A 'guerra' da Nova
Zelândia para tentar eliminar os ratos do país
Em
uma ensolarada manhã de domingo, os amantes da vida selvagem se reúnem em
Miramar, uma linda península na Nova Zelândia. Mas eles estão em uma missão de
extermínio.
O
grupo Predator-Free Miramar quer proteger as aves nesta área de Wellington,
capital do país, exterminando ratos — todos eles.
Depois
de vestir jaquetas de alta visibilidade, os voluntários recebem manteiga de
amendoim — a isca ideal para roedores — e veneno.
A
cada um é alocado uma área onde eles precisam verificar armadilhas e caixas de
iscas com venenos. "Boa sorte, companheiros", diz Dan Coup, que
lidera o grupo.
Um
aplicativo de GPS orienta Coup pelo mato até as armadilhas em sua rota. Em cada
um, ele repõe a isca e atualiza as informações no app. Nenhum armadilha tem
sinais de que um rato passou por ali.
Mas
enquanto ele examina o terreno em busca de excrementos e outras pistas, seu
telefone vibra. Um participante postou uma imagem em seu grupo de WhatsApp: um
rato morto em uma armadilha.
Esta
não é uma boa notícia. "Dave vai se sentir bem por ter pego o rato, mas
ficamos tristes por ainda haver ratos", Coup suspira.
Erradicar
ratos e outros predadores é o objetivo não apenas de Miramar, mas de toda a
Nova Zelândia. O governo espera que a tarefa seja concluída até 2050.
É
uma tarefa difícil. O maior território onde todos os ratos foram erradicados
até agora é a Geórgia do Sul, uma ilha de 170 km de extensão no Atlântico Sul.
Os conservacionistas da Nova Zelândia acreditam que a missão poderá ser
cumprida no prazo certo em uma área maior do que o Reino Unido.
Outros
apontam para problemas práticos e éticos.
No
centro do projeto está o ecossistema singular do país. A Nova Zelândia se
separou de um antigo supercontinente há 85 milhões de anos, muito antes da
ascensão dos mamíferos. Sem predadores terrestres, os pássaros conseguiam criar
seus ninhos no chão ou até mesmo ficar sem voar.
• Tema nacional
Além
disso, a Nova Zelândia foi a última grande terra colonizada por humanos. No
século 13, os polinésios trouxeram camundongos e ratos do Pacífico. Seis
séculos depois, os europeus introduziram mamíferos maiores que se alimentavam
de pássaros indefesos. Quase um terço das espécies nativas foram exterminadas
desde a chegada dos humanos.
Esforços
para salvar as espécies que restaram não são novos. Na década de 1960, os
conservacionistas conseguiram exterminar os ratos nas pequenas ilhas. Mas lidar
com predadores virou um fenômeno social depois de 2010.
"O
assunto bombou e se tornou um tema nacional", diz James Russell, biólogo
da Universidade de Auckland e defensor do projeto de extermínio até 2050.
Um
fator que mudou as atitudes, diz Russell, foi o advento das câmeras
infravermelhas. No século 20, as pragas mais visíveis e alvos de grandes abates
eram grandes herbívoros, como veados e cabras. Mas a partir dos anos 2000, os
ativistas que defendem a vida selvagem conseguiram demonstrar o que os pequenos
mamíferos faziam à noite.
Imagens
de ratos atacando ovos e filhotes foram compartilhadas nas redes sociais.
"Aquela filmagem sensibilizou muitos", diz Russell. Um ecologista na
época calculou que a Nova Zelândia estava perdendo 26 milhões de aves por ano
para os predadores.
Em
2011, um físico famoso, Paul Callaghan, popularizou a ideia de um país livre de
predadores. Russell e outros jovens conservacionistas argumentaram que isso
seria possível com investimento e mobilização suficientes.
Os
políticos embarcaram na ideia. Em 2016, uma lei marcou os piores predadores
para erradicação: os três tipos de ratos (rato do Pacífico, rato de navio e
rato da Noruega), mustelídeos (arminhos, doninhas e furões) e gambás.
A
metade deste século foi escolhida como um prazo factível.
O
Predator Free 2050 Ltd, um órgão público, foi criado para canalizar dinheiro do
governo e privado para projetos locais que testam estratégias de erradicação.
O
mais ambicioso deles é o Predator Free Wellington. Em uma cidade de 200 mil
habitantes, o projeto tem como objetivo matar uma série de pragas,
principalmente ratos que prosperam em ambientes urbanos.
A
equipe de 36 pessoas do projeto transformou caçadores de ratos amadores em
verdadeiros exterminadores.
O
órgão fornece veneno anticoagulante, que é muito mais eficaz do que armadilhas,
além de aplicativo GPS que armazena informações de todos os dispositivos em
tempo real.
Câmeras
foram instaladas em pontos de acesso. "Se algum rato aparecer, minha
equipe de planejamento sabe onde precisa colocar seus recursos", diz o
diretor do Predator Free Wellington, James Willcox.
Cada
rato encontrado morto é enviado ao laboratório para uma autópsia. Isso é
crucial porque os anticoagulantes matam lentamente. Os ratos são animais
sociais inteligentes e aprendem a evitar coisas que os prejudicam.
O
rato envenenado morre longe da caixa de iscas. O Predator Free Wellington
precisa das autópsias para monitorar a eficácia.
"Nós
os cortamos para ver se foram mesmo mortos pelo veneno", explica Willcox.
"Também precisamos entender: é macho, é fêmea, se reproduziu recentemente?
Estamos perseguindo um rato ou uma família de ratos?"
• Recuperação da fauna
Miramar
tem estado na vanguarda da ofensiva contra os predadores. Os ratos são agora
uma raridade na península e muitos pássaros nativos voltaram. O canto
característico do tui, cujos números em Wellington haviam diminuído para apenas
alguns pares em 1990, é hoje onipresente.
"Em
nosso quintal, agora temos tui voando o tempo todo", diz Paul Hay, morador
de longa data de Miramar. "A fauna de aves disparou especialmente nos
últimos cinco anos."
A
cidade está se beneficiando de um conceito de conservação criado em Wellington:
cercas à prova de predadores.
O
primeiro ecosantuário urbano do mundo foi inaugurado em 1999, a poucos
quilômetros do centro da cidade em linha reta. Agora chamada de Zealandia, o local
é protegido por uma cerca de 8 km.
Os
visitantes têm suas malas verificadas e precisam passar por uma barreira de
duas portas que se assemelha a uma câmara de descompressão.
Por
trás de medidas de biossegurança tão rigorosas, pássaros que antes eram raros
não apenas sobreviveram, mas estão se espalhando pelos bairros vizinhos.
Existem
agora dezenas de santuários cercados ao redor da Nova Zelândia. Um dos maiores,
o Brook, cobre quase 700 hectares.
Um
ano depois que uma cerca de exclusão de predadores foi erguida em 2016, a área
foi varrida de pragas. O desafio agora é garantir que nenhuma praga nova entre.
A
vigilância constante é essencial. Um rato pode ser acidentalmente derrubado por
uma ave de rapina; uma árvore pode cair sobre a cerca, permitindo que uma
doninha ou furão se infiltre.
Qualquer
dano à cerca aciona um sistema de alerta. "Se o alarme disparar no meio da
noite, um de nós sobe lá e verifica", diz Nick Robson, gerente de
operações da Brook.
Câmeras
e tintas alertam a equipe sobre qualquer incursão. Mas a ferramenta de detecção
mais eficiente — e o pior inimigo do predador — é o melhor amigo do homem.
"Os
cães são especialmente treinados para detectar certas pragas e ignorar
outras", diz Robson. "Pode ser que um cachorro consiga detectar um rato
que não é pego pelos nossos dispositivos."
Prevenir
a reinvasão é uma preocupação especialmente para as chamadas ilhas offshore —
que são mais isoladas e menos povoadas. Rakiura, ou Stewart Island, é a maior
delas. Separada do continente por 25 km de água, tem ratos, mas nunca teve
mustelídeos.
Esse
relativo isolamento permitiu que pássaros raros fizessem seus ninhos ali. Os
conservacionistas estão trabalhando duro para preservar a espécie.
Gadget,
uma cadela farejadora, é uma celebridade que tem sua própria página no
Facebook. É possível segui-la enquanto ela verifica os barcos que chegam em
busca de roedores clandestinos.
Nos
últimos 20 anos, o grupo de voluntários Stewart Island/Rakiura Community &
Environmental Trust (Sircet) impediu que ratos e outras pragas destruíssem uma
colônia de muttonbirds, uma espécie de aves que faz ninhos no solo e que quase
desapareceu do continente.
"Estamos
segurando as pontas", diz Shona Sangster, presidente do Sircet, enquanto
inspeciona as armadilhas no mato.
Defesas
fortes são vitais para pequenas ilhas próximas que já estão livres de
predadores. Os ratos podem nadar por até 800m. Mantê-los longe desses
santuários e das aves ameaçadas que eles abrigam é uma luta constante.
O
dinheiro do governo ajudou. O Predator Free Rakiura, um projeto criado sob o
esquema 2050, forneceu experiência, funcionários especializados e ferramentas
novas, como armadilhas de recarga automática. Elas esmagam o crânio de qualquer
rato que se aproxima e requerem manutenção mínima. As vítimas caem mortas e a
natureza faz a limpeza.
O
projeto Predator Free Rakiura tem um orçamento muito mais modesto do que os
projetos de Wellington. Mas os conservacionistas locais contam com enorme apoio
popular. Em 2020-21, diz Sircet, 261 pessoas dedicaram-se à causa, uma enorme
taxa de mobilização em uma ilha de 440 habitantes.
No
ano passado, o grupo distribuiu armadilhas para crianças em idade escolar e
distribuiu prêmios para o maior número de ratos capturados, o maior rato, o de
maior dente e o mais peludo.
Os
jovens são criados em uma comunidade onde o controle de predadores é
extremamente importante, diz Sangster. "Algo que seria um pouco incomum
para quem vem de fora é parte do dia-a-dia deles."
A
Sircet também promove a posse responsável de animais de estimação na ilha.
Gatos que matam pássaros devem ser castrados e microchipados.
Os
cães — que tendem a confundir kiwi com brinquedos fofos — também podem ser
perigosos. A Sircet oferece um programa voluntário (para os donos dos cães) em
que um kiwi eletrônico dá um leve choque nos cães, ensinando-os a manter
distância dos pássaros.
As
iniciativas até agora foram bem-sucedidas. Mas quais são as chances de Rakiura,
uma área do tamanho da Grande Londres, se tornar completamente livre de
predadores em 27 anos? Sangster é cauteloso. "Mire nas estrelas e você
pode pousar na Lua", diz ela.
A
viabilidade de todo o projeto 2050 tem sido motivo de debate entre os
conservacionistas. James Lynch, o fundador da Zealandia, tem reservas quanto à
praticidade e custo-benefício da ideia. Ele apoia o objetivo final de remover
predadores.
"O
problema é que não temos nenhuma caixa de ferramentas para isso no
momento", diz Lynch.
A
maioria das aves nativas, observa ele, não precisa de um ambiente sem
predadores para prosperar. As poucas que o fazem, ele argumenta, podem
sobreviver em santuários offshore ou urbanos. Em vez de tentar limpar todo o
país das pragas, Lynch recomenda concentrar os recursos na floresta em torno de
áreas cercadas para maximizar a sobrevivência das aves.
Esse
conceito, diz ele, funcionou em Wellington e representa a melhor esperança em
todo o país enquanto as ferramentas para a erradicação completa estão sendo
desenvolvidas.
Outros
consideram fantasiosa a própria ideia de uma Nova Zelândia livre de predadores.
O pesquisador de conservação Wayne Linklater aponta que, nos últimos 150 anos,
a Nova Zelândia perdeu todas as guerras que travou contra coelhos e outras
pragas.
Campanhas
para exterminar seres inteligentes não são apenas impraticáveis, mas eticamente
equivocadas, acrescenta Linklater. "Reunimos enormes recursos e a paixão
das pessoas e implementamos grande crueldade. Como pudemos nos alegrar tanto
com o sofrimento?"
O
movimento livre de predadores, diz Linklater, "depende de demonizar uma
espécie e torná-la inimiga para que você possa matá-la".
Além
disso, quem é o Homo sapiens, o mais invasivo dos predadores mamíferos e
destruidor sistemático de habitat, para declarar guerra total a outras
criaturas?
Em
vez de estabelecer metas nacionais impossíveis, Linklater recomenda permitir
que as comunidades determinem suas próprias metas de biodiversidade. Os
residentes de Auckland poderiam conviver com alguns ratos e gambás, enquanto os
moradores de Stewart poderiam priorizar a proteção de seus kiwis e muttonbirds.
Para
o biólogo James Russell, que trabalhou para dar respaldo científico ao projeto
2050, estratégias localizadas são inúteis. "É o modelo pouco
ambicioso", ele encolhe os ombros.
Para
ele, salvar pássaros em apenas alguns lugares é uma falsa economia, pois requer
investimento perpétuo para impedir o retorno de predadores. A erradicação de
pragas é cara, mas "você paga uma vez e pronto".
Russell
admite que ninguém sabe como atingir a meta. A tecnologia de controle de
pragas, no entanto, deu grandes passos desde a década de 1960 e ainda pode
haver novos avanços nos próximos 27 anos.
Quanto
às objeções morais, não há respostas concretas. Cabe aos indivíduos e às
sociedades ponderar argumentos complexos. Os neozelandeses, diz Russell,
decidiram coletivamente que sacrificar algumas espécies para salvar outras é o
caminho correto.
É
verdade que, neste momento, a oposição à erradicação está em baixa e o
entusiasmo, em alta.
De
volta à península de Miramar, Dan Coup espera o dia em que ele e seus colegas
caçadores de ratos perderão seus empregos.
"Você
tem a opção de continuar trabalhando para sempre ou investir uma quantia enorme
antecipadamente para eliminar o último 0,5% dos ratos e não precisar trabalhar
novamente", diz ele.
Fonte:
BBC News Mundo
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