Brasil ignorou aviso de crise climática
porque Chico Mendes não era engravatado e da academia, diz filha do seringueiro
“Ninguém é liderança
sozinho”, defende Angela Mendes ao relembrar sobre o legado do seu pai e das
conquistas que surgiram a partir da luta dele pelo direito dos povos da
floresta. Líder sindical e seringueiro, Chico Mendes foi assassinado em 1988 no quintal da sua casa, em Xapuri, no Acre, sua terra
natal.
Foi de lá que Angela
Mendes conversou com a equipe do Bem Viver, para a edição do programa desta quarta-feira (22). Na última
semana, ela foi convidada pelo governo federal a participar de um evento
sobre mudanças climáticas promovido em Belém (PA).
Na entrevista, Mendes
comentou como vê a preparação da gestão Lula para Conferência das Nações Unidas
sobre Mudança do Clima (COP), que será realizada na capital paraense no ano que
vem.
“Acho que diante de
tudo o que está acontecendo, o Brasil tem uma tarefa enorme pela frente, que é
de levar para a COP 30, realmente, uma ideia mais estruturada, um projeto para
enfrentar e combater esse cenário que está mexendo com todo o Brasil, assim como
está mexendo com todo o mundo, que são os extremos climáticos”, comenta.
Ao mesmo tempo, Angela
Mendes argumenta que a COP deveria servir, também, para discutir como o Estado
atua pela população amazônica.
“Existe um racismo ambiental em Belém que coloca também as pessoas em lugares que não
estão preparadas para lidar com a urgência das questões climáticas. A COP é um
momento muito importante para a gente fazer discussões sobre o distanciamento
social que existe entre as populações.”
Na entrevista, Angela
Mendes comentou como a gestão Bolsonaro ainda é um legado não devidamente
superado, principalmente pelo incentivo que significou para atuação ilegal de
garimpeiros na Amazônia.
<<< Confira a
entrevista na íntegra:
·
Você vê o governo
preparado para lidar com as mudanças climáticas? Com todos essea cenários
mudando constantemente?
Angela
Mendes: É difícil estar preparado para esses
momentos que, como você falou, estão mudando constantemente. Mas eu acredito
que é uma preocupação do governo federal todo esse cenário
Vejo o governo
preocupado em estar presente nos territórios e dialogar com a população local.
Isso faz uma diferença.
·
E sobre a COP, você
acha que o governo também está se preparando para apresentar as respostas que o
mundo vai exigir?
Eu penso que a gente
está vivendo um momento muito delicado também. Porque a gente não pode esquecer
de onde a gente vem. Nós passamos por uma situação, em 2016, de um golpe contra a nossa presidenta Dilma [Rousseff].
Desde então o Brasil,
que era um marco, uma referência em política de meio ambiente, veio nesse
período até 2023, final de 2022, numa constante e sistemática destruição de
todo essa arcabouço que, com tanta luta, com tanta sacrifício, a sociedade
civil, os movimentos da sociedade civil, as grandes lideranças e o governo
anterior construíam.
Os retrocessos foram
muitos, Hoje nós temos um presidente que parece que ele nada sozinho ou pouco
acompanhado, em direção a alguma coisa.
Eu fico vendo que nós
fizemos a lição de casa pela metade, porque a gente vê um presidente hoje
totalmente pressionado, Lula está totalmente pressionado, não tem nenhum apoio,
a bancada totalmente conservadora e fascista.
Tendo que negociar
cargos e ministérios que são essenciais. A própria ministra Marina [Silva, do
Meio Ambiente e Mudanças Climáticas] enfrentando sérios desafios também,
enfrentando até o machismo que impera naquele espaço.
Acho que diante de
tudo o que está acontecendo, o Brasil tem uma tarefa enorme pela frente, que é
de levar para a COP 30, realmente, uma coisa, uma ideia mais estruturada, um projeto
mais estruturado para enfrentar e combater esse cenário que está mexendo com
todo o Brasil, assim como está mexendo com todo o mundo, que são os extremos
climáticos.
De fato você falou uma
coisa lá no início, que muitas lideranças, inclusive o meu pai já alertava para
isso.
Então é incrível, né?
Existe um alerta, mas me parece que o preconceito e a discriminação por essas
pessoas não serem talvez da academia, por não terem um currículo, elas não
foram, e ainda não são consideradas.
Mas existe uma
sabedoria que é a sabedoria da convivência, o conhecimento de quem está ali no
território, de quem está nos lugares que são estratégicos.
A gente está falando,
por exemplo, de quem está na floresta, da sabedoria ancestral dos povos indígenas, da sabedoria da vivência, de quem teve que chegar nesse lugar,
se adaptar da forma mais dolorosa possível, que foram os seringueiros, e todas
as sabedorias que envolvem essas populações, que historicamente têm essa
relação.
A gente está falando
também da sabedoria dos quilombolas, dos ribeirinhos que vivem essa rotina
diária com os elementos da natureza e conseguem enxergar, nessa rotina, todo o
mínimo detalhe, toda minúcia, de comportamento.
Portanto, consegue
prever essas coisas. Mas não são ouvidas e a gente chega ao que estamos
vivendo.
E sobre a COP, é
preciso também entender que existem muitos desafios em Belém. Existe um racismo ambiental em Belém que coloca também as
pessoas em lugares que não estão preparadas para lidar com a urgência das
questões
É uma desigualdade
grande, e isso precisa ser olhado. A COP vai estar lá, mas não dá para olhar só
para isso [mudanças climáticas]. Tem que olhar também como Belém está se
preparando para receber essa COP, de que forma o Estado tem olhado também para
as pessoas que estão nos diversos lugares [do Pará e da Amazônia].
Como é a COP que
resolve essas questões? Eu acho que a COP é um momento muito importante para a
gente fazer discussões sobre o distanciamento social que existe entre as
populações.
·
Você tem a impressão
que as ideias do seu pai só foram escutadas depois que ele partiu? Por exemplo,
a criação de reservas extrativistas (Resex)?
Ninguém é liderança
sozinho. O pensamento de Chico era um pensamento muito à frente do tempo dele,
mas ele teve muitas pessoas que estiveram com ele também e que, de certa forma,
foram a base para que ele pudesse desenvolver e elaborar tantos pensamentos que
são muito atuais.
Ele conhecia a
realidade, sabia de toda a questão que envolve a pecuária, toda a questão de
exploração da floresta, por conta de toda a vida dele, que foi justamente
organizando os movimentos de resistência contra a invasão dos pecuaristas.
Antes de pensar nas
reservas extrativistas, ele pensou também na Aliança dos Povos da Floresta
junto com Ailton Krenak. Então eu acho que as Resex vem muito daí também. Todo
pensamento dele era coletivo.
A Aliança foi esse
movimento que uniu extrativistas e indígenas, tanto pela resistência, pela
força que isso representava contra os inimigos comuns, mas também pensar numa
agenda política positiva de construção, de um pensamento de terras coletivas
assim como eram as terras indígenas, o modelo de demarcação de terras indígenas.
É daí que nasce também
o pensamento desse território que é a Reserva Extrativista.
É um modelo que deu
tão certo que hoje existem mais de 66 reservas extrativistas de gestão federal,
mais de 40 de gestão estadual, fora todos os outros modelos de território de
uso que vieram nessa modelagem.
Esse modelo não acabou
com o conflito. Ele ainda existe, mas ele é muito menor. E, na verdade, ele se
acirrou durante o último governo de extrema direita, impulsionado e incentivado
pela desinstrumentalização de todos os órgãos de fiscalização. Pela sensação de
impunidade para grileiros e fazendeiros, que tiveram até a audácia de criar
o Dia do Fogo.
Então, o modelo de
reserva extrativista é um modelo que é incrível. Agora precisa ser melhor
consolidado para que dê às famílias as condições de ficarem lá, as políticas
públicas necessárias para ficarem lá bem.
E o ICMBio [Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade] deveria
ser o responsável por isso. Mas o que a gente sente e lamenta muito, é que o
ICMBio é um órgão que não consegue dar conta de fazer a gestão desses
territórios.
A ideia, a concepção
dos territórios que nasce dos seringueiros, do pessoal da Base, dos moradores
da floresta que tiveram essa ideia, essa ideia é tão incrível, né?
Tem muita gente de
gravata que não concebe essa ideia, porque o preconceito não deixa que eles
vejam como é grande a sabedoria de quem está lá no território.
O fato é que o ICMBio
precisa muito melhorar a sua atuação para poder fazer uma gestão, uma cogestão
melhor desses territórios.
Apesar do Instituto
levar o nome do meu pai, ele não faz jus a esse nome, é o que a gente tem
visto. É lógico que muito é agravado por esse cenário que a gente passou, que
desmobilizou, que assédio, que tirou recurso. Logicamente a gente reconhece
isso também, mas a gente reconhece que o órgão também nunca conseguiu dar
conta, mesmo antes já não conseguia dar conta.
E aí com o governo de extrema direita, isso só potencializou ao máximo.
E, de fato, as
reservas extrativistas, mesmo sendo esse espaço de resistência, continuam sendo
muito atacadas. E só não foram ao chão ainda porque existem pessoas,
lideranças, que participaram ativamente da criação desses espaços, que entendem
a importância desses espaços para a manutenção do seu modo de vida, para a
perpetuação cultural dos seus saberes e fazeres.
Assim como o meu pai
falou também, que é para a humanidade, manter essas reservas extrativas
pujantes, vivas, consolidadas, é um serviço que está sendo prestado para a
humanidade também.
·
E como você vê a greve
dos servidores ambientais?
Olha, eu não vou te
falar sobre algo que eu de fato não tenho profundidade. Eu acho que todos os
direitos são justos, eu acho que é uma categoria que precisa também ser bem
valorizada pelo trabalho que presta.
Quando eu falo, por
exemplo, o ICMBio não está estruturado, não falo de pessoas, porque a gente vê
servidores muito dedicados a essa causa. Mas talvez estruturalmente, realmente
o órgão não consegue dar essas condições para que essas pessoas, de fato, ajudem.
Eu acho que durante a
gestão Bolsonaro, que foi um período muito difícil, os servidores estiveram à
frente, eles estiveram dedicados a cumprirem com suas funções, só que a gente
via inclusive servidores ali muito amuados: “Olha, não posso cumprir com meu
papel porque se não..”
Eu não sei, de fato,
qual é o problema que está acontecendo, mas eu acho que o governo precisa
sentar na mesa, ouvir e tentar dialogar e achar um meio termo, e eu acho que
isso é o problema
Não dá com todos os
problemas que a gente está passando, com todas as ameaças que existem das
mineradoras, os desmatamentos…. A gente vai entrar agora, por exemplo, no
período de estiagem, em que se acirram os desmatamentos e as queimadas.
A gente precisa que
ICMBio esteja cumprindo com seu papel, com 100 % de dedicação. A gente
precisava de um ICMBio fortalecido, que, de fato, desse conta disso.
Lá atrás alguém deu
conta de criar tudo isso. Então, como é que o Estado não consegue dar conta? Eu
tenho certeza que a Marina, que vem desse lugar também, está atentando isso,
mas a gente também sabe do quanto desafio, como eu falei, eles estão enfrentando
lá com uma bancada ruralista.
Dentro do próprio
governo também. Essa necessidade de tirar o governo anterior fez criar
esse Frankenstein. E isso criou desafios para se seguir avançando
numa gestão mais eficiente dos territórios.
Fonte: Brasil de Fato
Nenhum comentário:
Postar um comentário