quinta-feira, 23 de maio de 2024

Eles veem oportunidade na tragédia no RS: O capital se fortalece com as crises que ele mesmo fomenta

PORTO ALEGRE SEGUE DEBAIXO D’ÁGUA, e o tamanho do estrago ainda é imensurável, mas o prefeito Sebastião Melo, do MDB, já anunciou o plano: irá contratar a consultoria Alvarez & Marsal para recuperar a cidade.

A história dessa contratação é tocante. “Um dos sócios dessa empresa é gaúcho, porto-alegrense. Ele se sensibilizou com o processo e nos procurou para ajudar”, disse Melo. A Alvarez & Marsal não irá cobrar pelo trabalho nos primeiros seis meses – mas o plano já prevê atividades para além do período gratuito.

A benevolência esconde o contexto. Vou começar pelo mais básico. A Alvarez & Marsal é uma consultoria que atua para recuperar aqueles casos quase impossíveis de crise corporativa. Empresas envolvidas em desastres ambientais, em grandes condenações e de reputação duvidosa.

Aqui no Brasil, por exemplo, atuou após os crimes ambientais de Mariana e Brumadinho e com empresas que foram investigadas pela operação Lava Jato, como o Grupo Odebrecht e as construtoras OAS e Queiroz Galvão. 

(O rol de clientes não impediu, no entanto, que Sergio Moro fosse contratado pela consultoria logo após deixar o ministério da Justiça de Bolsonaro, mas essa é outra história.)

Nos EUA, a Alvarez & Marsal atuou na reestruturação de Nova Orleans depois do furacão Katrina em 2005 – uma tragédia que, devido à magnitude, tem sido bastante comparada com o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Na ocasião, 1,5 mil pessoas morreram e 80% da cidade ficou debaixo d’água, completamente colapsada. 

No domingo, 12, o Fantástico fez uma reportagem em tom esperançoso mostrando como foi a recuperação de Nova Orleans – e o que os gaúchos podem aprender com ela. 

A história de superação da cidade pode ser, sim, lida com essa lente inspiradora. Mas a economia de recuperação de desastres tem um lado sombrio, e é a tempestade perfeita para os urubus da crise criarem novas fronteiras de acumulação de capital – e implantarem as reformas e medidas antipopulares que tanto desejam.

É o fenômeno descrito como capitalismo de desastre. O caso de Nova Orleans, por exemplo, é um dos exemplos analisados pela autora canadense Naomi Klein no seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo do desastre”.

Esse conceito de “choque” vem do economista Milton Friedman, vencedor do Nobel de Economia em 1976 e um dos principais influenciadores da linha econômica liberal dos Chicago Boys. 

Friedman argumentava que só as crises econômicas poderiam produzir mudanças. Ou seja: o período após um trauma coletivo é o mais propício para reformas que, em outras ocasiões, dificilmente seriam aceitas. Privatizações radicais, por exemplo. 

Naomi Klein mostra que foi assim no Chile, após o golpe que derrubou Salvador Allende. Também na Bolívia, que atravessou uma crise econômica em 1980. Malásia, Filipinas, Coreia do Sul, Brasil e Indonésia, entre outros, também passaram por processos semelhantes nos anos 1990. No início do século 21, foi a vez dos EUA, em choque com a Guerra ao Terror, com uma retórica que favoreceu a privatização de serviços de defesa nacional.

Klein argumenta que o fenômeno se repetiu também depois de desastres naturais. Na América Central, após o furacão Mitch, e também no Sri Lanka, depois do tsunami em 2004, e em Nova Orleans com o Katrina. Em todos os casos, o estado foi reduzido com privatizações, e as corporações ganharam liberdade com desregulamentação. 

Naomi Klein mostra, por exemplo, que, nos EUA, a passagem do Katrina serviu como ponto de partida para uma série de privatizações, incluindo o sistema educacional. 

No Sri Lanka foi semelhante: o governo, defendendo que a reconstrução do país não poderia ficar a cargo de políticos, decidiu criar um novo órgão, chamado Força Tarefa, composto basicamente de banqueiros e empresários. O grupo propôs um plano de reconstrução que ia de acordo com seus próprios interesses comerciais: expulsou moradores de áreas pobres e fortaleceu o turismo de luxo. 

Aqui no Brasil, a mesma agenda foi implementada depois do rompimento da barragem do Fundão. Uma excelente tese de doutorado da UFMG descreve o crime ambiental de Mariana, em Minas Gerais, como o primeiro grande experimento desse capitalismo no Brasil. 

Na ocasião, argumenta a autora Claudia Rojas, a primeira terapia de choque foi o rompimento abrupto e violento. O segundo foi um programa econômico neoliberal e impopular para reparar os danos, que “permitiu às corporações responsáveis inaugurar um novo mercado e conquistar os últimos bastiões do estado”, diz a tese.

Por fim, e não menos perverso, os atingidos foram submetidos a “mecanismos e técnicas de tortura coletiva, que contribuíram para reduzir o gasto social, neutralizar a resistência e consolidar a ascensão do capitalismo de desastre no Brasil”. Por exemplo, com a pressão para assinatura de acordos com indenizações irrisórias.

A autora mostra como o capital se fortalece com as crises que ele mesmo fomenta e reproduz continuamente. Primeiro, com a consolidação do papel das corporações privadas nas respostas às crises. No caso da barragem, por exemplo, o dinheiro de reparação foi gerido por uma fundação privada, e não pelas vítimas ou pelo estado. 

Segundo a autora, esse processo permite o avanço da classe capitalista transnacional. E isso acontece de uma maneira sofisticada, com ONGs e projetos de recuperação, novas instituições e protocolos, de maneira que as próprias corporações ditem as regras e as respostas à crise. Grandes consultorias internacionais especializadas em reputação, sabe?

O capitalismo de desastre também se manifesta com agendas liberais que “alargam o espaço privado em detrimento do espaço público”. Em Mariana, por exemplo, isso aconteceu com a privatização de serviços essenciais como assistência às vítimas e respostas a emergências ambientais, que ficaram a cargo das próprias empresas e fundações privadas.

Agora, preste atenção no que está acontecendo no Rio Grande do Sul: a contratação da consultoria especializada em crises corporativas no lugar de pesquisadores de universidades públicas, o pix do governador Eduardo Leite, os pedidos de doações a entidades privadas

Combine isso com a narrativa predominante das fake news de direita: é a descredibilização do poder público, a ideia de que a ação estatal é “burocrática” e está “atrapalhando” os voluntários, é o helicóptero fake da Havan criado por inteligência artificial resgatando pessoas, é a ideia de um heroísmo privado e atuante sobre a ineficiência do poder estatal. 

A resposta ao choque, que se descortina agora, é justamente o fortalecimento da agenda neoliberal em resposta à tragédia: o estado está reduzido, inoperante, então vamos substituí-lo. O Rio Grande do Sul é o novo laboratório da crise.

 

¨      Trabalhadores do RS denunciam empresas de obrigar volta ao trabalho com enchentes

 

Centenas de denúncias de assédio de empresas forçando trabalhadores a comparecerem e retornarem ao serviço em meio às inundações do Rio Grande do Sul foram recebidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) neste mês de maio.

Somente nas primeiras duas semanas do mês, o órgão recebeu 60 denúncias de irregularidades trabalhistas, principalmente de empresários obrigando o comparecimento dos trabalhadores em áreas inundadas ou sob risco.

A maior parte das denúncias, mais de 80%, são contra empresas da região metropolitana de Porto Alegre. Durante o mês, o MPT do Rio Grande do Sul iniciou uma campanha para que trabalhadores em situação de assédio e outros denunciassem ao órgão.

De acordo com levantamento divulgado pelo jornalista Carlos Juliano Barros, do Uol, até esta segunda-feira (20), as denúncias somavam 121 pelo gabinete de crise do Ministério Público do Trabalho no estado. Deste total, 72, ou seja, 60% eram referentes a convocações de empresas para os trabalhadores comparecerem em áreas de risco e também ameaças de demissão, caso não o fizessem.

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Em entrevista ao Uol, o procurador-geral do MPT, José de Lima Ramos Pereira, afirmou que as prefeituras devem emitir atestados, de forma digital, às vítimas das enchentes, para que elas comprovem a impossibilidade de voltar ao trabalho.

Parte dos trabalhadores estão em abrigos e tiveram que retornar ao trabalhado. Um coletivo de assessoria jurídica formado por estudantes de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), chamado Gatra, vem assessorando os trabalhadores afetados em Porto Alegre e compilando denúncias.

O coletivo divulgou um manifesto (leia abaixo), na semana passada, pela garantia do emprego, além da petição para o governo federal assine um decreto que proíba descontos salariais e dispensa dos trabalhadores durante a situação de calamidade no estado.

“Em meio ao desastre climático que assola o Rio Grande do Sul, tem-se multiplicado o número de relatos de trabalhadore/as obrigado/as a retornar para seus trabalhos, sob a ameaça de demissão por faltas. Fato é que muitos desse/as trabalhadore/as, para além das evidentes dificuldades de locomoção que o cenário impõe, perderam seus documentos, roupas e suas casas”, relatam.

No manifesto, as entidades ligadas à Justiça do Trabalho e direito exigiram às autoridades “medidas urgentes de proteção da classe trabalhadora, contra a demissão e os descontos salariais”.

No formato de uma campanha pública, o Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Sul (MPT-RS) vem informando os trabalhadores sobre os seus direitos e tem feito uma atuação preventiva, junto também a empregadores do estado.

Na semana passada, o órgão reunião representantes de trabalhadores e empresários para discutir medidas trabalhistas e diálogo. Na ocasião, orientou os empregadores a “priorizar, para redução dos impactos trabalhistas advindos das enchentes, medidas que garantam a manutenção da renda e do salário dos trabalhadores”, além de proteção do trabalho.

O MPT divulgou que as denúncias de assédio trabalhista ou irregularidades podem ser feitas diretamente no site mpt.mp.br ou pelo link bit.ly/mpt_denuncie.

 

Fonte: Por Tatiana Dias, em The Intercept/Jornal GGN

 

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