Opção preferencial
pelo agronegócio?
A
mídia convencional e as redes sociais são unânimes (fora da bolha bolsonarista,
é claro), aqui e no exterior: Lula foi “um estouro” nesta viagem à Europa.
Apoteótico, estadista mundial, genial, foram alguns dos adjetivos empregados
para descrever o sucesso do nosso presidente.
Longe
de mim minimizar este resultado espetacular. Mas quero discutir algumas
contradições que me parecem complicar a epifania que domina a cena. Vamos lá:
Lula
questionou, em primeiro lugar, os termos da carta anexa ao acordo
Mercosul/União Europeia. Segundo o discurso, que reiterou um outro feito na
presença da chefe máxima da União Europeia, Ursula van der Leyen, aqui no
Brasil, a carta faz ameaças aos países do Mercosul, no caso de não cumprimento
das cláusulas referentes aos acordos sobre o clima.
Lula
apontou o fato de que os países ricos não estão cumprindo as mesmas cláusulas e
que seria puro protecionismo aplicar penalidades às exportações do agronegócio
brasileiro. Lula também introduziu no discurso uma referência à necessidade do
combate ao aquecimento global se articule ao combate à pobreza e às
desigualdades sociais. Em outro momento, Lula fez referência à uma legislação
votada no parlamento europeu impedindo exportações de produtos agrícolas
oriundos de áreas desmatadas após 2020. Em conversa com o presidente francês
Emmanuel Macron, Lula colocou esta legislação em debate no acordo.
Examinando
a argumentação do Lula podemos constatar algumas coisas:
(i)
A preocupação com o combate à pobreza e à desigualdade não tem relação com a
questão das ameaças de restrição de importações da União Europeia em função das
preocupações ambientais. A ênfase do presidente neste tema é justíssima e cabe
em um discurso mais amplo sobre as relações internacionais no quadro do combate
ao aquecimento global. No quadro das negociações do acordo Mercosul/União
Europeia, ele fica fora de lugar, sobretudo quando o contencioso se relaciona
com exportações do agronegócio, o grande beneficiário da suspensão de
restrições à importação de produtos agrícolas por parte da União Europeia.
(ii)
O protesto contra a cláusula que exige o cumprimento dos acordos internacionais
sobre o clima é mais que justificado, já que nenhum país, “rico” ou “pobre”,
está cumprindo os protocolos decididos na reunião da COP em Paris, em 2015. No
entanto, o alvo do presidente é sobretudo a legislação europeia, recém aprovada
(e não citada na carta anexo ao acordo em debate), proibindo importações
agropecuárias a partir de áreas desmatadas.
(c)
A acusação de protecionismo por parte da União Europeia ao colocar estas
restrições é uma meia verdade. Por um lado, o histórico de protecionismo na
União Europeia, por pressão de seu próprio agronegócio, é mais do que
conhecido. Mas este protecionismo poderia ter sido acionado por outras medidas,
tais como as já muito usadas exigências sanitárias, sobretudo em relação aos
índices de contaminação por agrotóxicos, muito mais elevados aqui do que lá.
Ao
colocar restrições em função dos desmatamentos, os europeus deixam o governo
Lula numa saia justa. Afinal de contas, este acordo só não foi assinado no
quatriênio do governo Bolsonaro por causa das restrições dos governos europeus
(que não faziam parte dos termos do acordo) em relação ao intenso processo de
desmatamento provocado diretamente pelo energúmeno sentado na cadeira de
presidente do Brasil.
A
saia é ainda mais justa, porque Lula denunciou o desastre ambiental do governo
Bolsonaro e anunciou gloriosamente para o mundo que a meta do governo era o
desmatamento zero “em todos os biomas”, promessa feita na COP de Sharm-el
Sheik, em novembro passado.
Se
o governo brasileiro tem o mesmo objetivo dos governos europeus, ou seja, zerar
os desmatamentos, por que protestar contra uma medida dos importadores que
facilitaria a ação contra o agronegócio brasileiro predador da natureza? Lula
tem dito que quer convencer o agronegócio a adotar uma posição “moderna” em
relação ao meio ambiente e tem usado as restrições dos importadores como
argumento para mostrar este caminho. Como justificar agora este evidente recuo?
O
argumento do presidente Lula de que “não cabem ameaças de sanções em um acordo
entre amigos” não faz sentido. Só falta agora fazer acordos trocando fios de
barba ou cuspindo na mão e apertando a do parceiro. É só imaginar o que
ocorreria se Jair Bolsonaro tivesse ganho a eleição, ou o que ocorrerá se ele,
ou um seu avatar, ganhar a próxima. Acordos entre países não são acordos entre
pessoas e eles são assinados para durarem muitos anos, depois que os atuais
dirigentes já estiverem aposentados.
Ao
defender a suspensão das sanções Lula passa um recado que não foi compreendido
por um mundo atordoado pelos aplausos merecidos à performance do presidente em
Paris. O que ele quer dizer é que tomou as dores do agronegócio brasileiro para
si e para seu governo. A outra hipótese é que esta encenação não seja para o
público externo, mas para o interno, ou seja, para o agronegócio brasileiro.
Afinal
de contas, a chance de negociar a retirada das sanções, tal como definidas na
carta anexa, é bastante razoável, até por serem bastante genéricas e, como já
se disse, carecem de legitimidade quando impostas por governos que também não
seguem a cartilha dos acordos do clima. Mas as restrições não mencionadas na
carta, ou seja, a legislação europeia restringindo importações oriundas de
áreas de desmatamento, não são dirigidas ao Brasil ou ao Mercosul, mas a todo o
mundo. Elas estão sendo ratificadas pelos parlamentos de cada país membro da
União Europeia e não estão sujeitas a qualquer acordo bilateral ou
multilateral.
Nesta
hipótese de Lula estar fazendo um show para se cacifar junto ao agronegócio,
mesmo sabendo que as restrições vão acontecer com ou sem o acordo incluí-las,
acho que ele vai pagar um preço dobrado.
Em
primeiro lugar, o agronegócio e os ambientalistas europeus não vão deixar de
apontar a incoerência entre os discursos ambientalista e ruralista de Lula e a
saia justa tenderá a ficar mais evidente, diminuindo o brilho internacional do
presidente.
Em
segundo lugar, o agronegócio brasileiro não vai ficar de bem com o Lula por ele
ter defendido o seu “direito a desmatar”. Eles não querem saber de intenções,
mas de resultados. Se as restrições vierem por dentro do acordo ou por fora
dele, a ira do agronegócio será voltada contra o presidente “que não soube
defendê-los”.
Na
sua intenção reafirmada de chegar ao desmatamento zero, Lula deveria agradecer
as medidas assumidas pelos parlamentos dos países da União Europeia. Se
dependesse do governo estabelecer restrições mais fortes ao agronegócio
predador as dificuldades seriam imensas, dado o peso da bancada ruralista no
Congresso. Com as restrições vindo de fora, tudo fica mais fácil pois, como o
próprio Lula já argumentou, o governo passaria a defender o setor “moderno” que
se ajustaria às exigências, separando-o do setor predador que continuaria nas
mesmas práticas.
O
controle do desmatamento, como já tive oportunidade de escrever em outra
oportunidade, vai exigir mais do que acionar o Ibama e o ICMBio, com o apoio da
Polícia Federal. Isto vai ser uma batalha contra os madeireiros, grileiros e
mineradores, ou seja, contra a economia ilegal. Isto já vai ser uma batalha
cruenta e que, para funcionar com eficácia, vai precisar de controlar o
escoamento dos produtos ilegais com muito investimento em inteligência para
pegar os elos entre as atividades ilegais e o mercado, nacional e
internacional.
Isto
poderá dar conta da economia ilegal, se o esforço for sustentado e amplo.
Entretanto, há desmatamento legal, permitido pelo Código Florestal ou pelas
imensas brechas na legislação. É provável que o governo tenha que usar meios
indiretos de restrição, como por exemplo suspender os financiamentos dos
proprietários que tenham desmatado. Mas a guerra judicial vai ser grande e a
capacidade de pressão do governo é notoriamente pequena. Métodos de estímulo
via créditos facilitados e subsidiados, visando a diminuição dos desmatamentos
e a introdução de práticas menos predatórias poderão ser questionados e
trazidos para o debate legislativo.
É
por essas dificuldades que Lula deveria agradecer aos seus orixás as restrições
impostas pela União Europeia. Elas não se referem à legalidade ou não das
práticas do agronegócio brasileiro. Elas restringem todo o desmatamento, legal
ou ilegal. E a forma mais óbvia vai ser a cobrança de um georreferenciamento de
todos os produtos, de forma a ser possível cruzar com os dados, hoje muito precisos,
das áreas desmatadas. Tudo isto é tecnicamente viável embora não garanta o fim
dos desmatamentos.
A
forma mais prática de driblar as restrições dos europeus é algo que já existe,
parcialmente. Trata-se de exportar a partir de regiões sem desmatamento e
trazer para o mercado interno a produção das áreas em que ele vai continuar.
Reparem que os europeus não restringem as importações do Brasil, de forma
geral, mas dos produtos oriundos de áreas de desmatamento. Os grandes
frigoríficos já fazem esta separação, com parte da carne de gado criado no
Cerrado e na Amazônia sendo dirigida para o consumo nacional e a de outras
regiões sendo exportada.
Mas
até hoje esta separação é bem limitada, em função de exigências de compradores
específicos. Se for preciso fazer isso de forma massiva vai ficar mais
complicado pois o volume de carne oriundo das áreas desmatadas excede o mercado
interno. O rearranjo vai ser maior ou menor dependendo do comportamento do
nosso maior importador de produtos agrícolas, a China.
Tudo
isso é para mostrar que podemos até nos acertarmos com os europeus, integrando
as exigências ambientais nos produtos para lá exportados enquanto o
desmatamento continua impávido. Para segurar o desmatamento será preciso
enfrentar o agronegócio de forma mais abrangente, e para isto o apetite do
governo é bem menor. Para que fique claro este fato basta ver que este governo
ainda não modificou a política de aprovação acelerada de novos agrotóxicos,
inaugurada no governo de Michel Temer e ampliada em muito no governo de Jair
Bolsonaro. Em menos de seis meses já foram quase 200 novos produtos, sendo que
pouco menos da metade com alto grau de toxidez.
Outros
pontos colocados pelo presidente Lula na parte do seu discurso contestando
pontos do acordo Mercosul/União Europeia merecem mais atenção. O mais
importante é a cobrança de igualdade de condições das indústrias europeias em
relação às brasileiras, no que tange às compras governamentais. Isto eliminaria
qualquer orientação das compras públicas da merenda escolar, por exemplo,
priorizando a agricultura familiar. Os europeus querem por em concorrencia a
Danone com as indústrias de laricinios familiares ou comunitárias. Neste ponto
o bicho pega e pega pesado.
Finalmente,
cabe resgatar a posição mais ampla assumida pelo Lula, cobrando um engajamento
real dos países ricos para financiar a transição dos países em desenvolvimento
na direção de uma economia verde. Não gosto muito do argumento indicando que o
aquecimento global é culpa dos países ricos e que portanto eles devem fazer o
maior esforço para diminuir as emissões de gases de efeito estufa.
Isto
dá a impressão de que estamos autorizados a emitir mais gases para compensar a
culpa histórica dos outros. Todos temos que derrubar as emissões, se quizermos
sobreviver e não nos esqueçamos de que hoje o Brasil é o quinto maior emissor
de GEE no mundo. Mas sim, os mais ricos tem mais responsabilidade até porque
tem mais condições para financiar um esforço coletivo mundial.
Ø
Cerrado
sofre “desmatamento oportunista”, antes que a legislação fique mais rigorosa
O
presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, afirmou ao Metrópoles Entrevista que o
Cerrado sofre com o “desmatamento oportunista”. Segundo o chefe da autarquia,
antes do endurecimento da legislação ambiental, os criminosos estão destruindo
o bioma.
“No
Cerrado, a gente percebe que as pessoas estão imaginando que, daqui para
frente, não vão conseguir desmatar mais. Então, você tem um desmatamento oportunista.
As pessoas estão correndo para desmatar”, afirmou Rodrigo Agostinho.
Segundo
os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os alertas de
desmatamento no Cerrado tiveram um aumento de 35% em maio deste ano, em
comparação com o mesmo período de 2022.
Apenas
em maio, foram destruídos 1.326 km² de reserva nativa do Cerrado. Os maiores
índices de desmatamento referem-se aos municípios de São Desidério (BA),
Jaborandi (BA), Balsas (MA), Barreiras (MA) e Cocos (BA).
Ainda
de acordo com o presidente do Ibama, o desmatamento acontece principalmente em
decorrência de uma frágil legislação ambiental que autoriza a derrubada de 75%
da savana presente no imóvel privado.
“A
gente percebe também que uma parte do desmatamento é autorizada pelos estados.
No bioma Cerrado, hoje, a legislação permite que cada proprietário derrube até
80% de sua propriedade. Na Amazônia, é o contrário: você pode derrubar, no
máximo, 20%; se for Cerrado amazônico, 35%”, destaca Agostinho.
O
presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, conversou com o Metrópoles sobre
questões-chave para a fiscalização e proteção ambiental no país. Entre os temas
discutidos está o avanço do desmatamento, o garimpo em terras indígenas e a
exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas.
Agostinho
assumiu a presidência do Ibama em fevereiro deste ano, após indicação da
ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede).
Fonte:
Por Jean Marc von der Weid, em A Terra é Redonda/Metrópoles
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