sexta-feira, 24 de maio de 2024

Ana Paula Salviatti: RS gastou 0,0003% da verba de prevenção. Agora, gastará bilhões em reconstrução

NAS COLUNAS ANTERIORES abordamos como a atual condução econômica resume-se a economizar hoje para economizar mais amanhã.

E nos perguntávamos: economizar em prevenção para quê? Pelo debate econômico e político feito no país, é líquido e certo que a função do estado é a de economizar os recursos sociais.

Segundo o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres, o S2ID, desde 2015, em todo o Brasil, foram registrados aproximadamente R$ 141 bilhões em danos materiais e prejuízos públicos e privados, causados por inundações, enxurradas e alagamentos.

O RS é o terceiro estado com mais municípios do país, totalizando 497. Segundo o boletim da defesa civil do estado, publicado em 19 de maio, 463 municípios foram atingidos pela catástrofe climática anunciada, ou seja, 93% do total.

A política econômica está diretamente relacionada ao desencadeamento do caos climático, e a condução do governo, ancorada no pânico fiscalista, lança mais água na inundação ao se negar a agir diante das informações que possuía.

O RS passou por quase três anos de seca e terminou o ano de 2023 como palco de uma das maiores enchentes da sua história.

Ainda assim, o governo Leite destinou 0,0003% do orçamento para manutenção e investimento na aquisição de novos equipamentos e ações de prevenção e de emergência, e 0,01% à atualização do sistema de gestão da defesa civil estadual.

Mesmo informado do que estava por vir, e diante do que havia acabado de acontecer no estado, o governo não investiu na precaução. O que existe de concreto é que apenas 7% dos municípios do estado não foram atingidos pela política adotada, um fracasso retumbante.

No frigir dos ovos, a agenda fiscalista não apenas produz gastos posteriores, mas também se sujeita a imprevistos de toda a sorte, exatamente o oposto do que se espera de uma gestão pública responsável. É a chamada economia desinteligente de recursos, que acaba sucateando instalações, precarizando serviços e vulnerabilizando a saúde coletiva.

Devemos ainda considerar o incalculável desastre social, com mais de 2,3 milhões de pessoas afetadas pelo dilúvio climático. Foram 82.666 pessoas resgatadas, 76.955 pessoas desabrigadas e mais de 0,5 milhão de pessoas desalojadas de suas casas (581.633). 

Ainda segundo os dados do S2ID, somado o número de desabrigadas e desalojadas no RS hoje, temos quase o dobro de pessoas afetadas (658,5 mil) do que no acumulado desde 2015 (349 mil pessoas) em todo o estado gaúcho.

Só no ano passado, o estado já havia assistido mais de 156 mil pessoas afetadas nessas condições. Todos os indicadores apontavam para a urgência da agenda climática, menos os indicadores fiscais.

•        Pânico fiscal, um tiro que sempre sai pela culatra

Conforme a Confederação Nacional dos Municípios, a CNM, dados atualizados no dia 18 de maio estimam danos e prejuízos financeiros dos municípios gaúchos afetados da ordem de R$ 9,6 bilhões.

A CNM também alerta para o fato de que os dados são ainda parciais devido às dificuldades encontradas nos municípios da região. Ainda conforme a CNM, o setor mais afetado nos municípios gaúchos foi o habitacional, acumulando perdas de R$ 4,6 bilhões, e contando. Já o setor agropecuário do estado projeta um prejuízo de R$ 2,5 bilhões.

Os dados da indústria do RS, responsável por 32% do PIB gaúcho, seguem a mesma tendência, e a Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, a FIERGS, pede um pacote de R$ 100 bilhões de ajuda ao governo federal para os próximos três anos, período previsto pelos representantes do setor para a reconstrução do estado.

Entre empréstimos sem juros e flexibilização da jornada de trabalho, incluindo redução de salários, a proposta da FIERGS foi apresentada ao governo federal na sexta-feira, dia 17.

Tal qual os moldes do período da pandemia de Covid-19, enquanto houver redução da jornada de trabalho nas indústrias gaúchas, a União ficará responsável pelo pagamento do Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, o Bem.

Até o momento em que essa coluna é escrita, o governo federal, por sua vez, totaliza em R$ 60,7 bilhões os recursos destinados ao estado, entre créditos, investimentos, aquisição de arroz pela Conab, reconstrução da infraestrutura rodoviária, dentre outros.

Na sexta-feira, dia 17, Leite apresentou o plano de reconstrução estadual orçado em R$ 12 bilhões. O governador não fez menção ao prazo previsto para a reconstrução da região. Contudo, os recursos serão provenientes da suspensão dos pagamentos da dívida com a União.

Em entrevista ao jornal Valor Econômico, o presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base, a Abdib, Venilton Tadini, avalia que a janela de tempo necessária para a reconstrução do estado será semelhante ao que a cidade de Nova Orleans levou após a passagem do Furacão Katrina, em 2005.

Seguindo os passos da antiga capital da Luisiana, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, do MDB, contratou sem licitação a consultoria Alvarez & Marsal, para o planejamento da reconstrução da capital gaúcha.

Em vez de buscar pelos especialistas formados nas universidades brasileiras, sem falar dos pesquisadores do próprio RS com longa expertise sobre a cidade, Melo optou pela empresa que ficou internacionalmente conhecida pela gentrificação produzida na cidade norte-americana.

Mais uma vez indo na contramão da efetiva economia de gastos, ou mesmo pela gestão racional dos recursos, Sebastião afirmou ao jornal Matinal:

“Temos que ter uma consultoria pensando sobre tudo, hospital de campanha, questão da saúde – temos 18 unidades de saúde que estão sob água –, escolas sob água, o estrago das vias…”,

Ou seja, Sebastião contratará uma empresa para fazer o que se espera de um prefeito, o qual pode contar com o conhecimento sólido e acumulado por pesquisadores brasileiros. A título de ilustração, a região gaúcha abriga seis universidades.

A UFRGS, instituição com mais de 90 anos de história, fica a apenas 7 minutos do escritório que ocupa Sebastião na prefeitura; já a UERGS fica ainda mais perto, a menos de 3 minutos de carro. O Rio Grande do Sul conta não só com o antigovernador no estado, mas também com o antiprefeito em Porto Alegre. 

Segundo estudiosos, a consultoria Alvarez & Marsal conduziu uma reconstrução com pouca transparência e participação social, privilegiando áreas turísticas e centrais de Nova Orleans em detrimento da periferia da cidade e, justamente, daqueles mais afetados pelo Katrina.

Ao final das contas, a cidade deixou de ser o lar para a maior parte dos habitantes que nela moravam, ao serem excluídos do planejamento da consultoria.

A cena pode se repetir no RS. Estudo do Observatório das Metrópoles, realizado pelo pesquisador do núcleo de Porto Alegre, André Augustin, traz cenário ainda mais desolador sobre as enchentes na cidade. Segundo ele, os bairros mais afetados, as habitações mais atingidas e as famílias mais prejudicadas foram da periferia da capital gaúcha.

Economia sem investimento produtivo é banco imobiliário, o dinheiro não circula, fica sempre no mesmo endereço, com os mesmos proprietários.

O mito de que o mercado vem resgatar a sociedade de suas agruras e salvar a todos da intervenção estatal é a segunda história da carochinha mais ouvida pela população, atrás apenas da austeridade fiscal como sinônimo de responsabilidade econômica.

A fantasia de que o mercado gerará os melhores benefícios à coletividade movido pelo interesse e pela iniciativa individual é o príncipe encantado montado no cavalo branco para 11 de 10 entusiastas da austeridade fiscal.

No final das contas, quem entra com incentivos e isenções é o estado, e que de volta recebe aditivos contratuais e prejuízos. É a velha cantilena liberal: lucros privados, prejuízos públicos.

Por fim, à luz da história, ainda pairam as dúvidas sobre o destino da população que se encontra em abrigos. A condição provisória em que vivem durará quanto tempo? As famílias já foram integradas no plano de reestruturação estadual?

Suas demandas estão sendo devidamente consideradas? A organização que surge desses espaços é fundamental para a reconstrução desses sujeitos e, com eles, da sociedade gaúcha. É um perigo para Leite, ainda bem.

 

•        RS vive risco de onda de violência e confronto de facções após enchentes

A crise humanitária causada pelas enchentes no Rio Grande do Sul trouxe as condições para uma piora na criminalidade que vá além dos saques a casas abandonadas, do furto de comida doada às vítimas e dos casos de violência dentro dos abrigos que servem de moradia provisória.

Segundo especialistas em segurança pública, o risco é de que a violência se agrave a longo prazo.

O alerta é feito com base em outros desastres climáticos, especialmente a passagem do furacão Katrina pelo Sul dos Estados Unidos, em 2005. Segundo especialistas, a criminalidade pode aumentar devido ao deslocamento de milhares de pessoas que ficaram sem casa, aos prejuízos incalculáveis à economia, ao aumento do desemprego e à interrupção do acesso à escola.

No Rio Grande do Sul, há ainda o agravante de que as facções criminosas no estado também tiveram prejuízos e foram deslocados pela chuva. Isso pode fazer com que eles busquem reposição das perdas financeiras com novos crimes, e que entrem em conflito com grupos rivais por causa da mudança de território.

"As próprias facções tiveram prejuízos nos seus depósitos de droga, na sua capacidade de mobilidade, e quando isso acontece elas vão buscar recuperar isso através de outras modalidades criminais", diz o professor Rodrigo Azevedo, da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica), que é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Segundo ele, autoridades já apontaram que ao menos alguns dos saques a residências abandonadas durante as enchentes foram coordenados pela principal facção criminosa do estado, chamada de Os Manos. Segundo a Secretaria de Segurança Pública gaúcha, a polícia aumentou o patrulhamento em barcos após os primeiros relatos de furto, e o número de casos caiu em seguida.

O Rio Grande do Sul vivia uma tendência de queda na quantidade de mortes violentas e de crimes contra o patrimônio desde 2018. Houve uma quebra dessa tendência em 2022, quando houve aumento nos homicídios dolosos, mas esses crimes voltaram a cair no ano seguinte e no primeiro trimestre de 2024.

A piora da violência em 2022 estava ligada a disputa de facções, segundo especialistas. Os Manos facção mais antiga do estado e que domina regiões da Grande Porto Alegre, Novo Hamburgo e São Leopoldo e outros grupos criminosos menores, que atuam no interior gaúcho, estavam em conflito por território com uma facção chamada Bala na Cara.

Esse conflito havia diminuído em intensidade ao longo do último ano e meio, mas Azevedo não descarta que ele volte a se agravar por causa do deslocamento de centenas de milhares de pessoas devido às chuvas.

"Há uma possibilidade de que essas facções se reestruturem, tanto em termos de modalidades criminais quanto em termos de disputa de território", diz Azevedo. "Podem se reabrir disputas em áreas que estavam relativamente acomodadas e, como sabemos, isso geralmente é acompanhado pelo aumento das taxas de homicídio."

O que mais preocupa o especialista, no entanto, é o anúncio de que serão construídas "cidades temporárias" para desabrigados que hoje são mais de 70 mil pessoas. O temor é que isso signifique a criação de novos bairros de periferia, sem acesso a transporte público e a serviços básicos, distantes dos locais que concentram empregos, onde a presença da polícia é rara.

Esse cenário, segundo especialista, é propício para o aumento da violência doméstica e abuso sexual contra grupos mais vulneráveis. A tendência de alta nos crimes praticados contra mulheres e a piora da saúde mental da população afetada por desastres climáticos é, inclusive, algo que já foi constatado por estudos científicos.

Há menos consenso científico sobre o efeito de tragédias climáticas no aumento de homicídios e crimes patrimoniais, embora existam estudos que apontem para essa relação. "Falta uma revisão sistemática mais robusta desses casos", diz o sociólogo Tulio Kahn, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e especialista em dados estatísticos sobre segurança pública.

O que todos concordam, e pesquisas demonstram, é que desastres climáticos têm um impacto profundo no modo de vida da população. Crianças ficam meses sem aula e há impacto nas notas escolares quando elas finalmente se matriculam em colégios de cidades vizinhas. O consumo de drogas aumenta, assim como os problemas de saúde mental e a violência doméstica.

Se isso se refletirá necessariamente em aumento de homicídios, roubos e latrocínios, por exemplo, pode depender de cada contexto. "É provável que isso seja altamente influenciado pelas condições locais de criminalidade, anteriores ao desastre climático, e também pela resposta das autoridades", diz Kahn.

É por isso que esse risco de aumento da criminalidade pode se transformar, inclusive, em cobrança de mais ações do poder público. "Sabemos que podem ser implementadas medidas que evitem que isso aconteça. Então nós temos que acompanhar, cobrar das autoridades que isso seja feito", diz Azevedo.

 

Fonte: The Intercept/FolhaPress

 

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