sexta-feira, 30 de junho de 2023

Como mudanças na Lei da Mata Atlântica podem ameaçar o fornecimento de água no Brasil

Em 24 de maio deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou a Medida Provisória 1150. Assinada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, ela altera a Lei da Mata Atlântica – a única que protege um bioma brasileiro – e flexibiliza o controle do desmatamento no bioma mais devastado do país. Com 364 votos a favor, 66 contra e duas abstenções, foram reintroduzidos na proposta pontos que haviam sido rejeitados pelo Senado.

No Dia do Meio Ambiente, 5 de junho, o presidente Luís Inácio Lula da Silva vetou os trechos da MP que fragilizam o combate ao desmatamento. Agora, ela volta ao Congresso Nacional, por se tratar de uma decisão bicameral, para a decisão final.

A Mongabay conversou, com exclusividade, com a diretora de políticas públicas da SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro, sobre essa medida, quais as suas consequências caso o veto presidencial não seja mantido e, também, as perspectivas futuras para a agenda socioambiental no país.

·         O que representa a Mata Atlântica para o Brasil?

Malu Ribeiro: A Mata Atlântica abrange 15% do território nacional e é a casa de 70% da população do nosso país. É responsável pela segurança hídrica, porque faz a função de mantenedora do ciclo hidrológico: os rios voadores vêm da Bacia Amazônica e ela, como se fosse uma esponja, absorve a umidade, infiltra essas águas nos aquíferos, e estes afloram na forma de nascentes no Cerrado. Depois, esses aquíferos desaguam por grandes rios que formam planícies úmidas, como nosso Pantanal. Os biomas estão conectados; se um deles estiver em desequilíbrio, esse sistema não vai funcionar.

Outra função que ela tem é a de estabilizar, nos eventos climáticos extremos, as encostas, porque ela está em uma área de serra que divide a área costeira do interior do Brasil. Vale mostrar que a Mata Atlântica é um bioma, não é uma floresta. Ela tem a floresta, mas também tem os mangues, as restingas, as várzeas, os campos de altitude. Ela tem várias fisionomias que são extremamente importantes para a segurança da população.

Por exemplo, sabemos que, naqueles eventos climáticos que levaram à morte de pessoas na região serrana do Rio de Janeiro [em 2011, uma forte chuva resultou na morte de mais de 900 pessoas em cidades fluminenses], 80% dos locais não tinham cobertura florestal, havia mudança de uso do solo. Daí a importância da manutenção da floresta, principalmente para os eventos de enchentes. Se você tem as matas nas encostas, você segura o solo, não há assoreamento do rio e ele pode extravasar no período. Também, respeitando as Áreas de Preservação Permanente, as pessoas não estariam em locais de risco.

A gente tem tentado mostrar que a Mata Atlântica, além de ter toda a biodiversidade, de fornecer a água que a gente bebe, tem a capacidade de trazer segurança a essa emergência climática. Estou falando do único bioma brasileiro que tem uma lei especial que o protege, até por isso ele é muito atacado pelo setor de infraestrutura e pelo setor do agronegócio, que quer se anistiar dos desmatamentos anteriores.

·         E o que é a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428)?

Malu Ribeiro: É uma lei especial que regulamenta o artigo 225 da Constituição Federal da República, que declara que a Mata Atlântica é patrimônio nacional. Em 2006, foi aprovada e sancionada essa lei, que trata do uso sustentável do bioma. Então, de acordo com os estágios sucessionais da floresta, em áreas de mata primária, secundária, estágio médio e avançado de regeneração, há restrição de desmatamento.

A exceção acontece para obras e empreendimentos de utilidade pública ou com fim social, como pontes, linhões de energia elétrica e acessos a comunidades, por exemplo. Nesses casos, pode haver supressão mediante compensação ambiental, reflorestamento. A mata em estágio inicial de regeneração, onde estão as áreas urbanas, pode ser suprimida desde que se mantenha 20% da reserva legal do bioma.

Antes da lei, o ritmo de desmatamento anual, em média, era de 110 mil hectares. Perdíamos 110 mil campos de futebol por ano. Os motivos eram, e são, a especulação imobiliária nas áreas costeiras, além da expansão do agronegócio nas áreas interioranas – agricultura e pecuária – e da atividade minerária. Continua a mesma realidade, só que com a lei esse ritmo foi reduzido a 11 mil hectares. E, dos 17 estados do bioma, 11 também estavam no nível do desmatamento zero. No governo anterior, porém, o ritmo voltou acelerado e a gente perdeu o desmatamento zero em todos os estados da Mata Atlântica.

·         No ano passado, o ex-presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória 1150/2022, que altera a Lei da Mata Atlântica e flexibiliza o controle do desmatamento no bioma. Recentemente, a MP voltou à pauta pública por conta da sua tramitação no Congresso Nacional e, depois, com o veto de alguns trechos dela pelo presidente Lula…

Malu Ribeiro: A 1150, que foi editada em dezembro do ano passado pelo ex-presidente da República, vem com o objetivo de prorrogar o prazo, estabelecido no Código Florestal, do Programa de Regularização Ambiental, com o argumento de que o governo não fez a sua parte na validação do Cadastro Ambiental Rural, e os proprietários rurais estavam sendo penalizados pela morosidade do governo. Só que foram acrescidos a essa MP os chamados jabutis, que é um termo para falar de matérias alheias ao que se está discutindo. Esses jabutis atacam justamente o coração da Lei da Mata Atlântica, permitindo desmatar as florestas primárias e as florestas em estágio avançado e médio de regeneração.

Isso foi aprovado na Câmara, o Senado entendeu como inconstitucional e impugnou esses jabutis. Ele devolveu, porque o processo é bicameral, e a Câmara desrespeitou a impugnação, ou seja: manteve a alteração da Lei da Mata Atlântica. No último dia 5, o presidente da República vetou e agora ela volta ao Congresso Nacional em uma nova análise bicameral que poderá manter ou derrubar os vetos. Estamos em uma grande expectativa e mobilização social, promovendo atos, para que o veto seja mantido. Se isso não acontecer, retomaremos o ritmo de desmatamento anterior à lei.

·         Quais os impactos, do ponto de vista internacional, se as mudanças na Lei da Mata Atlântica forem adiante, tanto do ponto de vista da imagem do governo quanto no que diz respeito à credibilidade do próprio agronegócio para com investidores e clientes ou parceiros?

Malu Ribeiro: O governo brasileiro se comprometeu, né? No Acordo do Clima, na COP (Conferência do Clima das Nações Unidas), tanto na de Paris como na COP26 [em Glasgow]. Sem o desmatamento zero, a restauração dos ecossistemas e a governança ambiental, esses compromissos não serão cumpridos. O mundo também está de olho se o governo brasileiro vai manter a democracia no nosso país, porque foi por pouco que a gente não a perdeu com aquele episódio do 8 de janeiro. Isso ainda está impune, então não estamos em um clima de segurança internacional, o que faz com que investimentos no Brasil, com que o mercado de exportação, recue, né? Nós tivemos um recado duro da comunidade europeia em relação a embargos para carnes que tiveram origem no desmatamento, para produtos brasileiros com origem em queimada em áreas indígenas. Enfim, o mundo está de olho em nós.

Eu acredito que o agronegócio está atento a isso também. Até a ex-ministra da Agricultura, Tereza Cristina, votou pela derrubada dos jabutis no Senado. O ex vice-presidente Hamilton Mourão fez um pedido à mesa para que houvesse impugnação, vendo que seria um problema internacional para o Brasil.

Mas o próprio governo do presidente Lula é multipartidário, tem múltiplos interesses, então há conflitos e divisões dentro dele. E aí é que o Presidente da República vai precisar mostrar para o cenário internacional que ele tem governança sobre esse time que lhe deu base para a vitória. Essa não é uma tarefa fácil; a democracia exige esses acordos amplos, mas a gente espera que o prejuízo não venha para a área socioambiental.

·         A sua leitura é de que se trata de um momento de reconstrução?

Malu Ribeiro: Sim, e para que isso aconteça o Ministério do Meio Ambiente precisa de recurso, precisa de dotação orçamentária, uma vez que ele teve o seu orçamento esvaziado, suas atribuições também. Precisa de concurso público, de parceria com a iniciativa privada, com a sociedade, com os municípios e estados que são dessas áreas protegidas. É uma reconstrução. É como se a gente estivesse fazendo uma volta no tempo, mas uma volta no tempo com muitas lições aprendidas, com muitas experiências exitosas e muitos retratos do que não fazer. Eu acho que o Brasil tem um conhecimento acumulado muito grande nessa área e temos uma expectativa de reconstrução que vai depender da nossa capacidade de articulação com o Congresso, que é onde nós vamos garantir o orçamento, é onde nós vamos garantir as autorizações para que o Executivo governe.

 

Ø  Cientistas alertam: nossa geração pode ser a última a ver a Amazônia de pé

 

A próxima geração pode não conviver com a Amazônia viva. O alerta é dos cientistas britânicos John Dearing e Simon Willcock, que realizaram estudo que mostra como diversos novos fatores podem acelerar o colapso de diferentes ecossistemas pelo mundo. A pesquisa foi publicada na edição de junho da revista científica Nature Sustainability.

O estudo usou modelos de computador para simular o avanço da degradação amazônica e de outros exemplos, como a atividade pesqueira no litoral da Índia, e verificar a aproximação de um conceito que pode ser chamado de “limite climático” – que é quando o ecossistema colapsa. No caso da Amazônia, isso representaria que a floresta atual, fechada e úmida, seria substituída por outra mais seca e aberta.

Estimativa da Organização das Nações Unidas prevê que esse tipo de colapso no ecossistema amazônico acontecerá por volta do ano de 2100. Mas as pesquisas de Willcock e Dearing mostraram que, de acordo com as condições atuais, isso pode acontecer antes.

“Pode acontecer mais cedo do que se pensa. Podemos dizer realisticamente que vamos ser a última geração a ver a Amazônia”, lamentou Willcock em entrevista à emissora portuguesa RTP.

O cientista também foi ouvido pela reportagem da Folha de S. Paulo. Ao jornal, explicou que a Amazônia sofre por uma combinação entre mudança climática, desmatamento, perda de biodiversidade devido à caça e eventos climáticos extremos. Isso tem acelerado o processo de degradação.

“Um trabalho recente mostrou que a Amazônia já está perdendo resiliência, enquanto outro indicou que, uma vez que o colapso começar, ele será rápido. Segundo esse trabalho, se o processo começar em 2030, por exemplo, ele poderá se completar em 2080. A principal incerteza é saber quando esse limiar crítico será cruzado”, afirmou à Folha.

Apesar do alerta, Willock e Dearing destacam que algumas atitudes que podem ser consideradas “pequenas” têm potencial para, ao menos, retardar o processo. No caso da Amazônia, por exemplo, a diminuição do desmatamento e da caça poderiam representar um bom começo.

“A mesma lógica [que causa destruição] pode funcionar de forma contrária. Potencialmente, se aplicarmos pressão positiva, podemos ver rápidas melhoras dos ecossistemas”, resumiu à RTP.

 

Fonte: Mongabay/Brasil de Fato

 

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