Aldo
Fornazieri: Chora por ti Rio Grande
Chora
por ti Rio Grande. O teu choro é o choro do teu povo. Chora pelos teus mortos,
pelos teus desaparecidos, pelos teus desabrigados. Chora pela tua dor e pelas
dores de todas as perdas. Chora pelos cães, gatos, cavalos e por outros animais
que morreram afogados, por aqueles que sofreram nas águas, como Caramelo, mas
que resistiram para viver.
Chora
comovido Rio Grande, pelos milhares de voluntários que não mediram esforços,
que ficaram noites acordados, que entraram nas águas turbulentas e barrentas
para salvar vidas.
Chora
comovido Rio Grande, pela onda de solidariedade que recebeste de milhões de
brasileiros e de pessoas de outros países, que te enviaram todas as espécies de
ajuda.
Chora
Rio Grande pelas tuas cidades devastadas, pelos bairros arrasados, pelas pontes
e casas levadas pelas águas, pelas estradas destruídas e interditadas, pelo
aeroporto debaixo d’água, pelas tuas arenas esportivas inundadas.
Chora
mais ainda Rio Grande, pelas escolas e creches que desapareceram, pelos
hospitais e postos de Saúde engolfados, pelos documentos históricos
danificados. São cunas de futuro que foram parar debaixo d’água para sempre
junto com os berços e brinquedos das crianças.
Chora
Rio Grande pelos vinhedos da Serra esmagados pela violência da lama, árvores e
pedras que rolaram das montanhas. Não produzirão mais a saborosa uva e deles
não será mais possível produzir o oloroso e inebriante vinho.
Chora
Rio Grande, pelos teus trigais, arrozais e campo de milho e soja devastados.
Com eles se foi a riqueza agrícola, o suor dos camponeses e fazendeiros, a
esperança de uma recompensa por pesado esforço. Dos teus trigais não colherás o
grão, não virá o pão colonial quente, cozido no forno a lenha para acompanhar o
salame, o queijo, o vinho.
Chora
Rio Grande pelas tuas macieiras arrancadas, pelas tuas hortaliças enterradas e
pelos laranjais que nos tempos das floradas não exalarão mais perfume celestial
que atrai todas as espécies de abelhas e de onde cantam os sabiás. O beija-flor
não beijará mais a flores dos jardins das casas arrasadas.
E o
que dizer dos pés de butiá e de cerejeira gaúcha que se foram para sempre? O
que dirás Rio Grande do Sul do Luiz Carlos, do Artêmio, da Ivonete, da Eva, do
Avelino, da Paloma, do Lothar, do Hélio, da Helga, do Júlio Antônio, da
Bernadete, Catharina, do Kaique, da Noeli… e das centenas de mortos e
desaparecidos que partiram sem dizer adeus? O que dirás dos que se foram sem
serem identificados? E o que dirás da família que morreu abraçada em Roca
Sales, soterrada pela brutalidade do deslizamento?
Quando
os rios furiosos que descem das montanhas estiverem calmos, se quando as mansas
águas que invadiram as tuas cidades baixas se esvaírem para o mar, vai Rio
Grande, senta-te sobre o dorso de tuas coxilhas, sobre os picos das montanhas
da Serra e caminha calmamente rumo ao horizonte infinito dos teus pampas.
Nesses momentos em que a dor lacerante pelas mortes se transformar em saudosa
dor da alma, em que as tuas perdas materiais se transformar em tristeza, em que
começarão brotar sementinhas de esperança, cessa o teu choro e começa a
refletir acerca do que fizeste a ti mesmo.
Então
lembra-te que desnudaste as serras e os pampas, transformaste em cinzas árvores
e vegetação, invadiste as margens dos rios e os estrangulaste para construir
cidades e estradas. Lembra-te que assassinastes os passarinhos e dizimastes os
animais silvestres que viviam livres e felizes. Destruíste as nascentes e
envenenaste os rios, provocando a morte dos peixes e da vida aquática.
Lembra-te
Rio Grande do genocídio que praticaste contras os povos originários, os
indígenas, e o desprezo que teu povo nutre por eles até hoje. Invadiste as suas
terras, derrubaste as suas matas e roubaste os seus direitos.
Quando
tu estiveres andando pelos pampas, lembra-te Rio Grande da tua
irresponsabilidade ao deixar que as pessoas construíssem as suas casas em áreas
que deveriam ser protegidas, da pobreza, da desigualdade e das injustiças
sociais que deixaste vicejar sob o teu céu azul.
Reflita
sobre a irresponsabilidade criminosa dos teus políticos negacionistas e
oportunistas que não cuidaram do meio ambiente.
Onde
estão as tuas virtudes Rio Grande? As sufocaste pela ambição dos gananciosos. A
valentia dos que lutaram pela liberdade no passado se transformou em grotesca
agressão e destruição da natureza, em egoísmo desmedido pelo ganho, em
desrespeito pela vida.
Foste
imprudente Rio Grande. O que viste descer dos céus foram lágrimas diluvianas
que choraram a dor da natureza por todos os males, por todas as violências e
por todas as violações que ela vem sofrendo. A natureza te mostrou Rio Grande
que, nós humanos, não somos nada quando ela se encoleriza para punir a nossa
arrogância. Nem cidades, nem pontes, nem aeroportos, nem comunicações, nem
estádios, nem palácios, nem rede elétrica, nem as muralhas são suficientemente
fortes para aplacar a fúria da natureza.
O
que te aconteceu Rio Grande foi uma dura advertência para todos nós, para toda
a humanidade. Se não mudarmos os modos de produzir e de consumir, as formas de
nos relacionar com a natureza, se não regenerarmos o que destruímos, a própria
vida, a civilização humana e todas as espécies estão ameaçadas.
Agora,
na tua reconstrução Rio Grande, tens a chance de ser modelo, farol, de não
fazer mais o que não deve ser feito para fazer o que deve ser feito. Caso
contrário, nem tudo o que se planta crescerá e no lugar do amor florescerá a
dor. Cuidado Rio Grande para não mostrar para quem quiser ver que és um lugar
para se viver e chorar. Reflita sobre a herança que deixarás para os teus netos
e bisnetos, para as tuas gerações futuras.
Respeita
Rio Grande a tua maltratada Mãe, aquela que dá a vida a todos os seres, aquela
que te dá a uva e o vinho, aquela que te dá os grãos, aquela que te dá as maçãs
e os frutos, aquela que te dá as azeitonas e os óleos. Respeita Rio Grande
aquela que te permite viver.
• Em 40
anos, agro tomou metade do solo do RS e cultivo de soja cresceu em 500%
Em
menos de 40 anos, a área destinada ao agronegócio no Rio Grande do Sul cresceu
em 35 mil km². Com essa expansão, que reduziu florestas e campos naturais, o
agronegócio atualmente ocupa quase metade do estado. Com informações do UOL.
<><>
Evolução do uso do solo
Desde
1985, o Rio Grande do Sul converteu 12,41% de seu território para a
agropecuária. De acordo com a plataforma Mapbiomas, a área usada para plantios
e pastagens aumentou de 34,8% do estado em 1985 para 47,22% em 2022.
O
avanço da agropecuária no período representou um incremento de 3,5 milhões de
hectares, ou 35 mil km², área comparável ao tamanho da ilha de Taiwan ou 23
vezes o tamanho da cidade de São Paulo.
Impacto
do agronegócio A área plantada com soja quase quintuplicou, passando de 13,6
mil km² em 1985 para 63,5 mil km² em 2022, embora o governo gaúcho estimasse
que em 2023 essa área já superasse 84 mil km², o que equivale ao dobro do
estado do Rio de Janeiro.
Principalmente
sobre campos naturais, a agropecuária expandiu-se consideravelmente. De 1985 a
2022, as áreas de formação natural não florestal diminuíram em 30%, cedendo
espaço para pastagens e culturas de soja, arroz e milho. As florestas, em
contraste, reduziram-se menos de 5% no mesmo período.
<><>
Consequências ambientais
A
perda de vegetação impacta tanto local quanto globalmente, conforme aponta
Lisiane Becker, bióloga e presidente do Instituto Mira-Serra. A conversão de
solos naturais para a agropecuária intensifica e agrava eventos climáticos
extremos, prejudicando os serviços ecossistêmicos vitais.
Segundo
o professor Heinrich Hasenack da UFRGS, o bioma do Pampa foi o mais afetado. No
Pampa, as áreas naturais diminuíram 21% entre 1985 e 2022, principalmente para
a criação de gado, que, se mal manejada, degrada o solo. Já na Mata Atlântica,
a redução foi de 16%, principalmente devido ao cultivo de soja.
<><>
Silvicultura em expansão
O
cultivo de árvores como pinus e eucalipto cresceu mais de 15 vezes nos últimos
40 anos. Em 1985, a silvicultura ocupava 797,4 km², aumentando para quase 12
mil km² em 2022. As novas regras de zoneamento aprovadas pelo Conselho Estadual
do Meio Ambiente podem quadruplicar essa área nos próximos anos.
Críticas
e defesa das políticas Ambientalistas pedem a revisão das novas regras,
argumentando que não foram comprovadas a necessidade de expansão territorial e
o impacto no consumo de água.
O
governo gaúcho, no entanto, defende as novas regras, destacando que o
zoneamento ambiental permitirá uma expansão segura da atividade, essencial para
o sequestro de carbono.
Em
resumo, a agropecuária e a silvicultura expandiram significativamente no Rio
Grande do Sul, com impactos ambientais consideráveis, principalmente na redução
de vegetação nativa e na alteração dos biomas do Pampa e da Mata Atlântica.
• Quais
valores devem prevalecer na reconstrução do RS? Por Gerson Almeida
Ao
declarar, em entrevista ao Jornal Nacional, que os cidadãos de Porto Alegre
tiveram as suas casas alagadas por estarem morando onde “nunca deveriam morar”,
o prefeito Sebastião Melo não tentou apenas transferir para as vítimas a
responsabilidade da incúria da sua gestão. Ele estava antecipando a estratégia
do seu governo para a reconstrução da cidade, algo que ficou claro com a
contratação (sem licitação) da empresa Alvarez & Marsal para fazer a gestão
dos recursos financeiros, estruturar um plano de recuperação e gerir o comitê
de crise, entre outras funções. Ao contratar uma empresa completamente distante
da realidade local, Melo descarta renomadas instituições de pesquisa, como as
universidades, o IPH e qualificados técnicos do município e do Estado, que
possuem inestimável conhecimento acumulado.
Qual
a razão que o faz desconsiderar o pioneirismo da capital gaúcha nas lutas
ambientais – iniciadas por Lutzenberger e a Agapan -, assim como a sua tradição
em gestão ambiental inovadora, que soube desenvolver um conhecimento fortemente
enraizado no território, cuja síntese são o Atlas Ambiental de Porto Alegre e o
Orçamento Participativo?
Essa
decisão só pode ser explicada pela ação desta empresa na “reconstrução” da
cidade de New Orleans, devastada pelo furação Katrina. Uma empresa que se auto
define como “comprometida em dizer aos clientes o que é realmente necessário
para transformar a mudança num ativo empresarial estratégico, gerir riscos e
desbloquear valor em todas as fases do crescimento” (www.alvarezandmarsal.com),
voltada para a lógica corporativa de grandes empresas no setor de gás,
mineração, do sistema financeiro, etc., cuja prioridade é a maximização de
lucros e a diminuição de gastos.
Foi
priorizando a maximização de lucros e a diminuição de gastos, que a Alvarez
& Marsal atuou em Nova Orleans, estreitamente articulada com as autoridades
na cidade e do estado de Louisiana. Nesse conluio, o desastre climático passou
a ser tratado como uma oportunidade de desregulamentar o mercado imobiliário e
demolir os conjuntos habitacionais de aluguéis populares, substituindo-os por
residências mais rentáveis para as grandes incorporadoras e, consequentemente,
afastando os setores menos abastados para longe das zonas de maior interesse do
mercado. Outra iniciativa para “agregar valor” foi priorizar o “setor do
turismo, com os planos para a construção de um novo aeroporto e de uma miríade
de hotéis de luxo” (Le Monde Diplomatique, 21/01/19).
Ou
seja, ainda conforme a reportagem do Le Monde, “estendeu-se o tapete vermelho
para os empresários, cobrindo-os de benefícios fiscais” e facilidades de
investimento. A governadora, Kathleen Blanco, menos de duas semanas da passagem
do furacão, sem qualquer pudor, afirmou: “Foi necessária a tempestade do século
para criar a oportunidade do século. Não a deixemos passar”, sem conseguir
conter a ganância e tratar a crise como oportunidade de fazer negócios, ou
negociatas. Essa conduta foi reverberada pelo ministro do meio ambiente de
Bolsonaro, Ricardo Salles, ao defender que fosse aproveitada a atenção de todos
com a pandemia do COVID, para “passar a boiada” nas leis e nas regras de
preservação ambiental, fazendo da destruição da Amazônia uma oportunidade de
negócios. Em toda a parte, os patifes neoliberais agem como patifes.
Curiosamente,
o governo de Eduardo Leite, parceiro de Melo na cruzada para derrubar o sistema
de proteção contra as cheias e no desmonte das leis ambientais, fez dois
vultosos contratos com a mesma Alvarez & Marsal (set/20 e ago/22), também
sem licitação, para preparar a privatização da CORSAN, que renderam R$ 10,4
milhões à empresa (Sintrajufe-rs). Assim, é legítimo pensar que a contratação
da Alvarez & Marsal por Sebastião Melo – que fez campanha denunciando a
falta de manutenção do sistema de proteção contra as cheias da cidade e nenhum
reparo fez depois de eleito -, seja parte de uma estratégia de reduzir a cidade
ao papel de relés mercadoria e facilitar a sua entrega para as grandes
corporações, tal como aconteceu com a CORSAN e com a cidade de Nova Orleans.
O
campo democrático deve compreender que a direita negacionista das mudanças
climáticas, que nada fez para mitigar as suas graves consequências – como a que
o povo gaúcho está sofrendo – já construiu um modelo de ação espelhado na
experiência de Nova Orleans: aproveitar as tragédias climáticas para criar
condições favoráveis para impor um padrão de gentrificação inimaginável em
condições normais.
Precisamos
que isso seja entendido, para que a imensa mobilização da sociedade e do
governo federal para a recuperação do Rio Grande do Sul não perca de vista que
a questão ambiental é “intrinsecamente conflitiva e esses conflitos são
expressão de tensões no processo de reprodução dos modelos de desenvolvimento”
(Henri Acselrad). Para o campo democrático, as ações de reconstrução devem ser
a afirmação dos princípios éticos, sociopolíticos e ambientais que compreendem
as cidades como espaço da diversidade, da fruição da vida, da cultura e do
bem-estar e não aceitam a segregação e a padronização dos espaços e
territórios.
Fonte:
Jornal GGN/DCM/Brasil de Fato
Nenhum comentário:
Postar um comentário