Garrincha, o anjo das pernas tortas, faria 90 anos
Animado pelos jogos de futebol, voltei a pegar um
livro que estava parado na estante: “A Estrela Solitária, Um brasileiro chamado
Garrincha”, de Ruy Castro. A obra, publicada em 1995, pela Editora Schwarcz
(Companhia das Letras) é considerada a mais completa biografia do craque até
agora. Para escrevê-la Ruy Castro entrevistou cerca de 170 pessoas e pesquisou
os 50 anos da história de Garrincha, durante dois anos e meio.
O resultado é um documento valioso, vivo e rico em
detalhes sobre as mudanças vividas no mundo do futebol e as condições em que
viviam os jogadores naqueles tempos. Estas mudanças se davam em uma situação em
que o Brasil, impulsionado pelo crescimento de indústrias metalúrgicas,
siderúrgicas e petrolíferas como a CSN, e a Petrobras, deixava de ser
predominantemente rural.
·
A personalidade de Garrincha
Considerado um dos maiores jogadores e o maior
driblador da história do futebol, Manuel Francisco dos Santos, o Mané
Garrincha, é humilde de nascença. Quando nasceu, no distrito de Pau Grande,
Magé (Rio de Janeiro), em 28 de outubro de 1933, sua parteira, Dona Leonor, foi
a primeira a notar que ele tinha as pernas tortas. Nas palavras de seu
biógrafo, a perna esquerda era arqueada para fora e a direita para dentro,
paralelas, como se uma rajada de vento de desenho animado as tivesse vergado
para o mesmo lado. Se, em criança, lhe tivessem posto um aparelho de correção
ortopédica, em pouco tempo as pernas de Manuel estariam alinhadas.
Mas quem iria pensar nisso na rua do Chiqueiro, em
Pau Grande, no ano de 1933? E talvez, se suas pernas tivessem sido alinhadas
não tivéssemos na nossa história, o craque de pernas tortas e espírito livre.
Com catorze anos de idade despertou a atenção do
jogador do Botafogo Arati. Teve uma breve passagem pelo Serrano Foot Ball Club,
time de Petrópolis, onde começou a receber dinheiro para jogar futebol. Mas
aquele menino pobre, do interior e, ainda por cima, com as pernas tortas, fora
repetidamente rejeitado pelos grandes clubes nos anos 50.
Até que, segundo a lenda, levado pelo olheiro
Eurico Salgado para fazer teste no Botafogo, fez bonito dando umas entortadas
no grande lateral esquerdo, Nilton Santos. Driblando o preconceito, Garrincha,
logo eternizou a estrela solitária da camisa do Botafogo.
No fim da década de 1950 a estrutura do futebol
brasileiro ainda era frágil e amadora. Sintoma desta fragilidade era a saúde
dos jogadores. Nem sempre as mazelas que traziam no organismo eram percebidas
pelos médicos dos clubes. Segundo Ruy Castro, Garrincha chegou ao Botafogo no
limite de sua fase de desenvolvimento muscular. Conseguiu encorpar com os
exercícios, mas não cresceu mais nenhum centímetro além dos seus 1,69 m de
altura. O Doutor Nova Monteiro chegou a dizer que ele tinha massa
muscular “comparável a de um cavalo”. E esse era um dos segredos do
equilíbrio do craque, os troncos que tinha como perna faziam-no resistir aos
piores trompaços dos adversários sem cair. Para derrubá-lo só com rapas e
rasteiras. Mesmo assim, ele logo se levantava e seguia com a bola dominada.
Entre seus colegas de time Garrincha aproveitava
para desfiar seu repertório de molecagens. E os companheiros não viam maldade
nas brincadeiras, mesmo nas mais grosseiras. Mas ele não era tolo. Garrincha
sabia com quem brincar e era sagaz ao conhecer as pessoas.
Em 1954 já havia aqueles que clamavam pela
convocação de Garrincha para a Copa do Mundo. Mas isso só aconteceu em 1958. O
jogador, entretanto, nunca pareceu se importar com isso. O biógrafo não
encontrou nenhum registro que afirmasse que Garrincha cogitava ser convocado,
mesmo quando a Copa do Mundo na Suécia batia às portas.
·
1958, quando o futebol
brasileiro cresceu e apareceu
Como de casos e causos é feito o futebol, cabe
dizer que o mesmo não se pode falar do Flávio Costa, técnico de 1954. Sua
certeza de que seria chamado para treinar a seleção de 1958 era tanta que
chegou a convidar a imprensa para um coquetel em seu apartamento luxuoso,
discursando, antecipada e extraoficialmente, como técnico da seleção.
Entretanto, para sua surpresa, dias depois, a Confederação Brasileira de
Desporto (CBD) anunciou que o escolhido era Vicente Feola, com seus 48 anos e
105 quilos.
Feola, que já havia sido campeão como treinador do
São Paulo e da seleção paulista, era respeitado, mas já estava quase aposentado
por problemas cardíacos. Como ele poderia ser treinador?
Naquele contexto era possível. Feola não teria que
dar conta de tudo sozinho, pois a CBD, sob comando do recém-contratado
presidente João Havelange e de seu vice, Paulo Machado de Carvalho, estava com
planos mais ambiciosos para aquela Copa. Pela primeira vez o Brasil ia para a
Copa do Mundo com um plano neuroticamente detalhista entre 07/04, data da
apresentação dos convocados a 29/06/1958, final do Mundial. Pela primeira vez a
seleção brasileira adotava o trabalho em equipe! Junto com o treinador, Feola,
trabalhariam o supervisor Carlos Nascimento, o preparador físico Paulo Amaral,
o médico Hilton Gosling, o administrador José de Almeida e o tesoureiro Adolpho
Marques.
Desde o hotel onde a seleção se hospedaria,
passagens aéreas considerando todas as hipóteses de encerramento da
participação na Copa, tudo havia sido pensado. Os 33 jogadores foram submetidos
a um check-up como nunca se vira no futebol brasileiro. Castro conta que
durante uma semana eles foram virados do avesso por clínicos, traumatologistas,
neurologistas, radiologistas, cardiologistas, oftalmologistas, otorrinos e até
calistas gerando assustadores resultados em laboratórios. Mesmo se tratando do
creme do futebol brasileiro, dos melhores jogadores, que ganhavam os maiores
salários, fisicamente aqueles homens pareciam ter acabado de chegar do mato com
uma trouxa às costas e um talo de capim entre os dentes. Os exames mostraram o
festival de vermes, lombrigas, anemias, sífilis, problemas de amídalas, de
digestão e de circulação que assolavam a seleção brasileira. Mas o pior era o
estado dentário dos atletas. Entre os 33 jogadores havia 470 dentes com
problemas, uma média de cerca de 15 por jogador! O total de extrações chegou à
32 dentes, perfazendo uma dentadura completa.
Outra inovação da CBD foi incluir na equipe uma
figura que naquele momento era no mínimo inusitada: um psicólogo. Até 1958
havia a ideia de que o jogador brasileiro tremia nas bases quando se tratava de
Copa do Mundo. Como medida de prevenção o psicólogo passou a acompanhar os
jogadores.
O minucioso planejamento ia mais longe. O
regulamento disciplinar, devidamente controlados por Carlos Nascimento,
continha quarenta itens, com proibições como descer para o café da manhã sem
estar barbeado e falar com a imprensa sobre assuntos da seleção. Mesmo com
certo exagero e com muito folclore aquela rigidez fazia sentido para o processo
de mudança empreendido no futebol e todo esse aparato surtiu efeito. Cada vez
mais a conquista da Copa do Mundo parecia possível.
Com o bom desempenho do Brasil no Mundial, Feola e
Nascimento temiam que o clima de já ganhou entre os jornalistas e torcedores
contagiasse os jogadores.
Mas o Brasil conseguiu atravessar a França e se
classificar para a grande final contra a Suécia.
Era 29 de junho de 1958 e o Brasil vibrou como
nunca com os gols marcados pela seleção canarinho. Ruy Castro conta que tudo
aconteceu em segundos. O placar marcava Brasil 4X2 e o jogo ia acabar. Mario
Américo pôs-se em alerta para invadir e pegar a bola assim que Guigue apitasse.
Todo o estádio estava de pé. Guigue levou o apito à boca, Nilton Santos cruzou,
Pelé subiu e cabeceou. Fez o quinto gol e caiu desmaiado. Eram 45 minutos
cravados e Guigue apitou o fim da Copa do Mundo de 1958. Foi uma seleção que
ficou na história projetando, além de Garrincha, craques como Pelé, Djalma
Santos e Zagallo.
Vivíamos em plena época de desenvolvimentismo, sob
governo de Juscelino Kubitschek. O jingle “A Taça do Mundo é Nossa”, de Wagner
Maugeri, Lauro Müller, Maugeri Sobrinho e Victor Dagô, deu o tom das
comemorações daquele primeiro título. O país começava a realizar o sonho de se
tornar o país do futebol.
·
O auge, em 1962, e o fim da
vida
No torneio seguinte, em 1962, no Chile, a festa
brasileira se repetiu. Com a contusão de Pelé, Garrincha brilhou com ainda mais
força na conquista do bicampeonato. Ao longo de sua vida o craque jogou
sessenta partidas entre os anos de 1955 e 1966 com a camisa da seleção
brasileira. Em todos esses jogos participou de apenas uma derrota (de 3 a 1
para a Hungria na Copa de 66). Atuando com Pelé, Garrincha não viveu sequer uma
derrota. A Copa de 1962 foi o auge de sua carreira. Depois disso entrou em um
triste processo de decadência, sobretudo devido à bebida.
Ele continuou jogando até 1972. Além do Botafogo
atuou pelo Corinthians, Flamengo e o Olaria no Brasil, e pelo Atlético Junior
da Colômbia. Mas cada vez mais a estrela se apagava. Tudo na vida do jogador se
desfez ao mesmo tempo em que seu futebol ficava relegado ao passado. Garrincha
faleceu no dia 20 de janeiro de 1983, vítima de cirrose do fígado, aos 50 anos.
Em seu epitáfio lê-se “Aqui jaz em paz aquele que foi a Alegria do Povo, Mané
Garrincha”.
Ele sempre será lembrado pelas conquistas, pelo gingado
em campo, pela brincadeira inocente, por sua força e por sua alegria. Garrincha
é um brasileiro que não nega a raça.
Ø Um memorial para Elza e Mané Garrincha. Por Luis Nassif
Nos anos 60, o Brasil acompanhava diariamente duas
histórias de amor. Elizabeth Taylor e Richard Burton, e Elza Soares e Mané
Garrincha. Mas com dois enfoques diferentes: enaltecia-se o casal Liz-Burton e
se atacava Elza Sores, apresentada como oportunista, por ter se apaixonado pelo
mais amado dos brasileiros da época.
A estrela de Mané começou a se apagar em
1966; a de Elza não. E ela segurou as pontas na fase de decadência do
ídolo. Especialmente depois que a ditadura os ameaçou, sua casa foi metralhada
e ambos tiveram que fugir para a Itália. Na Itália, Elza fez bicos para sobreviver
e teve que se mudar para Portugal, quando descobriram que não tinha autorização
para trabalhar no país. E teve que apoiar o marido quando o Brasil se sagrou
campeão do mundo, e Garrincha nem pode comemorar.
Até o fim de sua vida, Garrinha foi amparado por
Elza. E a belíssima história de amor encerrou-se hoje, com Elza morrendo no
mesmo dia da morte de Garrincha, em 1983.
Falta apenas um capítulo para o romance ter o fim
adequado: encontrar o corpo de Garrincha para que seja enterrado, ao lado da amada,
em um panteão para as grandes personalidades brasileiras do século 20.
O túmulo de Mané foi abandonado, depois que a
família deixou de pagar em Magé, no Rio de Janeiro. Foi despejado, os ossos
jogados em uma vala, com os restos mortais de outros familiares. Houve uma
época em que um prefeito da cidade anunciou trabalhos para identificar os
restos mortais. Mas ficou por isso mesmo.
Por isso, a maior homenagem que se poderia dar a
Elza seria a identificação dos restos mortais de Mané Garrincha, e a união de
ambos em um memorial em homenagem a dois dos grandes brasileiros da história.
Fonte: Por João Carlos Gonçalves, no Jornal GGN
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