quarta-feira, 1 de novembro de 2023

A epidemia oculta de espancamento nas escolas que assola o Quênia

Após servir-se além da porção do café da manhã da escola, no Quênia, Caleb Mwangi foi espancado tão gravemente que foi colocado em coma induzido e passou 11 dias numa unidade de terapia intensiva.

"Quando cheguei lá, ele não conseguia sair da cama. Ele não conseguia falar", disse o pai, Fred Mwangi, à BBC.

A agressão aconteceu há quase dois anos, quando Caleb tinha 13 anos. Sentado entre a mãe e o pai, no sofá da casa, em Mombaça, uma cidade na costa do Quênia, ele diz que de vez em quando a sua cabeça simplesmente "desliga".

O adolescente está cheio de raiva, o que às vezes o leva a dar socos na parede, efeito do trauma causado pela experiência de quase morte que passou, diz ele.

Fred Mwangi faz o filho levantar e puxa o colete branco para mostrar a cicatriz espessa que cobre quase toda a largura e comprimento de suas costas.

Ele conta que as feridas do filho eram tão profundas que o cirurgião teve que remover grandes pedaços de pele das coxas de Caleb para usar como enxerto.

"Este é ele no hospital”, diz a mãe, Agnes Mutiri, mostrando fotos de Caleb em seu telefone, fortes demais para serem publicadas. Deitado de bruços na cama, lacerações cobriam suas pernas, costas e braços, e até mesmo seu rosto. Foram quase cem no total.

"Seu corpo todo estava assim."

O castigo corporal nas escolas tem uma longa história no Quênia, que remonta à época em que missionários e colonizadores usavam de agressão física para afirmar sua autoridade.

Em 2001, o governo queniano proibiu a prática nas escolas. Mas mudar a atitude das pessoas tem sido mais difícil.

Números do último relatório Violência Contra as Crianças, uma pesquisa familiar nacional realizada em 2019, revelou que mais de metade dos jovens quenianos entre os 18 e 24 anos concordaram ser necessário que professores fizessem uso de castigos corporais.

A BBC Africa Eye descobriu um aumento preocupante no número de casos graves reportados.

No caso de Caleb, ele conta que quem primeiro o espancou foi Nancy Gachewa, a diretora do Centro Educacional Gremon - uma escola na cidade de Bamburi, perto de Mombaça. E, em seguida, ela deu a ordem para que outros estudantes continuassem. Gachewa nega e diz que não estava na escola quando tudo aconteceu.

“Eu estava com tanta fome que peguei cinco chapatis e comi com chá”, diz Caleb.

Gachewa e um estudante mais velho, Idd Salim, foram presos e acusados de agressão e de causar lesões corporais graves. Salim foi condenado a quatro anos de prisão no ano passado e, num acordo de confissão, testemunhou contra Gachewa diante do tribunal. O processo contra a diretora continua.

Embora o caso de Caleb seja horrível, está longe de ser o único. Um funcionário da Teachers Service Commission (TSC), uma organização independente que gere a profissão de professor no Quênia, falou à BBC Africa Eye em condição de anonimato.

E disse que, nos últimos três anos, os relatos de espancamentos escolares mais graves mais do que quadruplicaram, de sete para 29. E a maioria dos incidentes jamais é reportada.

"Está virando uma crise e... sentimos que está saindo do controle, agora. Casos de crianças feridas e mutiladas. Alguns destes casos resultaram em consequências muito graves, até mesmo de morte", disse.

A fonte disse que os casos de espancamentos escolares relatados ao TSC a nível distrital muitas vezes não vão adiante, acrescentando que casos foram “enterrados” e “nunca viram a luz do dia”.

"Muitas vezes, quando o caso chega até nós, muitas provas já foram corrompidas. Às vezes nem conseguimos contatar as testemunhas."

A BBC Africa Eye entrou em contato com o TS, para que respondesse às alegações, mas não obteve resposta.

A ideia de que um estudante possa morrer nas mãos de profissionais da educação que deveriam protegê-lo é inimaginável para a maioria das pessoas, mas nos últimos cinco anos, mais de 20 mortes ligadas a espancamentos em escolas foram noticiadas pelos meios de comunicação.

Acredita-se que Ebbie Noelle Samuels, de 15 anos, seja um deles.

Ebbie era aluna interna da escola secundária Gatanga CCM, no condado de Murang'a, cerca de 60 km (37 milhas) a nordeste da capital, Nairobi.

No dia 9 de março de 2019, sua mãe, Martha Wanjiro Samuels, foi chamada pela escola, onde lhe informaram que a filha não estava bem e que estava no hospital.

Quando Samuels chegou lá, Ebbie já estava morta.

A escola disse que a jovem morreu enquanto dormia, mas testemunhas afirmam que ela foi espancada pelo vice-diretor por causa da forma como usava o cabelo.

“O relatório da autópsia revelou que ela teve ferimento grave na cabeça, traumatismo. Então, alguém bateu nela e causou esse tipo de ferimento, levando à sua morte”, disse Samuels.

Durante quatro anos ela fez campanha que a morte de sua filha fosse investigada.

E em janeiro passado, Elizabeth Wairimu Gatimu, antiga vice-diretora da escola de Ebbie, foi presa por homicídio. Mas ela nega as acusações.

“Farei tudo o que for necessário enquanto estiver viva para garantir que justiça seja feita à minha filha”, disse a Samuels, que ainda aguarda a conclusão do caso.

“Eu disse a mim mesma: 'Não serei silenciada. Não vou ficar calada. Não vou desistir de lutar.' Talvez o dia em que eu desistir seja o dia em que dormirei como minha filha. Mas enquanto eu respirar, não vou desistir."

A BBC Africa Eye solicitou uma entrevista ao Ministério da Educação do Quênia, mas ninguém quis falar.

Uma organização que está pressionando por mudança é a Beacon Teachers Africa. Lançada no Quênia há quatro anos pelo grupo não governamental Plan International, junto com o TSC, seu objetivo é dar aos professores a oportunidade de proteger as crianças nas escolas e em suas comunidades.

E já conta com uma rede de 50.000 professores em 47 países de África.

Robert Omwa é um dos 3 mil professores Beacon no Quênia. Além de educar as crianças sobre seus direitos, ele também realiza oficinas para treinar professores sobre como ensinar disciplina sem usar castigos corporais.

"Inicialmente, eu estava cético. Pensei que fosse ideologia ocidental, que criança africana tem que apanhar. Mas quando tentei, senti-me aliviado como professor. Senti-me mais leve. Senti que as crianças gravitaram mais em minha direção." ele disse.

De volta a Mombaça, Caleb e sua família aguardam para saber o destino da diretora da escola, que declarou-se inocente.

O jovem de 15 anos ainda tem dificuldade de processar o que aconteceu com ele.

“Para que eu consiga justiça, quero que esta mulher seja presa.”

 

Fonte: BBC Africa EYE

 

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