O "cemitério dos homicídios” de São Paulo
Conhecido como “cemitério dos homicídios”, o São
Luiz, em São Paulo, foi alçado aos holofotes quando a música Fórmula Mágica da
Paz, dos Racionais MCs, estreou em dezembro de 1997.
A letra da canção, parte do CD Sobrevivendo no
inferno, que vendeu mais de dois milhões de cópias à época, chamava a atenção
para a violência da região e para um perfil específico de pessoas que
frequentavam o cemitério: mulheres negras e de classes sociais menos abastadas,
que visitavam o túmulo de jovens enterrados no local
"Dois de novembro, era Finados
Eu parei em frente ao São Luiz, do outro lado
E durante uma meia hora olhei um por um
E o que todas as senhoras tinham em comum?
A roupa humilde, a pele escura
O rosto abatido pela vida dura
Colocando flores sobre a sepultura
("podia ser a minha mãe")
Que loucura
Cada lugar uma lei, eu tô ligado
No extremo sul da Zona Sul tá tudo errado
Aqui vale muito pouco a sua vida
A nossa lei é falha, violenta e suicida”
Mais de 25 anos depois do lançamento, que alçou o
cemitério como local representativo da violência nas periferias brasileiras,
dados do Serviço Funerário do Município de São Paulo (SFMSP) obtidos pela DW
mostram que o local conserva características únicas. Mesmo com a pandemia do
covid-19, que vitimou os mais velhos em sua maioria, a maioria dos mortos
enterrados no São Luiz continua a ser do mesmo perfil: homens jovens e negros.
• 1997
e a violência em São Paulo
Foi em um contexto pobre e violento que Mano Brown,
vocalista do Racionais, criado no Capão Redondo, comunidade vizinha ao São
Luiz, compôs os versos. Construído pela prefeitura e inaugurado em 1981 para
que a população da Zona Sul não precisasse atravessar a cidade para enterrar
seus mortos na Vila Formosa, o cemitério passou a ganhar fama de perigoso
graças à crise socioeconômica que São Paulo viveu ao fim da década de 1980 e
1990.
Eram tempos difíceis. Em dezembro de 1997, por
exemplo, "Desemprego volta a bater recorde em SP” era manchete no jornal
Folha de S. Paulo. Segundo dados da Seade, fundação vinculada à Secretaria da
Fazenda e Planejamento, em dezembro daquele ano a taxa de desemprego alcançou
16,6% da População Economicamente Ativa (PEA), o que era equivalente a 1,4
milhão de desempregados.
Para além da crise econômica, São Paulo também era
considerada uma das cidades mais violentas do mundo, com uma taxa de homicídios
de cerca de 40 para cada 100 mil habitantes - índice que podia chegar a mais de
80 a cada 100 mil em determinados bairros da Zona Sul da cidade.
Em 1996, o Jardim Ângela, também próximo ao
cemitério, havia sido considerado um dos locais mais perigosos do mundo pela ONU.
Já semanas após o lançamento da música, a Folha afirmava que "em Santo
Amaro, a região mais violenta da cidade, houve apenas cinco homicídios, entre a
noite de sexta-feira e a manhã de segunda. A média por final de semana é de 12
assassinatos”, dizia a publicação.
Apesar de o SFMSP não dispor de sistema
informatizado e integrado de dados com seu acervo histórico, ou mesmo o
Instituto Médico Legal (IML) ou Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), quem
frequenta o São Luiz desde a década de 1990 sabe como eram os enterros por lá.
O vendedor de flores José Renato, de 58 anos,
afirma que trabalha na porta do São Luiz há, pelo menos, vinte anos. Segundo
ele, a situação antigamente era muito pior. "Na década de 1990, você não
poderia estar aqui a noite, era algo muito perigoso, havia assaltos, trocas de
tiros, um monte de coisa. Até no funeral tinha problema, quando uma gangue ou
alguns amigos do morto queriam se vingar”, diz.
"Eu enterrei meus primos, tios e alguns amigos
por aqui durante esses anos todos. Todos muito jovens e negros, conforme você
perguntou. Era uma loucura, muita gente dos nossos morria o tempo todo. Hoje,
isso aqui está lindo”, diz Paulo Souza, de 44 anos, que visitava o túmulo da
pequena sobrinha Renata, que tinha 4 anos, quando faleceu por um problema
crônico de saúde, há um ano.
Para Priscila Cevada, antropóloga ligada ao Núcleo
de Antropologia Urbana da USP, a situação social e financeira da periferia se
tornou terra fértil para a violência nessa região da cidade -vitimando,
principalmente, jovens e negros.
"Desde os anos 1970, com a expansão do centro
da cidade, a população pobre foi procurar espaços para morar, visto que o valor
dos imóveis e aluguéis subiu consideravelmente. A zona leste já estava bem
cheia e a região de Santo Amaro passou a ser uma opção viável aos pobres”, diz.
"Pela escassez de infraestrutura, a população
ficou à deriva e lógico, a violência se instaura como uma entidade nesses
espaços. Com isso, a criminalidade cresce e a ideia de justiceiros passa a ser
uma opção para os jovens. Então, essa ausência da presença do Estado, enquanto
espaço de socialização, abre portas para o embate da criminalidade e polícia. E
é lógico que esse embate só traz mais violência”, afirma.
• Algo
mudou?
Desde o lançamento da música que alçou as nuances
do cemitério São Luiz às demais classes sociais e regiões que compõem São
Paulo, muita coisa mudou. Outras, nem tanto.
Hoje, inegavelmente, o cemitério evoluiu. Apesar do
barro constante em meio às covas no chão de terra, o local, que foi privatizado
no começo deste ano para a empresa Velar SP, conta com uma equipe de manutenção
e segurança, além de ter tido diversas reformas.
No dia de Finados, famílias com camisetas em
homenagens aos mortos, em sua maioria de moradores da região, são vistas. Centenas
de jovens também circulam para oferecer serviços de manutenção com enxadas para
as covas, cobrando de R$ 5 a R$ 15 para limpar o mato e ajudar na localização
das covas de parentes.
A melhora do local não é apenas física e
representa, de certa forma, também a evolução da sociedade brasileira.
Atualmente, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo
tem 8,4 mortes por 100 mil habitantes - número muito abaixo das taxas dos anos
1990.
Há, contudo, chagas abertas. O percentual de pessoas
homens, negros e jovens enterrados por lá continua muito discrepante em
comparação a cemitérios de regiões mais centrais da metrópole o que, segundo
especialistas, representa as dificuldades que essa população ainda passa mesmo
25 anos depois da música, como a violência, o baixo acesso a saúde pública de
qualidade, problemas com drogas, entre outros.
Dados do Serviço Funerário do Município de São
Paulo compilados até o ano passado mostram que, nos últimos quatro anos, cerca
de 56% dos enterros por lá foram de pessoas negras ou pardas. Para efeito de
comparação, em cemitérios mais centrais, como o da Consolação e o de Pinheiros,
esse percentual não chega a 3%.
Os jovens também são maioria. Enquanto que nos dois
cemitérios centrais citados, o percentual de pessoas abaixo dos 50 anos
enterradas nos últimos três anos é de cerca de 5%, no São Luiz o número vai a
exorbitantes 34%.
Além disso, o São Luiz recebeu, nos últimos anos,
cerca de 57% dos mortos do sexo masculino. A lógica, porém, se inverte nos demais
locais. Os cemitérios da Quarta Parada e Consolação, por exemplo, têm um
percentual de 56% para mulheres e o restante para homens, por exemplo.
Ednalda Silva Soares, de 45 anos, foi ao São Luiz
prestar homenagem ao irmão, Lucas Silva Soares, morto aos 35 anos em janeiro de
2023 após ficar internado por problemas de alcoolismo e tabagismo.
"Eu encontrei ele na rua meses antes de ser
internado. Ele se separou da mulher, voltou a beber e acabou ficando pelas
ruas. Ainda tentei de tudo, mas infelizmente não foi possível salvar ele”, diz.
Jerusa Ferreira dos Santos, 47, também prestava
homenagens a um jovem. Seu filho, Tiago, morreu aos 27 anos após uma infecção
generalizada ao fazer uma cirurgia para prótese na perna. "Meu filho só me
deu orgulho. Ele era incrível, mas infelizmente teve esse problema e veio a
falecer. Enterramos ele aqui no São Luiz”, conta.
Para Priscila Cevada, a morte de jovens oriundos de
comunidades carentes, que acabam enterrados no São Luiz, mostra como a
periferia ainda enfrenta grandes desafios.
"Temos um espaço da cidade com uma super
população pobre e preta. Para essas pessoas, a mortalidade continua alta e o
São Luíz continua recebendo esses corpos”, diz. "O grupo Racionais
conseguiu botar os olhos do mundo na periferia, mas apenas os olhos. Mas a
falta de perspectiva de futuro continua matando esses jovens”, completa..
O álbum do Racionais que alçou o cemitério ao
estrelato é considerado a principal obra do maior grupo de rap do Brasil e o
livro que retrata as letras se tornou leitura obrigatória para o vestibular da
Unicamp (Universidade de Campinas), um dos mais concorridos do país. Mas os
desafios da população que frequenta o local ainda persistem.
Agradeço a Deus, aos orixás
Parei no meio do caminho e olhei pra trás
Meus outros manos todos foram longe demais
Cemitério São Luiz, aqui jaz
Mas que merda, meu oitão tá até a boca,
Que vida louca, por que é que tem que ser assim?
Ontem eu sonhei que um fulano aproximou de mim:
"Agora eu quero ver ladrão”!
Pá! Pá! Pá! Pá!
Fonte: Deutsche Welle
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