quarta-feira, 22 de maio de 2024

Aldo Fornazieri: Chora por ti Rio Grande

Chora por ti Rio Grande. O teu choro é o choro do teu povo. Chora pelos teus mortos, pelos teus desaparecidos, pelos teus desabrigados. Chora pela tua dor e pelas dores de todas as perdas. Chora pelos cães, gatos, cavalos e por outros animais que morreram afogados, por aqueles que sofreram nas águas, como Caramelo, mas que resistiram para viver.

Chora comovido Rio Grande, pelos milhares de voluntários que não mediram esforços, que ficaram noites acordados, que entraram nas águas turbulentas e barrentas para salvar vidas.

Chora comovido Rio Grande, pela onda de solidariedade que recebeste de milhões de brasileiros e de pessoas de outros países, que te enviaram todas as espécies de ajuda.

Chora Rio Grande pelas tuas cidades devastadas, pelos bairros arrasados, pelas pontes e casas levadas pelas águas, pelas estradas destruídas e interditadas, pelo aeroporto debaixo d’água, pelas tuas arenas esportivas inundadas.

Chora mais ainda Rio Grande, pelas escolas e creches que desapareceram, pelos hospitais e postos de Saúde engolfados, pelos documentos históricos danificados. São cunas de futuro que foram parar debaixo d’água para sempre junto com os berços e brinquedos das crianças.

Chora Rio Grande pelos vinhedos da Serra esmagados pela violência da lama, árvores e pedras que rolaram das montanhas. Não produzirão mais a saborosa uva e deles não será mais possível produzir o oloroso e inebriante vinho.

Chora Rio Grande, pelos teus trigais, arrozais e campo de milho e soja devastados. Com eles se foi a riqueza agrícola, o suor dos camponeses e fazendeiros, a esperança de uma recompensa por pesado esforço. Dos teus trigais não colherás o grão, não virá o pão colonial quente, cozido no forno a lenha para acompanhar o salame, o queijo, o vinho.

Chora Rio Grande pelas tuas macieiras arrancadas, pelas tuas hortaliças enterradas e pelos laranjais que nos tempos das floradas não exalarão mais perfume celestial que atrai todas as espécies de abelhas e de onde cantam os sabiás. O beija-flor não beijará mais a flores dos jardins das casas arrasadas.

E o que dizer dos pés de butiá e de cerejeira gaúcha que se foram para sempre? O que dirás Rio Grande do Sul do Luiz Carlos, do Artêmio, da Ivonete, da Eva, do Avelino, da Paloma, do Lothar, do Hélio, da Helga, do Júlio Antônio, da Bernadete, Catharina, do Kaique, da Noeli… e das centenas de mortos e desaparecidos que partiram sem dizer adeus? O que dirás dos que se foram sem serem identificados? E o que dirás da família que morreu abraçada em Roca Sales, soterrada pela brutalidade do deslizamento?

Quando os rios furiosos que descem das montanhas estiverem calmos, se quando as mansas águas que invadiram as tuas cidades baixas se esvaírem para o mar, vai Rio Grande, senta-te sobre o dorso de tuas coxilhas, sobre os picos das montanhas da Serra e caminha calmamente rumo ao horizonte infinito dos teus pampas. Nesses momentos em que a dor lacerante pelas mortes se transformar em saudosa dor da alma, em que as tuas perdas materiais se transformar em tristeza, em que começarão brotar sementinhas de esperança, cessa o teu choro e começa a refletir acerca do que fizeste a ti mesmo.

Então lembra-te que desnudaste as serras e os pampas, transformaste em cinzas árvores e vegetação, invadiste as margens dos rios e os estrangulaste para construir cidades e estradas. Lembra-te que assassinastes os passarinhos e dizimastes os animais silvestres que viviam livres e felizes. Destruíste as nascentes e envenenaste os rios, provocando a morte dos peixes e da vida aquática.

Lembra-te Rio Grande do genocídio que praticaste contras os povos originários, os indígenas, e o desprezo que teu povo nutre por eles até hoje. Invadiste as suas terras, derrubaste as suas matas e roubaste os seus direitos.

Quando tu estiveres andando pelos pampas, lembra-te Rio Grande da tua irresponsabilidade ao deixar que as pessoas construíssem as suas casas em áreas que deveriam ser protegidas, da pobreza, da desigualdade e das injustiças sociais que deixaste vicejar sob o teu céu azul.

Reflita sobre a irresponsabilidade criminosa dos teus políticos negacionistas e oportunistas que não cuidaram do meio ambiente.

Onde estão as tuas virtudes Rio Grande? As sufocaste pela ambição dos gananciosos. A valentia dos que lutaram pela liberdade no passado se transformou em grotesca agressão e destruição da natureza, em egoísmo desmedido pelo ganho, em desrespeito pela vida.

Foste imprudente Rio Grande. O que viste descer dos céus foram lágrimas diluvianas que choraram a dor da natureza por todos os males, por todas as violências e por todas as violações que ela vem sofrendo. A natureza te mostrou Rio Grande que, nós humanos, não somos nada quando ela se encoleriza para punir a nossa arrogância. Nem cidades, nem pontes, nem aeroportos, nem comunicações, nem estádios, nem palácios, nem rede elétrica, nem as muralhas são suficientemente fortes para aplacar a fúria da natureza.

O que te aconteceu Rio Grande foi uma dura advertência para todos nós, para toda a humanidade. Se não mudarmos os modos de produzir e de consumir, as formas de nos relacionar com a natureza, se não regenerarmos o que destruímos, a própria vida, a civilização humana e todas as espécies estão ameaçadas.

Agora, na tua reconstrução Rio Grande, tens a chance de ser modelo, farol, de não fazer mais o que não deve ser feito para fazer o que deve ser feito. Caso contrário, nem tudo o que se planta crescerá e no lugar do amor florescerá a dor. Cuidado Rio Grande para não mostrar para quem quiser ver que és um lugar para se viver e chorar. Reflita sobre a herança que deixarás para os teus netos e bisnetos, para as tuas gerações futuras.

Respeita Rio Grande a tua maltratada Mãe, aquela que dá a vida a todos os seres, aquela que te dá a uva e o vinho, aquela que te dá os grãos, aquela que te dá as maçãs e os frutos, aquela que te dá as azeitonas e os óleos. Respeita Rio Grande aquela que te permite viver.

 

•                                           Em 40 anos, agro tomou metade do solo do RS e cultivo de soja cresceu em 500%

 

Em menos de 40 anos, a área destinada ao agronegócio no Rio Grande do Sul cresceu em 35 mil km². Com essa expansão, que reduziu florestas e campos naturais, o agronegócio atualmente ocupa quase metade do estado. Com informações do UOL.

<><> Evolução do uso do solo

Desde 1985, o Rio Grande do Sul converteu 12,41% de seu território para a agropecuária. De acordo com a plataforma Mapbiomas, a área usada para plantios e pastagens aumentou de 34,8% do estado em 1985 para 47,22% em 2022.

O avanço da agropecuária no período representou um incremento de 3,5 milhões de hectares, ou 35 mil km², área comparável ao tamanho da ilha de Taiwan ou 23 vezes o tamanho da cidade de São Paulo.

Impacto do agronegócio A área plantada com soja quase quintuplicou, passando de 13,6 mil km² em 1985 para 63,5 mil km² em 2022, embora o governo gaúcho estimasse que em 2023 essa área já superasse 84 mil km², o que equivale ao dobro do estado do Rio de Janeiro.

Principalmente sobre campos naturais, a agropecuária expandiu-se consideravelmente. De 1985 a 2022, as áreas de formação natural não florestal diminuíram em 30%, cedendo espaço para pastagens e culturas de soja, arroz e milho. As florestas, em contraste, reduziram-se menos de 5% no mesmo período.

<><> Consequências ambientais

A perda de vegetação impacta tanto local quanto globalmente, conforme aponta Lisiane Becker, bióloga e presidente do Instituto Mira-Serra. A conversão de solos naturais para a agropecuária intensifica e agrava eventos climáticos extremos, prejudicando os serviços ecossistêmicos vitais.

Segundo o professor Heinrich Hasenack da UFRGS, o bioma do Pampa foi o mais afetado. No Pampa, as áreas naturais diminuíram 21% entre 1985 e 2022, principalmente para a criação de gado, que, se mal manejada, degrada o solo. Já na Mata Atlântica, a redução foi de 16%, principalmente devido ao cultivo de soja.

<><> Silvicultura em expansão

O cultivo de árvores como pinus e eucalipto cresceu mais de 15 vezes nos últimos 40 anos. Em 1985, a silvicultura ocupava 797,4 km², aumentando para quase 12 mil km² em 2022. As novas regras de zoneamento aprovadas pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente podem quadruplicar essa área nos próximos anos.

Críticas e defesa das políticas Ambientalistas pedem a revisão das novas regras, argumentando que não foram comprovadas a necessidade de expansão territorial e o impacto no consumo de água.

O governo gaúcho, no entanto, defende as novas regras, destacando que o zoneamento ambiental permitirá uma expansão segura da atividade, essencial para o sequestro de carbono.

Em resumo, a agropecuária e a silvicultura expandiram significativamente no Rio Grande do Sul, com impactos ambientais consideráveis, principalmente na redução de vegetação nativa e na alteração dos biomas do Pampa e da Mata Atlântica.

 

•                                           Quais valores devem prevalecer na reconstrução do RS? Por Gerson Almeida

 

Ao declarar, em entrevista ao Jornal Nacional, que os cidadãos de Porto Alegre tiveram as suas casas alagadas por estarem morando onde “nunca deveriam morar”, o prefeito Sebastião Melo não tentou apenas transferir para as vítimas a responsabilidade da incúria da sua gestão. Ele estava antecipando a estratégia do seu governo para a reconstrução da cidade, algo que ficou claro com a contratação (sem licitação) da empresa Alvarez & Marsal para fazer a gestão dos recursos financeiros, estruturar um plano de recuperação e gerir o comitê de crise, entre outras funções. Ao contratar uma empresa completamente distante da realidade local, Melo descarta renomadas instituições de pesquisa, como as universidades, o IPH e qualificados técnicos do município e do Estado, que possuem inestimável conhecimento acumulado.

Qual a razão que o faz desconsiderar o pioneirismo da capital gaúcha nas lutas ambientais – iniciadas por Lutzenberger e a Agapan -, assim como a sua tradição em gestão ambiental inovadora, que soube desenvolver um conhecimento fortemente enraizado no território, cuja síntese são o Atlas Ambiental de Porto Alegre e o Orçamento Participativo?

Essa decisão só pode ser explicada pela ação desta empresa na “reconstrução” da cidade de New Orleans, devastada pelo furação Katrina. Uma empresa que se auto define como “comprometida em dizer aos clientes o que é realmente necessário para transformar a mudança num ativo empresarial estratégico, gerir riscos e desbloquear valor em todas as fases do crescimento” (www.alvarezandmarsal.com), voltada para a lógica corporativa de grandes empresas no setor de gás, mineração, do sistema financeiro, etc., cuja prioridade é a maximização de lucros e a diminuição de gastos.

Foi priorizando a maximização de lucros e a diminuição de gastos, que a Alvarez & Marsal atuou em Nova Orleans, estreitamente articulada com as autoridades na cidade e do estado de Louisiana. Nesse conluio, o desastre climático passou a ser tratado como uma oportunidade de desregulamentar o mercado imobiliário e demolir os conjuntos habitacionais de aluguéis populares, substituindo-os por residências mais rentáveis para as grandes incorporadoras e, consequentemente, afastando os setores menos abastados para longe das zonas de maior interesse do mercado. Outra iniciativa para “agregar valor” foi priorizar o “setor do turismo, com os planos para a construção de um novo aeroporto e de uma miríade de hotéis de luxo” (Le Monde Diplomatique, 21/01/19).

Ou seja, ainda conforme a reportagem do Le Monde, “estendeu-se o tapete vermelho para os empresários, cobrindo-os de benefícios fiscais” e facilidades de investimento. A governadora, Kathleen Blanco, menos de duas semanas da passagem do furacão, sem qualquer pudor, afirmou: “Foi necessária a tempestade do século para criar a oportunidade do século. Não a deixemos passar”, sem conseguir conter a ganância e tratar a crise como oportunidade de fazer negócios, ou negociatas. Essa conduta foi reverberada pelo ministro do meio ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles, ao defender que fosse aproveitada a atenção de todos com a pandemia do COVID, para “passar a boiada” nas leis e nas regras de preservação ambiental, fazendo da destruição da Amazônia uma oportunidade de negócios. Em toda a parte, os patifes neoliberais agem como patifes.

Curiosamente, o governo de Eduardo Leite, parceiro de Melo na cruzada para derrubar o sistema de proteção contra as cheias e no desmonte das leis ambientais, fez dois vultosos contratos com a mesma Alvarez & Marsal (set/20 e ago/22), também sem licitação, para preparar a privatização da CORSAN, que renderam R$ 10,4 milhões à empresa (Sintrajufe-rs). Assim, é legítimo pensar que a contratação da Alvarez & Marsal por Sebastião Melo – que fez campanha denunciando a falta de manutenção do sistema de proteção contra as cheias da cidade e nenhum reparo fez depois de eleito -, seja parte de uma estratégia de reduzir a cidade ao papel de relés mercadoria e facilitar a sua entrega para as grandes corporações, tal como aconteceu com a CORSAN e com a cidade de Nova Orleans.

O campo democrático deve compreender que a direita negacionista das mudanças climáticas, que nada fez para mitigar as suas graves consequências – como a que o povo gaúcho está sofrendo – já construiu um modelo de ação espelhado na experiência de Nova Orleans: aproveitar as tragédias climáticas para criar condições favoráveis para impor um padrão de gentrificação inimaginável em condições normais.

Precisamos que isso seja entendido, para que a imensa mobilização da sociedade e do governo federal para a recuperação do Rio Grande do Sul não perca de vista que a questão ambiental é “intrinsecamente conflitiva e esses conflitos são expressão de tensões no processo de reprodução dos modelos de desenvolvimento” (Henri Acselrad). Para o campo democrático, as ações de reconstrução devem ser a afirmação dos princípios éticos, sociopolíticos e ambientais que compreendem as cidades como espaço da diversidade, da fruição da vida, da cultura e do bem-estar e não aceitam a segregação e a padronização dos espaços e territórios.

 

Fonte: Jornal GGN/DCM/Brasil de Fato

 

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