Por que problemas
na Justiça podem deixar Bolsonaro inelegível e fortalecer Trump em disputa por
Presidência?
Analistas
políticos advogam que nunca houve um líder político mais parecido com o
ex-presidente americano Donald Trump do que o ex-presidente brasileiro Jair
Bolsonaro.
Enquanto
estiveram no poder, ambos mantiveram estilos de governo semelhantes: fortemente
baseados em comunicação direta com os eleitores, via rede social, com agenda
conservadora nos costumes, amplo apoio de grupos evangélicos, e discurso
nacionalista.
Diante
da disputa — e da derrota — para a reeleição, os dois mobilizaram os apoiadores
com acusações sem provas de fraude para desacreditar o sistema eleitoral.
Nos
Estados Unidos, o descrédito culminou na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. E o Brasil viu
a destruição da Praça dos Três Poderes
em 8 de janeiro de 2023. Os dois episódios são qualificados por políticos e
analistas como tentativas de golpe de Estado.
Fora
do poder, tanto Trump quanto Bolsonaro acumularam pendências com a Justiça. O
republicano se tornou o primeiro ex-presidente americano a ser formalmente
acusado pelo Departamento de Justiça. E Bolsonaro enfrenta nesta semana um
processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pode torná-lo inelegível até 2030.
O
ex-presidente brasileiro é acusado de abuso de poder político e econômico por
ter convocado uma reunião com embaixadores para fazer falsas acusações ao
sistema eleitoral. Além deste caso, Bolsonaro é alvo de inquéritos por fake
news e milícias digitais há dois anos e também enfrenta investigações pelos
atos de 8 de janeiro, por falsificação de cartão vacinal e pelo caso das joias
presenteadas pelo governo saudita e retidas na Receita Federal.
Já
Trump tem duas investigações abertas contra si e outros dois indiciamentos.
Ele enfrenta, por exemplo, acusações
criminais por manusear documentos confidenciais depois que deixou a Casa Branca.
Se
as trajetórias de ambos são tão semelhantes enquanto estiveram no coração do poder,
nos últimos meses, porém, o roteiro das histórias tem tomado rumos opostos.
Longe
de ferir a imagem pública de Trump, os revezes judiciais parecem — até agora —
ter dado força ao republicano. Ele desponta como o favorito para se consolidar
não apenas como o candidato do Partido Republicano, como sustenta boas chances
de voltar a ocupar a Casa Branca em 2025, segundo pesquisas eleitorais.
De
acordo com o agregado de pesquisas do site americano FiveThirtyEight, em meados
de fevereiro, dias antes dos indiciamentos, Trump tinha 41,9% das intenções de
voto nas primárias republicanas, contra 38,7% do governador da Flórida Ron
DeSantis, seu principal oponente.
Agora,
Trump registra 51,9%, contra 23,8% de DeSantis. Ou seja, a diferença que foi de
pouco mais de 3 pontos percentuais subiu para mais de 28 pontos após os
indiciamentos.
Embora
ainda falte mais de um ano para a disputa, Trump já aparece entre 3 e 4 pontos
percentuais à frente do presidente Joe Biden, provável candidato democrata em
2024, nas sondagens nacionais.
Já
Bolsonaro viu seus auxiliares mais próximos serem presos em casos que respingam
na imagem do próprio ex-presidente e foi aconselhado pelos líderes da direita
brasileira a submergir desde que deixou o posto. Ele admitiu esta semana em
entrevista à Folha de S.Paulo que "a tendência, o que todo o mundo diz, é
que eu vou me tornar inelegível".
O
tom resiliente de Bolsonaro contrasta com as manifestações abundantes de Trump
que acusa a Justiça americana de "caça às bruxas".
Pesquisas
de opinião recentes têm sugerido que eleitores bolsonaristas começam a avaliar
positivamente o governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva. De acordo com
levantamento da Quaest divulgado em 21 de junho, entre os que votaram 22 no ano
passado, a aprovação do governo Lula passou de 14% para 22%.
Já
sobre a inelegibilidade do ex-presidente, o país está dividido, com ligeira
vantagem dos que querem o impedimento de Bolsonaro: 47% a 43%.
O
descasamento do destino entre Trump e Bolsonaro é explicado por fatores como a
ausência de Lei da Ficha Limpa nos EUA, o conteúdo dos processos contra cada um
deles, além da organização partidária diferente nos países, segundo analistas.
Entenda os principais pontos a seguir:
1.
Processar presidente é tabu nos EUA?
Embora
Donald Trump tenha deixado a Presidência dos EUA há mais de dois anos, foi
apenas em março de 2023 que ele acabou indiciado pela primeira vez, em um
processo liderado pela promotoria de Nova York, e em um caso envolvendo um
suposto affair com uma atriz pornô que remonta à sua primeira eleição, em 2016.
Seu
primeiro indiciamento federal, em que é acusado de deliberadamente manter em
sua posse documentos ultra secretos e obstruir a Justiça, sairia quase 3 meses
mais tarde, em junho.
A
demora, segundo a avaliação do analista político Brian Winter, editor da
revista Americas Quarterly, não se deve só ao já normalmente moroso desenrolar
dos processos judiciais nos EUA.
"A
diferença é que o judiciário brasileiro tem processado Bolsonaro com uma
velocidade que o sistema americano não foi capaz e acho que é porque nos
Estados Unidos temos um tabu em relação a acusar ex-presidentes. E essa foi uma
linha que a Justiça americana não estava disposta a cruzar ou demorou para
fazê-lo", afirma Winter.
A
história americana levou 234 anos até que Trump inaugurasse o hall de
ex-mandatários do país alvos de indiciamento judicial. Em contraste, no Brasil,
apenas entre os presidentes do recente período democrático, tanto Lula quanto
Michel Temer já foram presos, ambos em decorrência da Operação Lava Jato.
O
próprio Lula se tornou inelegível, o que o impediu de concorrer à eleição de
2018, vencida por Bolsonaro. E Fernando Collor de Mello foi condenado a 8 anos
e 10 meses de prisão em maio, e recorre em liberdade. Outros ex-presidentes,
como José Sarney e Dilma Rousseff, também enfrentaram investigações.
No
caso de Bolsonaro, parte dos processos começou ainda em seu período como
presidente, o que não foi o caso com Trump. E antes mesmo que complete seis
meses de sua saída do Palácio do Planalto, o ex-presidente já poderá se tornar
inelegível.
"Todo
mundo sabe que um ex-presidente pode ir para a cadeia no Brasil. Isso já
aconteceu antes na história, o público reconhece a possibilidade e os próprios
políticos também, haja visto o modo relativamente calmo com que Bolsonaro reage
ao assunto. Nos EUA, por outro lado, tem havido uma certa hesitação das instituições",
diz Winter.
Ele
exemplifica: "Se você pegar o caso no estado de Nova York, o promotor
original decidiu não processar o caso. Houve uma mudança (no quadro de
autoridades), e o novo promotor resolveu levar o caso adiante. Mas a essa
altura, já era 2023 (7 anos transcorridos). O judiciário brasileiro abriu
processos contra Bolsonaro muito antes."
Para
ele, o fato de que a Justiça dos EUA levou tanto tempo para apresentar qualquer
processo contra ele na Justiça permitiu que Trump se reorganizasse politicamente
após a derrota eleitoral e o episódio de 6 de janeiro. Isso não tem acontecido
com Bolsonaro.
2.
Sem Ficha Limpa nos EUA
Outro
ponto central para as diferenças entre o atual momento de Trump e o de
Bolsonaro está na organização do judiciário e da legislação eleitoral em cada
país.
O
Brasil possui um conjunto de regras eleitorais federais, que regem tanto o modo
como a eleição será feita em todo o país como determina o que é crime na
competição nacionalmente. Isso inclui abuso de poder econômico e político,
acusações que Bolsonaro enfrenta agora.
Além
disso, o Brasil possui tribunais regionais eleitorais (específicos para aplicar
esse conjunto de leis em âmbito local) subordinados ao Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), a quem cabe a última palavra sobre os resultados dos pleitos e
de processos eleitorais. Bolsonaro enfrenta um julgamento no TSE, nesta
quinta-feira.
Entre
o conjunto de leis eleitorais brasileiras, uma tem se mostrado especialmente
relevante para determinar o cenário de competição política no país: a lei da
Ficha Limpa.
Sancionada
em 2010, ainda no segundo governo Lula, a lei veda a candidatura de políticos
condenados em decisões colegiadas de segunda instância. O dispositivo legal que
ameaça o futuro político de Bolsonaro foi o mesmo que tirou o próprio Lula da
disputa em 2018.
"Nos
Estados Unidos, não existe absolutamente nada parecido com isso. O Trump pode
ser condenado, preso, e seguir candidato de dentro da cadeia. E não há nada que
impeça que ele vença as eleições e seja presidente atrás das grades", diz
o internacionalista Carlos Gustavo Poggio, professor do Berea College, no
Kentucky.
Pelos
processos que já enfrenta, em caso de condenação, Trump estaria sujeito a
décadas de prisão. Mas ainda é incerto se o processo chegará a julgamento antes
das eleições de 2024. Caso o pior cenário se confirme para Trump — o de
concorrer à reeleição atrás das grades —, essa não seria uma situação de todo
sem precedentes na História dos EUA.
Em
1920, o candidato socialista Eugene Debs concorreu à Presidência enquanto
estava encarcerado na Penitenciária Federal de Atlanta. Ele recebeu 914.191
votos (ou 3,4% do total). Debs havia sido condenado por sedição (perturbação da
ordem pública) em setembro de 1918 por discursar contra o alistamento militar e
contra o posicionamento do governo americano na Primeira Guerra Mundial.
Nos
Estados Unidos, não existe Justiça Eleitoral e a eleição presidencial é feita
via colégio eleitoral. Cada Estado possui um certo número de delegados e os
candidatos precisam vencer as disputas estaduais para determinar o número de
delegados que terão, e se somarão o suficiente para chegar à Casa Branca.
Cada
Estado determina suas próprias regras para a votação (alguns permitem voto por
correio, antecipado, outros, apenas presencial e em dia específico), o que abre
brecha para uma série de manobras políticas locais.
A
configuração do processo eleitoral americano fez com que os EUA fossem
considerados a democracia liberal mais frágil das Américas no ranking do
Electoral Integrity Project em 2022. Entre 29 países, os EUA aparecem em 15º
lugar, atrás de Costa Rica, Brasil e Trinidad e Tobago (os demais países não
foram considerados democráticos).
É
exatamente em um caso estadual que Trump potencialmente pode ter mais
complicações. Ele é investigado por, entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021,
ter tentado reverter a estreita vitória de Biden na Geórgia.
Após
duas recontagens de votos que confirmaram a vitória de Biden em um estado
tradicionalmente republicano, Trump passou a acusar publicamente as autoridades
eleitorais locais de fraude.
O
ex-presidente também teria planejado o envio de falsos eleitores seus para
testemunharem que a eleição havia sido roubada. Em janeiro, o presidente chegou
a ligar para o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, e o exortou
a "encontrar" 11.780 votos pró-Trump para que ele vencesse o pleito.
O
caso está sob liderança da promotoria de uns dos condados da Geórgia, Fulton, e
a investigação ainda corre sob sigilo, mas Trump pode ser indiciado nos próximos
meses.
3.
Teor dos processos
Os
processos que cada um dos ex-presidentes já enfrenta também pesam para seu
resultado político.
No
caso de Bolsonaro, ele será julgado no TSE por ter feito, em 18 de julho, uma
reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio do Planalto, televisionada por
veículos estatais e usada na campanha do então presidente, com alegações sem
prova contra o sistema eleitoral brasileiro.
O relator do caso do TSE, ministro
Benedito Gonçalves, já indicou, no entanto, que não vê a reunião como um
caso isolado na conduta do então presidente e sim como parte de uma escalada de
ataques às eleições e às autoridades que, no limite, culminou nos atos de 8 de
janeiro.
Ele
incluiu entre as provas, por exemplo, a minuta de golpe encontrada com
auxiliares de Bolsonaro após sua saída do Planalto. Gonçalves já sugeriu o
envio do material ao Supremo Tribunal Federal para apuração de eventuais
responsabilidades criminais do ex-presidente.
Bolsonaro
nega que tenha tido intenções e ações golpistas e diz apenas ter exercido sua
liberdade de expressão na reunião com embaixadores.
Já
Trump ainda não enfrenta nenhum indiciamento conectado com seus ataques ao
sistema eleitoral americano ou seu eventual papel na insurreição de 6 de
janeiro. Tanto o caso da Geórgia quanto a investigação federal sobre a invasão
do Capitólio ainda não chegaram a apontar as possíveis responsabilidades de
Trump e indicar eventual julgamento, mesmo dois anos e meio após os fatos.
Os
indiciamentos de Trump são por ter, supostamente, falsificado registros
contábeis da campanha de 2016 ao remunerar o silêncio de uma atriz pornô que
alega ter tido um caso com ele e por ter mantido sob seu poder após deixar a
Presidência, e ter aparentemente se recusado a devolver, documentos
considerados sensíveis para a segurança nacional dos EUA.
No
primeiro caso, o escândalo já é conhecido do público há anos e jamais abalou a
reputação de Trump junto a seu eleitorado. Além disso, juridicamente,
especialistas questionam o potencial de condenação do caso.
No
segundo indiciamento, por violação da lei de segurança nacional e obstrução de
justiça, Trump argumenta que sua ex-adversária, a democrata Hillary Clinton,
compartilhou informações sensíveis em emails fora do servidor adequado em 2016
e não foi condenada por isso - e que seu delito seria semelhante ao dela.
Depois
que a casa de Trump na Flórida foi alvo de busca e apreensão pelo FBI, que
recuperou as caixas de documentos secretos, material sensível de governo também
foi encontrado na casa do presidente Biden e do ex-vice de Trump, Mike Pence.
Ambos devolveram os documentos espontaneamente, mas os episódios reforçaram no
público o argumento de Trump de que "é perseguido em uma caça às bruxas"
da justiça.
4.
Sistema partidário e controle do partido
Bolsonaro
mudou de partido várias vezes ao longo de sua trajetória política e na
Presidência chegou a passar meses sem nenhuma filiação, na tentativa de montar
uma legenda que nunca se consolidou. Em nenhum dos partidos que o acolheu, ele
jamais exerceu completo controle da agremiação, e seu atual PL não é exceção.
Já
Trump, um outsider orgulhoso da política até 2016, foi capaz de dominar por
completo a máquina do Partido Republicano, apontam analistas.
Tanto
para Poggio quanto para Winter, esta é uma diferença central entre ambos e
determinante para os caminhos distintos em seus futuros.
"Trump
conseguiu capturar um partido bem estabelecido na sociedade norte-americana, em
um sistema que é bipartidário. Ele transforma o Partido Republicano, ganha sua
base, tem uma identificação", afirma Poggio.
Ele
relembra que parlamentares republicanos que denunciaram as ações de Trump logo
depois do 6 de janeiro acabaram duramente punidos pelo eleitorado republicano
com perdas de cargos nas eleições seguintes.
"Já
Bolsonaro nunca teve o partido, sempre foi uma questão meramente pessoal. E o
sistema partidário brasileiro é muito mais fluído. Os interesses do Centrão são
outros. Não há um apego institucional à figura do Bolsonaro. É tudo uma questão
de conveniência política", complementa Poggio.
O
bolsonarismo atualmente se espalha por ao menos quatro partidos principais
(União Brasil, PL, PP e Republicanos) e os líderes dessas siglas já se
movimentam intensamente em busca de nomes alternativos à Bolsonaro para as
urnas em 2026, em um sinal de que o campo da direita brasileira já se vê em
condições de superar o ex-presidente e aproveitá-lo apenas como cabo eleitoral.
Isso
não é verdade com Trump, que, apesar da profusão de pré-candidatos na primária
republicana, não têm ao menos até agora desafiante à altura em seu campo
político.
Para
Winter, porém, outro fator central para o enfraquecimento de Bolsonaro foi o
multipartidarismo brasileiro. Ele diz que, como não estavam subordinados ao
presidente em uma mesma estrutura partidária, outros agentes políticos chave
foram capazes de agir com independência para esvaziar eventual pretensão de
golpe e para reduzir o peso político de Bolsonaro após sua saída do poder.
"O
Brasil tem um sistema político muito fragmentado, que tradicionalmente pensamos
como uma fraqueza, mas, na verdade, acabou se mostrando uma força, porque (o
presidente da Câmara) Arthur Lira (de partido distinto de Bolsonaro) soube
mostrar coragem e romper imediatamente com Bolsonaro uma vez que o resultado
das eleições ficou claro", diz Winter.
Ele
afirma que Lira ter se pronunciado dentro de uma hora do fim da apuração dos
votos em outubro para dizer que a vontade do povo deve ser respeitada foi um
momento chave.
"E
a gente se pergunta: e se Mitch McConnell tivesse mostrado a mesma
coragem?", questiona Winter, se referindo ao senador republicano líder da
minoria que se recusou a reconhecer a vitória eleitoral de Biden por meses e só
o fez depois que o ataque ao Capitólio ameaçou sua vida pessoalmente.
Fonte:
BBC News Brasil
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