Ana Paula Salviatti: RS gastou 0,0003% da
verba de prevenção. Agora, gastará bilhões em reconstrução
NAS COLUNAS ANTERIORES
abordamos como a atual condução econômica resume-se a economizar hoje para
economizar mais amanhã.
E nos perguntávamos:
economizar em prevenção para quê? Pelo debate econômico e político feito no
país, é líquido e certo que a função do estado é a de economizar os recursos
sociais.
Segundo o Sistema
Integrado de Informações sobre Desastres, o S2ID, desde 2015, em todo o Brasil,
foram registrados aproximadamente R$ 141 bilhões em danos materiais e prejuízos
públicos e privados, causados por inundações, enxurradas e alagamentos.
O RS é o terceiro
estado com mais municípios do país, totalizando 497. Segundo o boletim da
defesa civil do estado, publicado em 19 de maio, 463 municípios foram atingidos
pela catástrofe climática anunciada, ou seja, 93% do total.
A política econômica
está diretamente relacionada ao desencadeamento do caos climático, e a condução
do governo, ancorada no pânico fiscalista, lança mais água na inundação ao se
negar a agir diante das informações que possuía.
O RS passou por quase
três anos de seca e terminou o ano de 2023 como palco de uma das maiores
enchentes da sua história.
Ainda assim, o governo
Leite destinou 0,0003% do orçamento para manutenção e investimento na aquisição
de novos equipamentos e ações de prevenção e de emergência, e 0,01% à
atualização do sistema de gestão da defesa civil estadual.
Mesmo informado do que
estava por vir, e diante do que havia acabado de acontecer no estado, o governo
não investiu na precaução. O que existe de concreto é que apenas 7% dos
municípios do estado não foram atingidos pela política adotada, um fracasso retumbante.
No frigir dos ovos, a
agenda fiscalista não apenas produz gastos posteriores, mas também se sujeita a
imprevistos de toda a sorte, exatamente o oposto do que se espera de uma gestão
pública responsável. É a chamada economia desinteligente de recursos, que acaba
sucateando instalações, precarizando serviços e vulnerabilizando a saúde
coletiva.
Devemos ainda
considerar o incalculável desastre social, com mais de 2,3 milhões de pessoas
afetadas pelo dilúvio climático. Foram 82.666 pessoas resgatadas, 76.955
pessoas desabrigadas e mais de 0,5 milhão de pessoas desalojadas de suas casas
(581.633).
Ainda segundo os dados
do S2ID, somado o número de desabrigadas e desalojadas no RS hoje, temos quase
o dobro de pessoas afetadas (658,5 mil) do que no acumulado desde 2015 (349 mil
pessoas) em todo o estado gaúcho.
Só no ano passado, o
estado já havia assistido mais de 156 mil pessoas afetadas nessas condições.
Todos os indicadores apontavam para a urgência da agenda climática, menos os
indicadores fiscais.
• Pânico fiscal, um tiro que sempre sai
pela culatra
Conforme a
Confederação Nacional dos Municípios, a CNM, dados atualizados no dia 18 de
maio estimam danos e prejuízos financeiros dos municípios gaúchos afetados da
ordem de R$ 9,6 bilhões.
A CNM também alerta
para o fato de que os dados são ainda parciais devido às dificuldades
encontradas nos municípios da região. Ainda conforme a CNM, o setor mais
afetado nos municípios gaúchos foi o habitacional, acumulando perdas de R$ 4,6
bilhões, e contando. Já o setor agropecuário do estado projeta um prejuízo de
R$ 2,5 bilhões.
Os dados da indústria
do RS, responsável por 32% do PIB gaúcho, seguem a mesma tendência, e a
Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, a FIERGS, pede um pacote de R$
100 bilhões de ajuda ao governo federal para os próximos três anos, período
previsto pelos representantes do setor para a reconstrução do estado.
Entre empréstimos sem
juros e flexibilização da jornada de trabalho, incluindo redução de salários, a
proposta da FIERGS foi apresentada ao governo federal na sexta-feira, dia 17.
Tal qual os moldes do
período da pandemia de Covid-19, enquanto houver redução da jornada de trabalho
nas indústrias gaúchas, a União ficará responsável pelo pagamento do Benefício
Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, o Bem.
Até o momento em que
essa coluna é escrita, o governo federal, por sua vez, totaliza em R$ 60,7
bilhões os recursos destinados ao estado, entre créditos, investimentos,
aquisição de arroz pela Conab, reconstrução da infraestrutura rodoviária,
dentre outros.
Na sexta-feira, dia
17, Leite apresentou o plano de reconstrução estadual orçado em R$ 12 bilhões.
O governador não fez menção ao prazo previsto para a reconstrução da região.
Contudo, os recursos serão provenientes da suspensão dos pagamentos da dívida com
a União.
Em entrevista ao
jornal Valor Econômico, o presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura
e Indústrias de Base, a Abdib, Venilton Tadini, avalia que a janela de tempo
necessária para a reconstrução do estado será semelhante ao que a cidade de
Nova Orleans levou após a passagem do Furacão Katrina, em 2005.
Seguindo os passos da
antiga capital da Luisiana, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, do MDB,
contratou sem licitação a consultoria Alvarez & Marsal, para o planejamento
da reconstrução da capital gaúcha.
Em vez de buscar pelos
especialistas formados nas universidades brasileiras, sem falar dos
pesquisadores do próprio RS com longa expertise sobre a cidade, Melo optou pela
empresa que ficou internacionalmente conhecida pela gentrificação produzida na
cidade norte-americana.
Mais uma vez indo na
contramão da efetiva economia de gastos, ou mesmo pela gestão racional dos
recursos, Sebastião afirmou ao jornal Matinal:
“Temos que ter uma
consultoria pensando sobre tudo, hospital de campanha, questão da saúde – temos
18 unidades de saúde que estão sob água –, escolas sob água, o estrago das
vias…”,
Ou seja, Sebastião
contratará uma empresa para fazer o que se espera de um prefeito, o qual pode
contar com o conhecimento sólido e acumulado por pesquisadores brasileiros. A
título de ilustração, a região gaúcha abriga seis universidades.
A UFRGS, instituição
com mais de 90 anos de história, fica a apenas 7 minutos do escritório que
ocupa Sebastião na prefeitura; já a UERGS fica ainda mais perto, a menos de 3
minutos de carro. O Rio Grande do Sul conta não só com o antigovernador no
estado, mas também com o antiprefeito em Porto Alegre.
Segundo estudiosos, a
consultoria Alvarez & Marsal conduziu uma reconstrução com pouca
transparência e participação social, privilegiando áreas turísticas e centrais
de Nova Orleans em detrimento da periferia da cidade e, justamente, daqueles
mais afetados pelo Katrina.
Ao final das contas, a
cidade deixou de ser o lar para a maior parte dos habitantes que nela moravam,
ao serem excluídos do planejamento da consultoria.
A cena pode se repetir
no RS. Estudo do Observatório das Metrópoles, realizado pelo pesquisador do
núcleo de Porto Alegre, André Augustin, traz cenário ainda mais desolador sobre
as enchentes na cidade. Segundo ele, os bairros mais afetados, as habitações
mais atingidas e as famílias mais prejudicadas foram da periferia da capital
gaúcha.
Economia sem
investimento produtivo é banco imobiliário, o dinheiro não circula, fica sempre
no mesmo endereço, com os mesmos proprietários.
O mito de que o
mercado vem resgatar a sociedade de suas agruras e salvar a todos da
intervenção estatal é a segunda história da carochinha mais ouvida pela
população, atrás apenas da austeridade fiscal como sinônimo de responsabilidade
econômica.
A fantasia de que o
mercado gerará os melhores benefícios à coletividade movido pelo interesse e
pela iniciativa individual é o príncipe encantado montado no cavalo branco para
11 de 10 entusiastas da austeridade fiscal.
No final das contas,
quem entra com incentivos e isenções é o estado, e que de volta recebe aditivos
contratuais e prejuízos. É a velha cantilena liberal: lucros privados,
prejuízos públicos.
Por fim, à luz da
história, ainda pairam as dúvidas sobre o destino da população que se encontra
em abrigos. A condição provisória em que vivem durará quanto tempo? As famílias
já foram integradas no plano de reestruturação estadual?
Suas demandas estão
sendo devidamente consideradas? A organização que surge desses espaços é
fundamental para a reconstrução desses sujeitos e, com eles, da sociedade
gaúcha. É um perigo para Leite, ainda bem.
• RS vive risco de onda de violência e
confronto de facções após enchentes
A crise humanitária
causada pelas enchentes no Rio Grande do Sul trouxe as condições para uma piora
na criminalidade que vá além dos saques a casas abandonadas, do furto de comida
doada às vítimas e dos casos de violência dentro dos abrigos que servem de
moradia provisória.
Segundo especialistas
em segurança pública, o risco é de que a violência se agrave a longo prazo.
O alerta é feito com
base em outros desastres climáticos, especialmente a passagem do furacão
Katrina pelo Sul dos Estados Unidos, em 2005. Segundo especialistas, a
criminalidade pode aumentar devido ao deslocamento de milhares de pessoas que
ficaram sem casa, aos prejuízos incalculáveis à economia, ao aumento do
desemprego e à interrupção do acesso à escola.
No Rio Grande do Sul,
há ainda o agravante de que as facções criminosas no estado também tiveram
prejuízos e foram deslocados pela chuva. Isso pode fazer com que eles busquem
reposição das perdas financeiras com novos crimes, e que entrem em conflito com
grupos rivais por causa da mudança de território.
"As próprias
facções tiveram prejuízos nos seus depósitos de droga, na sua capacidade de
mobilidade, e quando isso acontece elas vão buscar recuperar isso através de
outras modalidades criminais", diz o professor Rodrigo Azevedo, da PUC-RS
(Pontifícia Universidade Católica), que é membro do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública.
Segundo ele,
autoridades já apontaram que ao menos alguns dos saques a residências
abandonadas durante as enchentes foram coordenados pela principal facção
criminosa do estado, chamada de Os Manos. Segundo a Secretaria de Segurança
Pública gaúcha, a polícia aumentou o patrulhamento em barcos após os primeiros
relatos de furto, e o número de casos caiu em seguida.
O Rio Grande do Sul
vivia uma tendência de queda na quantidade de mortes violentas e de crimes
contra o patrimônio desde 2018. Houve uma quebra dessa tendência em 2022,
quando houve aumento nos homicídios dolosos, mas esses crimes voltaram a cair
no ano seguinte e no primeiro trimestre de 2024.
A piora da violência
em 2022 estava ligada a disputa de facções, segundo especialistas. Os Manos facção mais antiga do estado e que domina regiões da Grande Porto Alegre, Novo Hamburgo e
São Leopoldo e outros grupos criminosos menores, que
atuam no interior gaúcho, estavam em
conflito por território com uma facção chamada Bala na Cara.
Esse conflito havia
diminuído em intensidade ao longo do último ano e meio, mas Azevedo não
descarta que ele volte a se agravar por causa do deslocamento de centenas de
milhares de pessoas devido às chuvas.
"Há uma
possibilidade de que essas facções se reestruturem, tanto em termos de
modalidades criminais quanto em termos de disputa de território", diz
Azevedo. "Podem se reabrir disputas em áreas que estavam relativamente
acomodadas e, como sabemos, isso geralmente é acompanhado pelo aumento das
taxas de homicídio."
O que mais preocupa o
especialista, no entanto, é o anúncio de que serão construídas "cidades
temporárias" para desabrigados que hoje são mais de 70 mil
pessoas. O temor é que isso signifique a
criação de novos
bairros de periferia, sem acesso a transporte público e a serviços básicos, distantes dos
locais que concentram empregos, onde a presença da polícia é rara.
Esse cenário, segundo
especialista, é propício para o aumento da violência doméstica e abuso sexual
contra grupos mais vulneráveis. A tendência de alta nos crimes praticados
contra mulheres e a piora da saúde mental da população afetada por desastres
climáticos é, inclusive, algo que já foi constatado por estudos científicos.
Há menos consenso
científico sobre o efeito de tragédias climáticas no aumento de homicídios e
crimes patrimoniais, embora existam estudos que apontem para essa relação.
"Falta uma revisão sistemática mais robusta desses casos", diz o
sociólogo Tulio Kahn, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada) e especialista em dados estatísticos sobre segurança pública.
O que todos concordam,
e pesquisas demonstram, é que desastres climáticos têm um impacto profundo no
modo de vida da população. Crianças ficam meses sem aula e há impacto nas notas
escolares quando elas finalmente se matriculam em colégios de cidades vizinhas.
O consumo de drogas aumenta, assim como os problemas de saúde mental e a
violência doméstica.
Se isso se refletirá
necessariamente em aumento de homicídios, roubos e latrocínios, por exemplo,
pode depender de cada contexto. "É provável que isso seja altamente
influenciado pelas condições locais de criminalidade, anteriores ao desastre
climático, e também pela resposta das autoridades", diz Kahn.
É por isso que esse
risco de aumento da criminalidade pode se transformar, inclusive, em cobrança
de mais ações do poder público. "Sabemos que podem ser implementadas
medidas que evitem que isso aconteça. Então nós temos que acompanhar, cobrar
das autoridades que isso seja feito", diz Azevedo.
Fonte: The
Intercept/FolhaPress
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