Pacientes perdem globo ocular após infecção adquirida em mutirão de
cirurgias no Amapá
O carpinteiro Antônio Ferreira, 82, conta que se
orgulhava da autonomia que tinha, ao fazer atividades domésticas e pessoais sozinho,
mas agora não consegue mais nem andar pela própria casa sem ajuda. Ele foi um
dos 104 pacientes que tiveram infecções nos olhos após um mutirão de cirurgias
oftalmológicas gratuitas, realizado no dia 4 de setembro, no Amapá.
Desse grupo, Ferreira foi um dos sete casos mais
graves, que tiveram de ser submetidos à evisceração (remoção do globo ocular)
após contrair endoftalmite. O paciente perdeu o olho direito, no dia 10 de
setembro, durante tratamento na Clínica dos Olhos, no município de Ananindeua, região
metropolitana de Belém, no Pará. Antes disso, ele já sofria com baixa visão no
lado esquerdo, devido a catarata.
"Eu não tenho dinheiro para estar indo atrás
de tratamento. Meu olho direito era o que eu enxergava melhor. Agora eu não
tenho mais o meu olho, foi arrancado. Eu conseguia fazer qualquer coisa antes.
Não tinha problema nenhum. Andava pela rua sozinho, ia no mercado. Agora não
consigo nem andar sozinho dentro de casa".
Com quadro de diabetes e hipertensão, Antônio
Ferreira relatou que começou a sentir fortes dores três dias após a cirurgia de
catarata ofertada no programa Mais Visão, em Macapá. O paciente foi encaminhado
ao atendimento após diagnóstico em uma ótica particular.
Após complicações de saúde e perda do olho, o
excesso de remédio durante o tratamento causou em Ferreira, segundo a família,
insuficiência renal, nos dois rins, e afetou o fígado.
"Eu não dormia nem de dia e nem de noite por
causa da dor nos olhos, no fígado e nos rins. Pensei que ia morrer. Até me
despedi de todos os meus filhos", falou.
Para a família de Ferreira, a ajuda recebida pela
coordenação do programa, durante o tratamento em Macapá, não foi o suficiente.
Até agora eles teriam ganhado duas cestas básicas e dois vales combustíveis no
valor de R$ 50,00 cada, sendo que o paciente precisa se deslocar da zona norte
até o centro e a zona sul, em busca dos tratamentos.
O idoso ainda passará por um novo drama em breve,
informou a família. Durante as idas e vindas no oftalmologista, ao longo do
processo de recuperação, ele foi diagnosticado com glaucoma no olho esquerdo e
em breve perderá a visão total, pois a doença não tem cura.
• Programa
Mais Visão
Ferreira contraiu a infecção hospitalar após passar
por cirurgia no programa Mais Visão, em Macapá. Ao todo, foram 141 pessoas
atendidas neste mesmo mutirão, sendo 104 casos tiveram complicações
pós-operatórias. As atividades ainda seguiram até o dia 8 de setembro, quando o
Ministério Público do Amapá pediu a suspensão dos atendimentos depois do
surgimento das denúncias.
A iniciativa é realizada desde 2020 pelo Centro de
Promoção Humana Frei Daniel de Samatare em parceria com o Governo do Amapá, por
meio de termo de fomento. Procurados, ambos os órgãos informaram que prestam
toda assistência aos pacientes e familiares com atendimento médico e
psicológico, e custeio de tratamento no Amapá, em clínicas particulares, e fora
do estado, incluindo hospedagem e alimentação.
Em nota, a empresa terceirizada Saúde Link,
responsável pelos procedimentos no programa, disse que atuou durante "mil
dias ao lado de uma equipe séria de médicos, enfermeiros, profissionais de
saúde para que mais de 100 mil pessoas fossem operadas e voltassem a enxergar.
Foram mais de mil dias de operações bem-sucedidas".
A Saúde Link informou, ainda, que os pacientes que
tiveram infecção hospitalar em atendimento numa única sala, apesar das
precauções tomadas. O local foi isolado para investigação e, após conhecimento
dos casos, as atividades foram paralisadas por tempo indeterminado.
O Mais Visão começou no mandato do então governador
do Amapá, Waldez Góes (PDT), atual ministro de Integração e Desenvolvimento
Regional, e desde o início conta com recursos de emenda parlamentar do senador
Davi Alcolumbre (União Brasil). O atual governador Clécio Luís Vieira (Solidariedade),
eleito em 2022 com apoio político de Góes e Alcolumbre, deu prosseguimento ao
termo de fomento.
De acordo com a secretária de Saúde, Silvana
Vedovelli, da gestão Clécio, dois pacientes foram transferidos para hospitais
em São Paulo e 68 foram encaminhados ao Pará - desses 55 passaram por
vitrectomia (cirurgia ocular para tratar problemas da retina e vítreo do olho)
e 13 fizeram transplante de córnea. O restante está sendo tratado em Macapá,
nos Capuchinhos (como é conhecido o Centro Frei Samarate) e em um hospital
particular, custeado pelo Mais Visão
"O programa Mais Visão é realizado há três
anos e sempre teve resultados vitoriosos. Mas, no dia 4 de setembro, para nós,
foi fatídico, uma tragédia. Nós nunca tínhamos passado por isso. O Governo do
Amapá se solidariza com todos pacientes e familiares afetados. Nós estamos na
Saúde para salvar vidas, e estamos prestando assistência integral", disse
a secretária.
• Investigação
A Promotoria de Saúde, do Ministério Público do
Amapá, acompanha de perto os 104 casos de complicações pós-cirurgias desde as
primeiras denúncias. O promotor Wueber Penafort, responsável pelo caso, destaca
que solicitou investigação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)
e da SVS (Superintendência de Vigilância em Saúde), do governo estadual.
"Convoquei os órgãos de fiscalização e fizemos
uma reunião para estabelecer uma metodologia de trabalho sobre as questões de
investigação. Pedimos para suspender o repasse de recurso público para o
programa e exigimos a oferta um plantão de 24h de atendimentos médicos e
sociais aos pacientes acometidos pela endoftalmite".
Ainda segundo Penafort, outras promotorias entraram
no circuito de investigação, como a Criminal, para avaliar se foi doloso,
culposo ou infortúnio, e do Patrimônio Público, porque envolve processos
contratuais com verbas públicas, além da Saúde que avalia as questões médicas e
de assistência à saúde.
"O agente biológico que causou a infecção
hospitalar ainda não foi identificado. Não sabem se foi fungos ou bactérias, ou
se foi devido aos produtos utilizados nos procedimentos ou se foi o local ou
falha médica", destacou o promotor.
Fonte: FolhaPress
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