Doenças neurológicas ligadas a uso de agrotóxicos crescem 600% em
cidade paraense
Ao redor da casa de Francisco Rodrigues, 43 anos, e
sua esposa, Márcia Guerreiro, 50 anos, sobrou apenas um naco de floresta, que
serve de moradia para alguns macacos que “gritam” em busca de comida. “É como
se eles exigissem [o alimento]. O homem destruiu, que dê um jeito de resolver”,
conta o agricultor que hoje vive rodeado pela soja, na comunidade Fé em Deus,
no km 55 da Rodovia Santarém-Curuá-Una, em Santarém (PA). O casal convive há
mais de 20 anos com os agrotóxicos da soja, um problema que continua a se
expandir no Planalto Santareno. Dos anos 2000 a 2021, houve uma perda de
aproximadamente 25 mil hectares de floresta para o plantio da monocultura, de acordo
com dados solicitados pela Agência Pública ao MapBiomas, instituição que mapeia
anualmente a cobertura e uso da terra do Brasil e monitora as mudanças do
território.
Francisco e Márcia resistem em sua casa apesar do
veneno que invade o terreno, contamina a água e prejudica suas plantações.
Muitos agricultores perderam suas terras para os sojicultores que compraram e
arrendaram as pequenas propriedades. Os que ficaram sofrem com os efeitos dos
agrotóxicos na saúde e a violência dos conflitos fundiários, como constatou a
Pública, quando visitou, em abril deste ano, as comunidades impactadas pela
soja em Santarém, com base nos dados do Mapa dos Conflitos, baseado nos dados
anuais da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
“Teve um dia que estavam borrifando [veneno] na
soja. Eu tava na roça, trabalhando. E comecei a passar mal. Os olhos coçavam,
via tudo meio embaçado. Meus lábios racharam. A garganta parecia que tava
fechando. Faltava ar. Foi como se a respiração travasse”, conta Francisco. “Eu
cheguei a reclamar. ‘Isso tá muito forte’, disse. Aí o homem me respondeu: ‘É
pra matar besouro. Retruquei: ‘Você vai matar os besouros e vai me matar
também’”, relembra Márcia. “A água que eu tomava parecia que tinha andiroba, de
tão amarga”, completa.
Além disso, Francisco relata que os igarapés da
região estariam contaminados pelos agrotóxicos. “A água vem do meio da
plantação de soja. E o veneno vem junto. Eu peguei uma coceira depois de ter
entrado no Igarapé. Coça, arde e queima. Quando ela ataca, com força, se eu coçar,
vai saindo os pedaços, vai arrancando o couro”, se queixa o agricultor.
Os sintomas apontados por Francisco coincidem com
os sintomas provocados por intoxicações agudas por agrotóxicos, como descreve a
bióloga Annelyse Rosenthal Figueiredo, doutora em saúde pública pela Fiocruz e
professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Oeste do
Pará, em Santarém. “Existem impactos diretos que são as intoxicações agudas,
que são aquelas que as pessoas têm quando entram em contato imediato com os
produtos tóxicos.
Os sintomas mais conhecidos são: dor de cabeça,
náuseas, coceiras, alergias e alergias respiratórias. Estes são os sintomas
clássicos quando tem pulverização. Mas também há os casos subagudos e crônicos,
que são aqueles de exposição a agrotóxicos em pequenas doses a médio e longo
prazo”, explica Annelyse, que em sua tese de doutorado buscou entender os
impactos do agrotóxico na população do Planalto Santareno, que é constituído
por áreas dos municípios de Santarém, Mojuí dos Campos e da região que foi o
recorte de sua pesquisa, Belterra.
A cientista analisou dados do Sistema de Informação
de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, em dois recortes
temporais, de 2004 a 2014 e de 2014 a 2022. Primeiro descobriu-se que nem
sequer há registros completos de possíveis casos de intoxicação e de doenças
derivadas de agrotóxicos, sobretudo, do glifosato, comumente usado nas
plantações de soja. “Durante os últimos 20 anos, desde que a soja chegou em
Belterra, eu encontrei um número muito baixo de registros de intoxicação aguda.
Tem a notificação de sete casos ao longo destes anos. E isso me deixou na
dúvida se o uso de agrotóxico na região é tão bem-feito ou os dados não
aparecem por algum motivo”, explica.
Annelyse relata que se deparou com casos em que o
paciente chegou ao posto de saúde com todos os sintomas e afirmações que
condizem com uma possível intoxicação, contudo a informação não foi lançada no
sistema. “O sistema de notificação precisa ser melhorado. Os profissionais precisam
ser capacitados para registrar da melhor forma o que está acontecendo. O Estado
precisa agir na proteção das pessoas”, diz.
• Impactos
à saúde
O mais alarmante, porém, foram os dados que a
pesquisadora encontrou ao se debruçar sobre os casos de intoxicação subaguda e
crônica, quando levantou, no DataSUS, os dados de doenças neurológicas,
má-formação fetal e câncer.
Os casos de doenças neurológicas cresceram mais de
600% em uma década. “Analisei o número de casos dessas doenças nos primeiros
dez anos e depois no outro período, o que constatei foi um aumento muito grande
entre os dois períodos. Foi muito intrigante encontrar dados de homens com 35 anos
com Alzheimer em Belterra. E dentro desses dois grupos de anos houve um aumento
de 667% nos casos de doenças neurológicas”, explica.
A pesquisadora esclarece que existem estudos que
correlacionam intoxicações por agrotóxicos com aumento no números de casos de
Alzheimer, má-formação congênita e leucemias em crianças. “O elevado número de
agravos que estão relacionados às intoxicações subagudas e crônicas por
agrotóxicos em Belterra nos indica que os casos de intoxicação aguda muito
provavelmente estão subnotificados no sistema. E isso revela uma fragilidade
institucional que precisa ser observada também por outros municípios que vivem
a mesma realidade de expansão do monocultivo de grãos.”
A Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará
(Sespa) informou que desde 2014 executa o programa de Vigilância em Saúde de
Populações Expostas a Agrotóxicos (VSPEA). O programa realiza a capacitação de
médicos, técnicos em enfermagem, enfermeiros, agentes comunitários de saúde
(ACS) e agentes de combate a endemias (ACE) e demais profissionais de saúde,
para estarem preparados para a identificação de áreas de risco de intoxicação,
população exposta a agrotóxicos, sintomas característicos de intoxicação
exógena por agrotóxicos e o preenchimento correto da ficha de notificação de
intoxicação exógena do Sinan.
Segundo o órgão, nesse período foi feita a
capacitação nos 144 municípios, para mais de 6 mil profissionais de saúde. A
Sespa ainda informou que vem realizando constantemente capacitações,
orientações e alertas que chamam atenção do profissional de saúde para a
ocorrência de possíveis casos agudos e crônicos de intoxicação.
A Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará
(Adepará), que é responsável pela fiscalização de venda e uso de agrotóxicos no
estado, não respondeu às perguntas da Pública sobre como tem se dado o processo
fiscalizatório na região, diante dos possíveis casos de intoxicação apontados
pela pesquisadora e denunciados pelo agricultores da região do Planalto
Santareno.
• Veneno
no fluxo da água
O igarapé em que Francisco Rodrigues se banhou – o
que ele afirma ter sido a causa de seus problemas na pele – fica na comunidade
Guaraná, também à beira da Santarém-Curuá-Una, que é um local vizinho da Fé em
Deus, onde ele vive. O curso d’água fica entre uma plantação de soja e a
rodovia. A água gelada garante ao povo o frescor diante do calor amazônico. De
criança a idosos, o que não falta é gente nadando durante todo o dia. Mas,
assim como ele disse, bastam uns minutos dentro da água para o corpo começar a coçar.
O relato dele é confirmado por Maria Luzenira
Mesquita da Silva, 67 anos, presidente da Associação de Moradores da Comunidade
do Guaraná (Amocomg). “Esse pessoal que trabalha com soja desmata e envenena as
terras, a água está contaminada. Quem vem tomar banho fica com a pele irritada,
com coceira. Antes não tinha isso, a água era muito limpa. Você via até o fundo
[do igarapé], e agora você não vê mais”, afirma Maria Luzenira.
O igarapé segue o seu fluxo até o rio Curuá-Una –
e, com ele, o veneno. E esse é o lamento de Raimundo Furtado Batista, de 60
anos. Ele é dono de um balneário na comunidade de Santa Maria, onde passa o
mesmo igarapé que corta a Guaraná. Já faz quase dois anos que os clientes são
proibidos de nadar no local. Situação que impactou diretamente o seu negócio.
“Eu fiquei no prejuízo. Fechei meu balneário para banho, porque a pessoa pode
adquirir uma doença e me processar”, afirma Batista. “Para os sojeiros, o que
importa é o cultivo. Se está matando ou prejudicando os menores [população
local], eles dizem que não têm nada a ver com isso”, reclama.
“Esse pessoal sempre fala que não precisa de água.
Que água eles têm quando quiser. Que é só mandar cavar um poço. Eles dizem que
só precisam de terra para trabalhar. Acredito que daqui a dez anos não teremos
mais o igarapé por causa do assoreamento, devido ao desmatamento nas margens
dele”, calcula Batista.
Segundo ele, o Instituto Evandro Chagas, órgão
vinculado à Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA), do Ministério
da Saúde (MS), esteve na região coletando água para análise, mas a comunidade
não teve nenhum retorno. Questionado pela Pública sobre a pesquisa e
resultados, o órgão não respondeu até a publicação da reportagem.
• Conflitos
fundiários
Além de sofrerem os efeitos dos agrotóxicos, os
agricultores do Planalto Santareno lutam por áreas de plantio. Lideranças
sociais na região, Francisco Rodrigues e Márcia Guerreiro estão à frente da
Associação dos Moradores da Comunidade Jatobá da Volta Grande. A associação
representa a comunidade Jatobá, área com um pouco mais de 700 hectares ocupada
por camponeses em 2014, sob a alegação de que a expansão do monocultivo na área
do Planalto tem conduzido à retirada das suas condições de trabalho.
Atualmente, 60 famílias, que vivem desde a década de 1970 no Planalto
Santareno, utilizam o espaço para a produção agrofamiliar.
A área ocupada pelos agricultores faz parte da
fazenda Canaã, que pertence a Alvadi Christofolli, que se dedica ao plantio de
grãos, como soja e milho. No final de 2021, foi ajuizada uma ação de
reintegração de posse contra as famílias do Jatobá, que, agora, correm o risco
de perder as terras em processo judicial. “Nós temos muitas plantações ali.
Pimenta-do-reino, macaxeira, abacate, pupunha, cana-de-açúcar. Ali a gente
produz de tudo! Se a gente perder a Jatobá, nós não temos para onde ir. É o
agronegócio querendo nos atropelar de qualquer forma e tirar as famílias da
comunidade Jatobá”, lamenta Francisco.
No último ano, os camponeses da Jatobá produziram
mais de 40 toneladas de farinha de mandioca. A informação consta no inventário
da associação e no laudo pericial anexado ao processo, ao qual a Pública teve
acesso. De acordo com o documento, outras cadeias produtivas são complementares
à venda de farinha: pimenta-do-reino, cumau, cacau, cupuaçu, citros, mamão,
abacaxi, graviola, cana-de-açúcar, milho e arroz. Todo esse alimento abastece a
cidade de Santarém e regiões vizinhas, além dos próprios camponeses. O
documento afirma ainda que o impacto social, caso os agricultores sejam
obrigados a sair das terras, seria brutal, resultando em processos de êxodo
rural e geração de pobreza. Estima-se que o impacto econômico disso seria de
quase meio milhão de reais por ano, caso eles fiquem sem terra para plantar.
“Para Santarém, a gente encaminha a farinha,
pimenta-do-reino e a pupunha. Vendemos por meio de um atravessador,
infelizmente. Nós, da Jatobá, não temos banca na feira popular. Não conseguimos
ainda. Até tem uma cooperativa próxima da gente, mas, como não estamos seguros
na terra [devido à instabilidade jurídica], não é possível se associar. Só será
possível se vencermos essa luta na Justiça”, explica Francisco.
O advogado popular Lincon Aguiar, do coletivo
Maparajuba Direitos Humanos na Amazônia, que atua em defesa da comunidade,
explica que boa parte da farinha produzida em Santarém é oriunda da Jatobá.
Segundo ele, a expectativa é que em 2023 sejam produzidas cerca de 100
toneladas do alimento. Contudo, na localização do plantio se encontra o
conflito. “O Planalto Santareno está sendo tomado pelo monocultivo da soja.
Acredito que este seja o primeiro caso que se registra em Santarém de
agricultores familiares sem terra. Os produtores de soja vão comprando todas as
grandes porções de terra na região do Planalto e vão pressionando os
agricultores a irem cada vez mais longe até que fiquem sem terra. É o caso
destas famílias que ocuparam este lote. E agora disputam espaço com a soja,
para produzir no Planalto”, diz Aguiar.
Diante da iminência de ficar sem terra para plantar,
Márcia alivia sua tensão e ansiedade em palavras. Dos muitos poemas que
escreve, um ela gostaria de ler ao juiz da causa, disse ela à Pública. Um
trecho diz: “Olhe em volta e veja minhas pequenas plantações. Se tirar de mim o
pouco que tenho, como vou sustentar meus filhos que ainda são crianças? Veja
senhor, tô com sede, mas da água não posso beber. Deve estar se perguntando
porquê, simplesmente está poluída por causa do veneno. Sofre nós. E sofre a
natureza também”. No Planalto Santareno, Jatobá significa esperança, diz
Márcia, “é lá que a natureza compensa. Que ainda é possível acordar com a
orquestra dos pássaros. E respirar sentindo o cheiro da mata”, reflete a
agricultora. “Eu gostaria de perguntar: é justo perder tudo isso, seu juiz?”
Procuramos Dilermando Bentes, que atua na defesa de
Christofolli, mas não houve retorno. O Tribunal de Justiça do Pará (TJPA)
também não respondeu sobre as atualizações do processo e os questionamentos
enviados pela reportagem.
Fonte: Por Leandro Barbosa, da Agencia Pública
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