Como o governo Caiado escondeu dados sobre a Cognyte e espalhou
desinformação
A Polícia Civil de Goiás desinformou jornalistas
que buscavam noticiar os contratos da empresa israelense Cognyte com o governo
estadual ao passar informações incompletas após reportagem da Agência Pública.
Em 23 de outubro, a Pública revelou que quatro
estados, entre eles o governado por Ronaldo Caiado (União-GO), haviam negado
informações solicitadas pela Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre os
contratos com a Cognyte. A empresa é dona do programa espião First Mile,
investigado pela Polícia Federal (PF) por ter sido usado pela Agência
Brasileira de Inteligência (Abin) para supostamente monitorar críticos ou
opositores de Jair Bolsonaro (PL).
O governo de Goiás contratou em 2020 a Cognyte
(então denominada Suntech S/A) pelo valor de R$ 7,6 milhões por meio da
Secretaria de Segurança Pública (SSP). Obtido pela Pública, o contrato previa
10 mil acessos ao programa espião First Mile por um prazo de 24 meses a contar
de junho de 2021.
O First Mile permite acompanhar a movimentação em
tempo real de uma pessoa que esteja usando um telefone celular. A vigilância em
massa contra opositores políticos por meio dessa mesma ferramenta foi detectada
em países como Mianmar e Sudão do Sul.
Na segunda quinzena de setembro, a reportagem
solicitou por LAI o acesso à execução do contrato, incluindo as notas fiscais,
para tentar entender todo o alcance e a capacidade dos programas oferecidos
pela Cognyte ao governo de Goiás.
No dia 3 de outubro, ou seja, após o pedido da
Pública, o delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, André Gustavo Corteza
Ganga, classificou as informações solicitadas pela reportagem como “reservadas”
por 5 anos. Com isso, só poderão ser conhecidas a partir de 3 de outubro de
2028. O termo de classificação de informação foi preenchido no mesmo dia em que
a demanda da reportagem por LAI foi respondida e não contou com a assinatura de
uma autoridade ratificadora — uma segunda opinião que atestaria o entendimento
de que os documentos devem ser colocados sob sigilo.
No despacho, o delegado argumentou que “o
conhecimento dessas informações possibilitaria ações direcionadas pela
criminalidade, a neutralização de ações de inteligência e investigação,
dificultando a atuação da polícia judiciária, comprometendo a segurança do
Estado e da sociedade”.
A informação revelada pela Pública repercutiu entre
veículos jornalísticos locais. Porém, em nota enviada a eles, a Polícia Civil
tentou desmentir as reportagens e argumentou que as informações nunca foram
sigilosas, já que os contratos e notas fiscais estão disponíveis no Portal da
Transparência do Estado.
O retorno publicado pelos veículos não cita os
outros documentos solicitados pela Pública nem a declaração de sigilo assinada
pelo delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, que foi disponibilizada na
íntegra na matéria original.
• Os
documentos que o governo de Goiás esconde
O retorno ao pedido de LAI feito pela Pública
explica todo o processo de tramitação da solicitação de acesso aos documentos.
A demanda foi recebida pela Secretaria de Estado de Segurança Pública de Goiás,
que levantou dez documentos em atendimento aos pedidos da reportagem. Entre
eles estão o contrato, o aditivo, três notas fiscais, uma nota de empenho, e
quatro relatórios. Desses, apenas o contrato, o aditivo e as notas fiscais
foram disponibilizados no Portal da Transparência.
Os relatórios —
nomeados “Relatório 1 (evento n.º 000030728343)” e “Relatórios Convênio
(eventos n.º 51966668 / n.º 51966736 / n.º 51966749)” — não estão disponíveis.
Após elencar os documentos solicitados, a SSP-GO
repassou a demanda à Polícia Civil, a quem caberia “analisar a solicitação,
inclusive sob a ótica do sigilo das informações, haja vista se tratar de
aquisição de Solução de Interceptação Telefônica e Telemática”. Dessa forma,
coube à PC decidir se os documentos seriam ou não compartilhados. A orientação
da Gerência Técnico-Policial da Polícia Civil foi pelo indeferimento dos
pedidos com a justificativa, já citada, de que o conteúdo “possibilitaria ações
direcionadas pela criminalidade”.
A palavra final foi de Ganga, que assinou o termo
de classificação da informação e decretou o sigilo. Dessa forma, a informação
disseminada pela PCGO — e publicada em
outras reportagens — de que “jamais foi colocado sigilo” sobre as informações
não é verdadeira.
Além de ter negado o compartilhamento da totalidade
dos documentos, o despacho também não cita que parte deles está disponível no
Portal da Transparência, como fizeram outros quatro estados em retornos por
LAI.
A reportagem entrou em contato com a Polícia Civil
de Goiás e com a Secretaria de Segurança Pública do Estado, mas as instituições
não responderam até a publicação. No contato, a Pública questionou os órgãos
sobre as contradições entre a resposta por LAI e a nota enviada aos veículos da
imprensa, além de ter pedido o compartilhamento da íntegra da nota. A
reportagem ainda reforçou a solicitação de que sejam compartilhados todos os
documentos ligados à contratação da empresa Cognyte, tendo citado nominalmente
os documentos que não estão disponíveis no Portal da Transparência. Caso se
manifestem, o texto será atualizado.
Parlamentares
poupam órgãos que compraram programa espião da Cognyte alvo da PF
Após o depoimento do diretor-geral da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin), Luiz Fernando Corrêa, à Comissão Mista de
Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) nesta quarta-feira (25), para
explicar o uso do programa espião First Mile, parlamentares não se
comprometeram a pedir explicações a outros órgãos públicos que contrataram este
e outros produtos similares da empresa israelense Cognyte nos últimos anos.
A companhia somou mais de R$57 milhões em contratos
firmados com o poder público brasileiro após fechar negócio com a Abin, em
dezembro de 2017, vendendo produtos para a Aeronáutica, o Exército, a Polícia
Rodoviária Federal (PRF) e pelo menos outros nove estados. O fato foi revelado
pela Agência Pública na última sexta-feira (20), dia da operação Última Milha,
da Polícia Federal (PF).
Antes e depois da reunião da CCAI, a Pública
questionou membros da comissão se haveria apuração sobre os outros contratos da
Cognyte junto a órgãos federais, como aqueles com as Forças Armadas. Porém,
nenhum dos membros previu medidas concretas, como por exemplo protocolar
requerimentos de informação aos órgãos que usam produtos da Cognyte ou a
convocar servidores responsáveis por fiscalizar o uso das ferramentas do grupo
israelense.
“Aprovamos
requerimento a outros órgãos envolvidos, como a CGU [Controladoria-Geral da
União] e o Supremo [Tribunal Federal] para termos acesso a todas as informações
relacionadas à contratação e utilização deste programa [First Mile], para que
num segundo momento possamos ouvir outras autoridades”, disse o presidente da
CCAI, deputado federal Paulo Alexandre Barbosa (PSDB-SP), em entrevista
coletiva após a reunião.
Em agosto, a Pública já havia revelado, com
exclusividade, que a Comissão do Exército Brasileiro em Washington (EUA) gastou
mais de R$ 4 milhões no fim do governo Bolsonaro para a “renovação de licenças
de interesse” dos militares junto à Cognyte, uma compra que foi publicada no
Diário Oficial da União somente em janeiro deste ano, já no governo Lula.
Depois da 1ª fase da Operação Última Milha, o
jornal Folha de S. Paulo revelou que militares do Gabinete de Intervenção
Militar no Rio de Janeiro tinham comprado produtos espiões da Cognyte, ainda em
2018. Mesmo com tais fatos públicos, não houve qualquer sinal de mobilização
dos parlamentares da CCAI, para esclarecer o uso destas ferramentas pelo
Exército.
“É
importante dizer que o encontro de hoje foi motivado pelos fatos revelados na
sexta [após a operação da PF], e nem isso foi devidamente esclarecido”, disse o
vice-presidente da CCAI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), após o término da
reunião.
No encontro, estava o deputado federal Alexandre
Ramagem (PL-RJ), membro da comissão e ex-diretor-geral da Abin no período
atualmente investigado pela PF. O parlamentar evitou a imprensa ao chegar para
a reunião e, ao término, saiu por uma das salas anexas ao local do encontro,
sem falar com os repórteres.
“O Ramagem,
por bem dizer, deveria pedir para sair [da CCAI], né? Essa seria a posição mais
correta, por mais que não haja nada que o impeça de continuar na comissão… mas
é constrangedor”, disse aos repórteres o deputado federal Carlos Zarattini
(PT-SP), outro membro da CCAI, antes do início dos trabalhos.
Ramagem tem se eximido de responsabilidade sobre o
suposto uso ilegal do First Mile durante sua gestão na Abin. Em sua conta na
rede social X (antigo Twitter), o deputado afirmou que “o setor de operações da
Abin possuía exclusividade e discricionariedade sobre o uso da ferramenta” e
que “só o setor de operações possuía senha e gestão do sistema”, referindo-se
ao programa da Cognyte.
À Pública, Ramagem já havia afirmado que sua gestão
promoveu “uma auditoria formal de todos os contratos” da Abin, o que incluía o
First Mile – programa adquirido em dezembro de 2017, quando a agência estava
subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional do general da reserva do
Exército Sérgio Etchegoyen.
Fonte: Por Laura Scofield, Rubens Valente e Caio de
Freitas Paes, da Agencia Pública
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