A epidemia oculta de espancamento nas escolas que assola o Quênia
Após servir-se além da porção do café da manhã da
escola, no Quênia, Caleb Mwangi foi espancado tão gravemente que foi colocado
em coma induzido e passou 11 dias numa unidade de terapia intensiva.
"Quando cheguei lá, ele não conseguia sair da
cama. Ele não conseguia falar", disse o pai, Fred Mwangi, à BBC.
A agressão aconteceu há quase dois anos, quando
Caleb tinha 13 anos. Sentado entre a mãe e o pai, no sofá da casa, em Mombaça,
uma cidade na costa do Quênia, ele diz que de vez em quando a sua cabeça
simplesmente "desliga".
O adolescente está cheio de raiva, o que às vezes o
leva a dar socos na parede, efeito do trauma causado pela experiência de quase
morte que passou, diz ele.
Fred Mwangi faz o filho levantar e puxa o colete
branco para mostrar a cicatriz espessa que cobre quase toda a largura e
comprimento de suas costas.
Ele conta que as feridas do filho eram tão
profundas que o cirurgião teve que remover grandes pedaços de pele das coxas de
Caleb para usar como enxerto.
"Este é ele no hospital”, diz a mãe, Agnes
Mutiri, mostrando fotos de Caleb em seu telefone, fortes demais para serem
publicadas. Deitado de bruços na cama, lacerações cobriam suas pernas, costas e
braços, e até mesmo seu rosto. Foram quase cem no total.
"Seu corpo todo estava assim."
O castigo corporal nas escolas tem uma longa
história no Quênia, que remonta à época em que missionários e colonizadores
usavam de agressão física para afirmar sua autoridade.
Em 2001, o governo queniano proibiu a prática nas
escolas. Mas mudar a atitude das pessoas tem sido mais difícil.
Números do último relatório Violência Contra as
Crianças, uma pesquisa familiar nacional realizada em 2019, revelou que mais de
metade dos jovens quenianos entre os 18 e 24 anos concordaram ser necessário
que professores fizessem uso de castigos corporais.
A BBC Africa Eye descobriu um aumento preocupante
no número de casos graves reportados.
No caso de Caleb, ele conta que quem primeiro o
espancou foi Nancy Gachewa, a diretora do Centro Educacional Gremon - uma
escola na cidade de Bamburi, perto de Mombaça. E, em seguida, ela deu a ordem
para que outros estudantes continuassem. Gachewa nega e diz que não estava na
escola quando tudo aconteceu.
“Eu estava com tanta fome que peguei cinco chapatis
e comi com chá”, diz Caleb.
Gachewa e um estudante mais velho, Idd Salim, foram
presos e acusados de agressão e de causar lesões corporais graves. Salim foi
condenado a quatro anos de prisão no ano passado e, num acordo de confissão,
testemunhou contra Gachewa diante do tribunal. O processo contra a diretora
continua.
Embora o caso de Caleb seja horrível, está longe de
ser o único. Um funcionário da Teachers Service Commission (TSC), uma
organização independente que gere a profissão de professor no Quênia, falou à
BBC Africa Eye em condição de anonimato.
E disse que, nos últimos três anos, os relatos de
espancamentos escolares mais graves mais do que quadruplicaram, de sete para
29. E a maioria dos incidentes jamais é reportada.
"Está virando uma crise e... sentimos que está
saindo do controle, agora. Casos de crianças feridas e mutiladas. Alguns destes
casos resultaram em consequências muito graves, até mesmo de morte",
disse.
A fonte disse que os casos de espancamentos
escolares relatados ao TSC a nível distrital muitas vezes não vão adiante,
acrescentando que casos foram “enterrados” e “nunca viram a luz do dia”.
"Muitas vezes, quando o caso chega até nós,
muitas provas já foram corrompidas. Às vezes nem conseguimos contatar as
testemunhas."
A BBC Africa Eye entrou em contato com o TS, para
que respondesse às alegações, mas não obteve resposta.
A ideia de que um estudante possa morrer nas mãos
de profissionais da educação que deveriam protegê-lo é inimaginável para a
maioria das pessoas, mas nos últimos cinco anos, mais de 20 mortes ligadas a
espancamentos em escolas foram noticiadas pelos meios de comunicação.
Acredita-se que Ebbie Noelle Samuels, de 15 anos,
seja um deles.
Ebbie era aluna interna da escola secundária
Gatanga CCM, no condado de Murang'a, cerca de 60 km (37 milhas) a nordeste da
capital, Nairobi.
No dia 9 de março de 2019, sua mãe, Martha Wanjiro
Samuels, foi chamada pela escola, onde lhe informaram que a filha não estava
bem e que estava no hospital.
Quando Samuels chegou lá, Ebbie já estava morta.
A escola disse que a jovem morreu enquanto dormia,
mas testemunhas afirmam que ela foi espancada pelo vice-diretor por causa da
forma como usava o cabelo.
“O relatório da autópsia revelou que ela teve
ferimento grave na cabeça, traumatismo. Então, alguém bateu nela e causou esse
tipo de ferimento, levando à sua morte”, disse Samuels.
Durante quatro anos ela fez campanha que a morte de
sua filha fosse investigada.
E em janeiro passado, Elizabeth Wairimu Gatimu,
antiga vice-diretora da escola de Ebbie, foi presa por homicídio. Mas ela nega
as acusações.
“Farei tudo o que for necessário enquanto estiver
viva para garantir que justiça seja feita à minha filha”, disse a Samuels, que
ainda aguarda a conclusão do caso.
“Eu disse a mim mesma: 'Não serei silenciada. Não
vou ficar calada. Não vou desistir de lutar.' Talvez o dia em que eu desistir
seja o dia em que dormirei como minha filha. Mas enquanto eu respirar, não vou
desistir."
A BBC Africa Eye solicitou uma entrevista ao Ministério
da Educação do Quênia, mas ninguém quis falar.
Uma organização que está pressionando por mudança é
a Beacon Teachers Africa. Lançada no Quênia há quatro anos pelo grupo não
governamental Plan International, junto com o TSC, seu objetivo é dar aos professores
a oportunidade de proteger as crianças nas escolas e em suas comunidades.
E já conta com uma rede de 50.000 professores em 47
países de África.
Robert Omwa é um dos 3 mil professores Beacon no
Quênia. Além de educar as crianças sobre seus direitos, ele também realiza
oficinas para treinar professores sobre como ensinar disciplina sem usar
castigos corporais.
"Inicialmente, eu estava cético. Pensei que
fosse ideologia ocidental, que criança africana tem que apanhar. Mas quando
tentei, senti-me aliviado como professor. Senti-me mais leve. Senti que as
crianças gravitaram mais em minha direção." ele disse.
De volta a Mombaça, Caleb e sua família aguardam
para saber o destino da diretora da escola, que declarou-se inocente.
O jovem de 15 anos ainda tem dificuldade de
processar o que aconteceu com ele.
“Para que eu consiga justiça, quero que esta mulher
seja presa.”
Fonte: BBC Africa EYE
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