Como mudanças na
Lei da Mata Atlântica podem ameaçar o fornecimento de água no Brasil
Em
24 de maio deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou a Medida Provisória 1150. Assinada pelo
ex-presidente Jair Bolsonaro, ela altera a Lei da Mata Atlântica – a única que
protege um bioma brasileiro – e flexibiliza o controle do desmatamento no bioma
mais devastado do país. Com 364 votos a favor, 66 contra e duas abstenções,
foram reintroduzidos na proposta pontos que haviam sido rejeitados pelo Senado.
No
Dia do Meio Ambiente, 5 de junho, o presidente Luís Inácio Lula da Silva vetou
os trechos da MP que fragilizam o combate ao desmatamento. Agora, ela volta ao
Congresso Nacional, por se tratar de uma decisão bicameral, para a decisão
final.
A
Mongabay conversou, com exclusividade, com a diretora de políticas públicas da
SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro, sobre essa medida, quais as suas
consequências caso o veto presidencial não seja mantido e, também, as
perspectivas futuras para a agenda socioambiental no país.
·
O que representa a Mata Atlântica para o Brasil?
Malu
Ribeiro: A
Mata Atlântica abrange 15% do território nacional e é a casa de 70% da
população do nosso país. É responsável pela segurança hídrica, porque faz a
função de mantenedora do ciclo hidrológico: os rios voadores vêm da Bacia Amazônica
e ela, como se fosse uma esponja, absorve a umidade, infiltra essas águas nos
aquíferos, e estes afloram na forma de nascentes no Cerrado. Depois, esses
aquíferos desaguam por grandes rios que formam planícies úmidas, como nosso
Pantanal. Os biomas estão conectados; se um deles estiver em desequilíbrio,
esse sistema não vai funcionar.
Outra
função que ela tem é a de estabilizar, nos eventos climáticos extremos, as
encostas, porque ela está em uma área de serra que divide a área costeira do
interior do Brasil. Vale mostrar que a Mata Atlântica é um bioma, não é uma
floresta. Ela tem a floresta, mas também tem os mangues, as restingas, as
várzeas, os campos de altitude. Ela tem várias fisionomias que são extremamente
importantes para a segurança da população.
Por
exemplo, sabemos que, naqueles eventos climáticos que levaram à morte de
pessoas na região serrana do Rio de Janeiro [em 2011, uma forte chuva resultou
na morte de mais de 900 pessoas em cidades fluminenses], 80% dos locais não
tinham cobertura florestal, havia mudança de uso do solo. Daí a importância da
manutenção da floresta, principalmente para os eventos de enchentes. Se você
tem as matas nas encostas, você segura o solo, não há assoreamento do rio e ele
pode extravasar no período. Também, respeitando as Áreas de Preservação
Permanente, as pessoas não estariam em locais de risco.
A
gente tem tentado mostrar que a Mata Atlântica, além de ter toda a
biodiversidade, de fornecer a água que a gente bebe, tem a capacidade de trazer
segurança a essa emergência climática. Estou falando do único bioma brasileiro
que tem uma lei especial que o protege, até por isso ele é muito atacado pelo
setor de infraestrutura e pelo setor do agronegócio, que quer se anistiar dos
desmatamentos anteriores.
·
E o que é a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428)?
Malu
Ribeiro: É
uma lei especial que regulamenta o artigo 225 da Constituição Federal da
República, que declara que a Mata Atlântica é patrimônio nacional. Em 2006, foi
aprovada e sancionada essa lei, que trata do uso sustentável do bioma. Então,
de acordo com os estágios sucessionais da floresta, em áreas de mata primária,
secundária, estágio médio e avançado de regeneração, há restrição de
desmatamento.
A
exceção acontece para obras e empreendimentos de utilidade pública ou com fim
social, como pontes, linhões de energia elétrica e acessos a comunidades, por
exemplo. Nesses casos, pode haver supressão mediante compensação ambiental,
reflorestamento. A mata em estágio inicial de regeneração, onde estão as áreas
urbanas, pode ser suprimida desde que se mantenha 20% da reserva legal do
bioma.
Antes
da lei, o ritmo de desmatamento anual, em média, era de 110 mil hectares.
Perdíamos 110 mil campos de futebol por ano. Os motivos eram, e são, a
especulação imobiliária nas áreas costeiras, além da expansão do agronegócio
nas áreas interioranas – agricultura e pecuária – e da atividade minerária.
Continua a mesma realidade, só que com a lei esse ritmo foi reduzido a 11 mil
hectares. E, dos 17 estados do bioma, 11 também estavam no nível do
desmatamento zero. No governo anterior, porém, o ritmo voltou acelerado e a
gente perdeu o desmatamento zero em todos os estados da Mata Atlântica.
·
No ano passado, o ex-presidente Jair Bolsonaro assinou
a Medida Provisória 1150/2022, que altera a Lei da Mata Atlântica e flexibiliza
o controle do desmatamento no bioma. Recentemente, a MP voltou à pauta pública
por conta da sua tramitação no Congresso Nacional e, depois, com o veto de
alguns trechos dela pelo presidente Lula…
Malu
Ribeiro: A
1150, que foi editada em dezembro do ano passado pelo ex-presidente da
República, vem com o objetivo de prorrogar o prazo, estabelecido no Código
Florestal, do Programa de Regularização Ambiental, com o argumento de que o
governo não fez a sua parte na validação do Cadastro Ambiental Rural, e os
proprietários rurais estavam sendo penalizados pela morosidade do governo. Só
que foram acrescidos a essa MP os chamados jabutis, que é um termo para falar
de matérias alheias ao que se está discutindo. Esses jabutis atacam justamente
o coração da Lei da Mata Atlântica, permitindo desmatar as florestas primárias
e as florestas em estágio avançado e médio de regeneração.
Isso
foi aprovado na Câmara, o Senado entendeu como inconstitucional e impugnou
esses jabutis. Ele devolveu, porque o processo é bicameral, e a Câmara
desrespeitou a impugnação, ou seja: manteve a alteração da Lei da Mata
Atlântica. No último dia 5, o presidente da República vetou e agora ela volta
ao Congresso Nacional em uma nova análise bicameral que poderá manter ou
derrubar os vetos. Estamos em uma grande expectativa e mobilização social,
promovendo atos, para que o veto seja mantido. Se isso não acontecer, retomaremos
o ritmo de desmatamento anterior à lei.
·
Quais os impactos, do ponto de vista internacional, se
as mudanças na Lei da Mata Atlântica forem adiante, tanto do ponto de vista da
imagem do governo quanto no que diz respeito à credibilidade do próprio
agronegócio para com investidores e clientes ou parceiros?
Malu
Ribeiro: O
governo brasileiro se comprometeu, né? No Acordo do Clima, na COP
(Conferência do Clima das Nações Unidas), tanto na de Paris como na COP26 [em
Glasgow]. Sem o desmatamento zero, a restauração dos ecossistemas e a
governança ambiental, esses compromissos não serão cumpridos. O mundo também
está de olho se o governo brasileiro vai manter a democracia no nosso país,
porque foi por pouco que a gente não a perdeu com aquele episódio do 8 de
janeiro. Isso ainda está impune, então não estamos em um clima de segurança
internacional, o que faz com que investimentos no Brasil, com que o mercado de
exportação, recue, né? Nós tivemos um recado duro da comunidade europeia em
relação a embargos para carnes que tiveram origem no desmatamento, para
produtos brasileiros com origem em queimada em áreas indígenas. Enfim, o mundo
está de olho em nós.
Eu
acredito que o agronegócio está atento a isso também. Até a ex-ministra da
Agricultura, Tereza Cristina, votou pela derrubada dos jabutis no Senado. O ex
vice-presidente Hamilton Mourão fez um pedido à mesa para que houvesse
impugnação, vendo que seria um problema internacional para o Brasil.
Mas
o próprio governo do presidente Lula é multipartidário, tem múltiplos
interesses, então há conflitos e divisões dentro dele. E aí é que o Presidente
da República vai precisar mostrar para o cenário internacional que ele tem
governança sobre esse time que lhe deu base para a vitória. Essa não é uma
tarefa fácil; a democracia exige esses acordos amplos, mas a gente espera que o
prejuízo não venha para a área socioambiental.
·
A sua leitura é de que se trata de um momento de reconstrução?
Malu
Ribeiro: Sim,
e para que isso aconteça o Ministério do Meio Ambiente precisa de recurso,
precisa de dotação orçamentária, uma vez que ele teve o seu orçamento
esvaziado, suas atribuições também. Precisa de concurso público, de parceria
com a iniciativa privada, com a sociedade, com os municípios e estados que são
dessas áreas protegidas. É uma reconstrução. É como se a gente estivesse
fazendo uma volta no tempo, mas uma volta no tempo com muitas lições
aprendidas, com muitas experiências exitosas e muitos retratos do que não
fazer. Eu acho que o Brasil tem um conhecimento acumulado muito grande nessa
área e temos uma expectativa de reconstrução que vai depender da nossa
capacidade de articulação com o Congresso, que é onde nós vamos garantir o
orçamento, é onde nós vamos garantir as autorizações para que o Executivo
governe.
Ø
Cientistas
alertam: nossa geração pode ser a última a ver a Amazônia de pé
A
próxima geração pode não conviver com a Amazônia viva. O alerta é dos
cientistas britânicos John Dearing e Simon Willcock, que realizaram estudo que
mostra como diversos novos fatores podem acelerar o colapso de diferentes
ecossistemas pelo mundo. A pesquisa foi publicada na edição de junho da revista
científica Nature Sustainability.
O
estudo usou modelos de computador para simular o avanço da degradação amazônica
e de outros exemplos, como a atividade pesqueira no litoral da Índia, e
verificar a aproximação de um conceito que pode ser chamado de “limite
climático” – que é quando o ecossistema colapsa. No caso da Amazônia, isso
representaria que a floresta atual, fechada e úmida, seria substituída por
outra mais seca e aberta.
Estimativa
da Organização das Nações Unidas prevê que esse tipo de colapso no ecossistema
amazônico acontecerá por volta do ano de 2100. Mas as pesquisas de Willcock e
Dearing mostraram que, de acordo com as condições atuais, isso pode acontecer
antes.
“Pode
acontecer mais cedo do que se pensa. Podemos dizer realisticamente que vamos
ser a última geração a ver a Amazônia”, lamentou Willcock em entrevista à
emissora portuguesa RTP.
O
cientista também foi ouvido pela reportagem da Folha de S. Paulo. Ao jornal,
explicou que a Amazônia sofre por uma combinação entre mudança climática,
desmatamento, perda de biodiversidade devido à caça e eventos climáticos
extremos. Isso tem acelerado o processo de degradação.
“Um
trabalho recente mostrou que a Amazônia já está perdendo resiliência, enquanto
outro indicou que, uma vez que o colapso começar, ele será rápido. Segundo esse
trabalho, se o processo começar em 2030, por exemplo, ele poderá se completar
em 2080. A principal incerteza é saber quando esse limiar crítico será
cruzado”, afirmou à Folha.
Apesar
do alerta, Willock e Dearing destacam que algumas atitudes que podem ser
consideradas “pequenas” têm potencial para, ao menos, retardar o processo. No
caso da Amazônia, por exemplo, a diminuição do desmatamento e da caça poderiam
representar um bom começo.
“A
mesma lógica [que causa destruição] pode funcionar de forma contrária.
Potencialmente, se aplicarmos pressão positiva, podemos ver rápidas melhoras
dos ecossistemas”, resumiu à RTP.
Fonte:
Mongabay/Brasil de Fato
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