O aborto
legal, segundo os médicos que o realizam
O
debate sobre descriminalização do aborto no Brasil em todos os casos segue
extremamente relevante. Mas o avanço do moralismo conservador está provocando
derrotas até para a garantia da interrupção da gravidez em casos já previstos
em lei. É o caso da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) do início
de abril, que na prática, inviabiliza que o aborto seja feito em mulheres
vítimas de estupro, se a gestação passa de 22 semanas. Mas o CFM não está acima
da lei brasileira, como bem lembrou Angela Freitas, coordenadora da campanha
Nem Presa Nem Morta, em entrevista ao Outras Palavras TV na quinta-feira
(16/5).
Na
última sexta, o ministro do STF Alexandre de Moraes tomou decisão que vai ao
encontro da fala de Angela e da defesa do direito ao aborto legal. Ele
suspendeu a resolução que restringe o procedimento, até que a questão seja
julgada no plenário da suprema corte, no dia 31/5. Sua ação foi provocada por
uma proposição do Psol e da Anis, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e
Gênero. Moraes entende que o CFM ultrapassou sua competência, pois a lei
brasileira não determina prazo para realizar o aborto nos casos de estupro,
risco à vida da gestante ou anencefalia fetal.
Para
entender melhor a situação da não garantia de um direito legal, recomendamos
enfaticamente um artigo recém-publicado na Cadernos de Saúde Pública (CSP),
parceira editorial de Outra Saúde. “O aborto legal em casos de gravidez
decorrente de violência sexual: percepções e vivências de médicas e médicos
obstetras”, de pesquisadoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
dá subsídios de peso para a compreensão de como a classe médica encara essa
questão – e quais os entraves para a garantia de fato do aborto em casos de
estupro.
O
artigo descreve um estudo realizado em uma maternidade escola federal,
referência em medicina fetal. Teve como objetivo ouvir os médicos responsáveis
pela realização de aborto nos casos previstos em lei, para analisar suas
percepções sobre o tema. Responderam a um questionário inicial 36
profissionais, sendo 12 obstetras e 24 residentes. Eram 83% mulheres, em sua
maioria brancas e de até 30 anos. Mais de 80% declararam seguir alguma
religião, embora apenas 29% destes admitam ser de fato praticantes.
Entre
os ginecologistas e residentes consultados, 5 afirmaram não ter tido nenhum
contato com o aborto em sua formação profissional. Outros 58% informam que
tiveram contato insuficiente até o momento. Todos declaram já ter prestado
assistência a mulheres em situação de violência sexual, e 32 já realizaram ou
se envolveram diretamente no procedimento de interrupção da gravidez. Para um
aprofundamento, seis dos médicos que participaram do questionário foram
entrevistados.
A
questão da formação para a realização do aborto é uma falha percebida pelos
médicos e pode ser um ponto importante a ser abordado, se queremos evitar o
sofrimento de mulheres que buscam os serviços de saúde. Entre os entrevistados,
foi unânime a percepção da ausência de aprendizado sobre o procedimento durante
a graduação em ginecologia – eles só aprenderam sobre a prática durante a
residência. Os médicos afirmam sentir falta dessa formação, não só para a
técnica, mas também para o manejo do atendimento – algo essencial, considerando
que as pacientes foram vítimas de violência sexual e estão em uma posição muito
vulnerável no momento em que buscam o hospital.
O
estudo chama a atenção também para outra barreira muito delicada na relação
médico-paciente. Seja por objeção moral ou por medo de infringir alguma lei,
alguns dos entrevistados mostraram-se impelidos a ocupar o papel de
investigadores: estará a vítima falando a verdade sobre ter sido estuprada? Não
é algo que cabe a eles: apenas a palavra da mulher deveria ser suficiente para
a realização do aborto. Mas o que acontece é que muitas delas veem-se na
obrigação de ter de convencer a equipe médica do abuso que passaram. Um dos
entrevistados para a pesquisa mostrou-se especialmente desconfiado, afirmando
inclusive que as mulheres chegariam ao hospital “treinadas” para mentir e
garantir o procedimento. Mais um argumento para a legalização do aborto em
todos os casos, diga-se.
O
aspecto moral é bastante discutido no artigo. Isso porque é algo que atravessa
os profissionais, na hora de atenderem as pacientes. É aí que entra a discussão
sobre o papel da “objeção de consciência”, dispositivo presente no Código de
Ética Médica que diz respeito ao “direito do médico não praticar condutas que
estejam em desacordo com seus valores individuais”. Mas o artigo discute que
não se trata de um direito absoluto, que pode se sobrepor ao direito das
pacientes de terem acesso a um procedimento médico. “Por essa perspectiva”,
argumentam as autoras, “pode-se pensar em estratégias, como medidas
administrativas de acomodação interna dos serviços de saúde e arranjos
institucionais das equipes, que visem escutar e acolher o sofrimento e as
angústias dos profissionais que declaram objeção de consciência, sem
negligenciar a assistência à mulher vítima de violência sexual”.
A
objeção de consciência costuma ter como justificativa um suposto “direito à
vida” do feto, mas estudos apontados pelo artigo indicam que a questão é muito
mais profunda. Está enraizada nas estruturas patriarcais da sociedade – o que,
inclusive, ajuda a explicar o motivo pelo qual muitos médicos não se opõem a
fazer o aborto em casos de anencefalia ou risco à vida materna. Autores citados
pelo artigo argumentam que “a pouca discussão do tema no campo da saúde e da
formação diz respeito à naturalização da violência contra a mulher no país, e
mais especificamente sobre a invisibilidade da violência sexual”.
No
contato médico-paciente, é necessário também destacar que há uma relação de
poder, em que um lado pode legitimar ou não o discurso do outro. O artigo
pondera que a decisão do médico não será baseada apenas “na história objetiva
dos fatos, mas do que se espera socialmente de uma vítima de violência sexual”.
É por isso que as autoras defendem uma reformulação dos serviços de aborto
legal no Brasil, sob uma ótica feminista – que começa na escuta das pacientes.
“No contexto dos serviços de aborto legal, podemos entender que se oferecer em
posição de escuta às mulheres vítimas de violência sexual compreende uma
estratégia de humanização do cuidado, que visa se aproximar das vivências de
mulheres muitas vezes estigmatizadas nos serviços de saúde”, conclui.
Qualificar
os serviços de aborto legal no Brasil é de extrema importância, mas também é
preciso que eles sejam expandidos. O artigo cita algumas pesquisas de
mapeamento do serviço no país, feitas em anos diferentes, e a situação é
bastante preocupante. O acesso é, em geral, restrito às grandes cidades, em
especial na região Sudeste. Mais da metade das mulheres em idade fértil do
território brasileiro estão em municípios sem serviços de aborto legal. Os
próprios entrevistados do estudo têm a percepção de que “há poucas instituições
de saúde prestando esse tipo de intervenção” e muitas mulheres precisam passar
por “uma peregrinação por diversos serviços de saúde” até conseguir realizar um
aborto.
Fonte:
Por Gabriela Leite, em Outra Saúde
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