muito forte, seu corpo simplesmente desliga”.
• Diagnóstico
O diagnóstico foi um
choque, inicialmente, para Ricardo. Ele tinha a visão de que o autista era uma
pessoa incapaz, que não conseguia trabalhar e que dependia da família. Não era
o seu caso, ele trabalhava desde os 18 anos, quando se tornou servidor público
do INSS.
“Então passei por uma
avaliação neuropsicológica e veio a confirmação. Nesse processo, eu passei a
estudar o tema e, quando eu comecei a ler sobre o que era o autismo, os
sintomas, as características, estava ali um manual de instruções da minha vida.
Estavam explicadas todas as dificuldades que eu tive ao longo da vida. O
diagnóstico foi libertador porque tirou de mim toda a carga de culpa que eu
carregava, de ser antissocial, ser chato, ser enjoado”, explicou.
Mesmo com dúvidas
sobre se conseguiria tornar-se juiz depois do diagnóstico, ele seguiu em frente
e foi aprovado no concurso. “Muita gente me questiona. Para que você quer saber
esse diagnóstico agora na vida adulta, colocar esse rótulo de autista. Bem, rótulos
eu tive a vida inteira. Fui sempre rotulado de chato, enjoado, antissocial,
rótulos errados que eu tive a vida inteira. Se eu falar abertamente que sou
autista, pelo menos vão me colocar o rótulo correto”.
Nesta terça-feira (2),
celebra-se o Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, criado em 2007
pela Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de levar informação à
população e reduzir o preconceito contra indivíduos que apresentam o transtorno
do espectro autista (TEA).
“O transtorno do
espectro do autismo é uma condição do desenvolvimento neurológico atípico, que
se manifesta nos anos iniciais do desenvolvimento e que acarreta atipicidade
nas áreas de interação social e de comunicação social”, explica o
neuropsicólogo Mayck Hartwig, que trabalha com o atendimento clínico de adultos
autistas.
O juiz Ricardo Fulgoni
é uma das pessoas que tiveram um diagnóstico tardio de TEA, mas é possível
saber se a pessoa tem essa condição logo no início da infância. Segundo
Hartwig, os primeiros sinais do autismo já podem ser percebidos a partir dos 18
meses de idade.
“O diagnóstico do
autismo é feito de forma multidisciplinar. Envolve tanto um médico
especialista, que é geralmente um psiquiatra ou um neurologista; o
neuropsicólogo, que vai fazer também uma avaliação do comportamento; e pode
incluir também outros profissionais da área de saúde que têm uma capacitação
para identificação do autismo”, explica. “Em alguns casos, já é possível haver
uma indicação diagnóstica e o encaminhamento para terapia. Em outros casos é
mais difícil conseguir fazer um diagnóstico precoce”.
Lucinete Andrade
descobriu que sua filha, Mayara, era autista quando a menina tinha cerca de
dois anos de idade.
“Quando você recebe
esse diagnóstico, primeiramente você tem muita insegurança em relação ao futuro
do seu filho. Depois, você passa a ter insegurança em relação ao
desenvolvimento dele, se ele vai conseguir acessar um serviço, uma escola, uma
profissionalização. Então é uma constante insegurança”, conta. “Aquela primeira
expectativa que você tinha na maternidade não existe mais. Então é preciso
aceitar a situação do seu filho e entender que você pode ajudá-lo muito mais se
entender e aceitar essas diferenças”.
Depois de receber o
diagnóstico e aceitar a situação da filha, Lucinete Andrade passou a tentar
ajudar não só a filha como também outras pessoas que não têm condições de pagar
por tratamentos e terapias.
Hoje Mayara tem 20
anos e Lucinete preside a Associação Brasileira de Autismo, Comportamento e
Intervenção (Abraci-DF), que oferece terapia ABA (Análise do Comportamento
Aplicada) para 130 crianças e adolescentes do Distrito Federal.
Há, segundo o
neuropsicólogo Mayck Hartwig, três níveis de autismo, que definem a necessidade
de suporte que o autista necessitará ao longo da vida. Uma pessoa com nível 1,
por exemplo, só precisa de um leve suporte. Já uma diagnosticada com o nível 3
precisa de suporte substancial.
“O autismo hoje é
compreendido como um espectro de manifestação fenotípica bastante heterogênea,
ou seja, existem várias manifestações diferentes do autismo. E essas
manifestações ocorrem também com sinais mais ou menos evidentes em algumas
pessoas”, pontua Hartwig.
Além da dificuldade
para se comunicar e interagir com outras pessoas, que é comum a todos os
autistas, o TEA também pode ter outras manifestações, como comportamentos
repetitivos, interesses restritos, problemas em lidar com estímulos sensoriais
excessivos (som alto, cheiro forte, multidões), dificuldade de aprendizagem e
adoção de rotinas muito específicas.
“É um transtorno que
tem um impacto muito grande, porque ele afeta principalmente a cognição social,
os pilares da linguagem. Esse espectro tem diversas nuances que compõem o
quadro. E é um quadro heterogêneo. De um lado você tem autistas com altas habilidades
e outros com deficiência intelectual. Alguns com hiperatividade e outros mais
calmos”, afirma Luciana Brites, especialista em Distúrbios do Desenvolvimento e
coautora do livro Mentes Únicas.
Luciana, que também é
diretora do Instituto Neurosaber, voltado para a disseminação de conhecimento
sobre neurodesenvolvimento na infância e adolescência, afirma que o dia 2 de
abril é uma data importante para se combater o preconceito e informar a população
sobre questões como o diagnóstico precoce. “Quando a gente consegue fazer a
detecção antes dos três anos de vida, a gente consegue, muitas vezes, mudar a
realidade dessa criança, desse adolescente, desse adulto”.
Segundo ela, a data é
importante também para ressaltar a importância da inclusão das crianças com
autismo nas escolas e do acesso delas ao tratamento. “As políticas públicas de
educação e saúde precisam ser muito bem sustentadas para que a gente consiga avançar
no desenvolvimento dessas crianças, que vão virar adolescentes e adultos”.
Mayck Hartwig destaca
que, no Brasil, as pessoas com autismo ainda encontram desafios importantes,
não só em relação ao acesso a tratamento e terapias, como também à sua inserção
nas universidades e no mercado de trabalho, quando adultas.
“Ainda existe um
desafio importante em relação ao acesso a terapias e tratamentos em
equipamentos públicos. Então boa parte das pessoas vai recorrer a tratamentos
clínicos particulares. Aqueles que estão em situação de vulnerabilidade social
e financeira não conseguem acessar esse tratamento. Tão importante quanto o
diagnóstico é o acesso ao suporte clínico, social, de inserção e permanência
nas universidades, de inserção e permanência no mercado de trabalho”.
Ainda não se sabe o
que causa o autismo. Pesquisas mostram, no entanto, que essa condição do
neurodesenvolvimento atípico é multifatorial e ocorre pela interação de
componentes genéticos e ambientais.
Fonte: IstoÉ
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