ONU diz que
Bolsonaro atacou democracia
Jair
Bolsonaro contestou eleições sem apresentar provas, sinalizou apoio ao regime
militar no Brasil entre 1964 e 1985, reduziu o espaço da sociedade civil e
atacou as instituições democráticas.
Essas
são algumas das conclusões de um informe preparado pelo relator da ONU, Clément
Nyaletsossi Voule, e que está sendo apresentado aos governos de todo o mundo
nesta quarta-feira, no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
No
documento, o ex-presidente é acusado de atacar a democracia brasileira, pela
primeira vez de forma explícita.
A
sessão ocorreu às vésperas da conclusão do julgamento no TSE sobre a possível
inelegibilidade de Bolsonaro.
Voule
ocupa o cargo de relator especial da ONU sobre direitos à reunião pacífica e
liberdade de associação.
O
documento não implica qualquer tipo de sanção internacional contra Bolsonaro.
Mas amplia a pressão internacional e o constrangimento sobre o ex-presidente.
O
documento ainda pode servir para embasar decisões ou argumentos do Judiciário,
no próprio país.
Voule
esteve no Brasil no primeiro semestre de 2022 e realizou visitas a diferentes
cidades.
Nesta
quarta-feira, ao relatar sua viagem ao Brasil para os demais membros do
Conselho de Direitos Humanos, o especialista destacou os ataques contra a
sociedade civil brasileira.
“Estou
profundamente preocupado com o alto nível de violência contra defensores dos
direitos humanos, mulheres, comunidades LGBTQI+, quilombolas, povos e líderes
afro-brasileiros e indígenas”, disse.
“Exortei
o governo a garantir que esses grupos possam exercer com segurança seus
direitos à liberdade de reunião e associação pacíficas, sem medo de perseguição
ou qualquer tipo de discriminação”, afirmou.
Para
reduzir a violência policial, o relator recomenda o governo brasileiro a
desenvolver um protocolo unificado para os agentes de segurança, com o objetivo
de facilitar a realização de protestos pacíficos, em conformidade com as normas
internacionais.
“Além
disso, é fundamental que as novas autoridades restabeleçam a confiança da
sociedade civil através da criação de um ambiente propício e favorável. Devem
garantir o acesso adequado à justiça e a responsabilização pelos abusos
sofridos pelos ativistas e manifestantes, como no caso de Maria Franco. As
autoridades brasileiras devem também garantir que as leis antiterrorismo e a
nova lei de segurança nacional estejam em conformidade com as normas e padrões
internacionais de direitos humanos”, defendeu.
Voule
aplaudiu as medidas tomadas pelo governo Lula “para reforçar a democracia,
nomeadamente abrindo espaço para o diálogo, como o reinício das actividades dos
Conselhos Nacionais e garantindo uma participação social mais ampla”.
Em
seu informe, ele acusa Bolsonaro dos seguintes atos:
#
Desmontar a estrutura de participação social na definição de políticas
públicas.
#
Atacar as instituições democráticas e questionaram a eleição.
#
Promover a influência militar em órgãos do Estado e nomeou oficiais militares
para vários cargos no Governo, incluindo cargos de alto nível, como o Chefe de
Gabinete do Presidente e o Ministro da Saúde.
#
Expressar ambivalência em relação aos valores democráticos fundamentais,
defendendo abertamente o regime militar autoritário que vigorou entre 1964 e
1985 e atacando as instituições democráticas.
#
Negar a existência de uma ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985, fez
avaliações positivas dos eventos que ocorreram durante a ditadura, que
incluíram graves violações de direitos humanos, banalizou tais violações e
glorificou pessoas condenadas por terem participado da prática de crimes contra
a humanidade ou que estavam sendo investigadas por tais crimes.
#
Minimizar a pandemia, criticando o distanciamento social e outras medidas de
proteção e atacando especialistas médicos e instituições científicas.
O
relatório ainda expressou preocupação especial com o fato de que, antes das
eleições, a campanha de Bolsonaro envolveu “ataques contínuos contra
instituições democráticas, o judiciário e o sistema eleitoral no Brasil,
incluindo o sistema eleitoral eletrônico”.
“Em
reuniões com o Relator Especial, especialistas também identificaram ligações
entre campanhas de desinformação generalizadas que atacam os sistemas
eleitorais e a coalizão partidária e os apoiadores de Bolsonaro”, disse.
Para
ele, as eleições constituem um evento significativo na vida de uma nação que
oferece uma oportunidade única para fortalecer os princípios e valores
democráticos e para que a sociedade civil se envolva com os princípios e
valores democráticos.
“Os
esforços das autoridades governamentais para minar o processo eleitoral
transparente, desencorajar a participação política e rejeitar resultados
eleitorais desfavoráveis são inaceitáveis em um sistema democrático”,
denunciou.
Um
aspecto ainda que preocupou o relator foi o fato de que o aumento da política
iliberal corresponda à diminuição do apoio à democracia entre os brasileiros.
No
informe, ele cita estudos que mostraram que o apoio a um regime autoritário em
algumas circunstâncias atingiu 41% em 2018 no Brasil, em comparação com 19% em
2013. “Reverter essa tendência negativa deve ser uma prioridade do Estado”,
completou.
Ao
tomar a palavra, a delegação brasileira fez questão de marcar que existe uma
ruptura em relação ao que ocorreu nos anos Bolsonaro.
O
Itamaraty indicou que o novo governo está “trabalhando em iniciativas que
reforçam o nosso tradicional compromisso com os direitos humanos e com a
implementação das nossas obrigações internacionais em matéria de direitos
humanos”.
“Estamos
cientes de que muitas das questões destacadas no relatório são estruturais e
continuam sendo grandes desafios”, disse o embaixador brasileiro na ONU, Tovas
da Silva Nunes.
“No
entanto, o contexto político atual no Brasil difere substancialmente daquele
verificado em 2022, durante a visita do Relator Especial ao país. Passamos
agora por um processo de profunda reconstrução de nossas políticas de direitos
humanos. Nesse exercício, realizado por um governo com grande representação dos
movimentos sociais populares, reconhecemos e damos especial atenção à situação
de vulnerabilidade de pessoas historicamente discriminadas, incluindo
afrodescendentes, mulheres, indígenas, quilombolas, moradores de rua e pessoas
LGBTQIA+”, disse o embaixador.
De
acordo com o Itamaraty, há um reconhecimento de que “o processo de
fortalecimento da democracia brasileira, no qual nos encontramos profundamente
engajados, passa necessariamente pela proteção do direito à liberdade de
reunião e associação pacíficas”.
“Para
tanto, devemos assegurar a participação substancial e o engajamento da
sociedade civil nos processos decisórios, garantindo um ambiente seguro e livre
de assédio para o seu trabalho, e promovendo o pleno e livre exercício da
atividade política, especialmente para as populações marginalizadas”, defendeu
Tovar Nunes da Silva.
Ele
assegurou que haverá uma reconstrução dos conselhos de participação social.
“Consideramos um importante atributo dos processos democráticos”, disse.
O
diplomata garantiu que, em resposta a uma das recomendações da Relatora
Especial, o governo brasileiro revogou integralmente o Decreto 9.759/2019, que
havia extinguido a maioria dos conselhos da sociedade civil.
“Isso
é um sinal do nosso compromisso de fortalecer a participação popular em todos
os níveis e de restabelecer os espaços de diálogo entre a sociedade civil e as
autoridades governamentais”, disse.
“Com
o mesmo espírito, vários novos decretos foram editados este ano, revigorando os
conselhos existentes e criando outras instâncias permanentes de participação da
sociedade civil.
Além
de reestruturarmos formalmente esses espaços, também criamos as condições
necessárias para o seu funcionamento, inclusive com a aprovação de novos
recursos orçamentários para o funcionamento desses conselhos”, disse.
A
médio prazo, o governo prevê ainda a convocação de novas conferências nacionais
para discutir políticas públicas com a sociedade civil, com ênfase nas
políticas para crianças e adolescentes e pessoas com deficiência, bem como o
relançamento da Cúpula Social do Mercosul no 2º semestre deste ano.
O
governo ainda destacou a criação de um grupo de trabalho sobre o combate ao
discurso de ódio e ao extremismo, com a missão de propor políticas públicas em
matéria de direitos humanos. Essa era uma das recomendações da ONU.
“Essa
é uma das ações do governo para evitar que atentados à democracia como os do
dia 8 de janeiro voltem a acontecer. O grupo envolve acadêmicos e profissionais
de diversas áreas que se dedicam a pensar na criação de uma cultura de paz,
respeito e preservação da dignidade humana, com respeito à liberdade de
expressão e reunião pacífica”, disse o diplomata brasileiro.
“A
promoção e a proteção dos direitos à liberdade de reunião e associação
pacíficas desempenham um papel fundamental em uma democracia vibrante”,
completou.
O
relator destaca que, depois de sua visita, o questionamento da eleição de
outubro de 2022 foi um ponto marcante desse ataque contra a democracia.
“Embora
as eleições tenham sido reconhecidas pela comunidade internacional e pelos
observadores eleitorais como livres, justas e transparentes, elas foram
marcadas por desinformação e violência política”, disse.
“Bolsonaro
contestou os resultados sem fornecer provas substanciais e continuou seus
ataques ao sistema eleitoral e às instituições”, apontou.
“Em
8 de janeiro de 2023, seus apoiadores invadiram e vandalizaram os prédios do
Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal,
pedindo uma intervenção militar para destituir o presidente democraticamente
eleito, Lula da Silva”, alertou.
O
relator especial “condenou esse ataque contra as instituições democráticas e as
tentativas de minar o voto democrático do povo brasileiro e pediu aos
apoiadores que deixassem os prédios que haviam invadido”.
Ele
ainda destacou como, nas palavras do Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Direitos Humanos, os ataques às instituições governamentais foram “o ponto
culminante da distorção contínua dos fatos e do incitamento à violência e ao
ódio por parte de atores políticos, sociais e econômicos que alimentaram uma
atmosfera de desconfiança, divisão e destruição ao rejeitar os resultados das
eleições democráticas”.
Segundo
ele, a transição do Brasil do regime ditatorial para a democracia foi
formalizada pela Constituição de 1988, que garante o direito à liberdade de
expressão, associação e reunião.
As
garantias constitucionais, no entanto, foram afetadas negativamente nos últimos
anos como resultado da proliferação de leis e decretos adotados pelas
autoridades brasileiras em uma tentativa de minar esses direitos.
Tais
leis e decretos enfraqueceram a democracia do país e a participação da
sociedade civil e das comunidades marginalizadas nos assuntos públicos. ?Na
época da visita do relator especial, o documento aponta que a democracia no
Brasil “vinha experimentando há anos um nível significativo de retrocesso”.
“O
retrocesso em relação aos valores e compromissos democráticos, que já vinha
ocorrendo há anos, foi marcado por um aumento dos valores iliberais, da
violência política e dos ataques às instituições democráticas”, disse.
Segundo
ele, as eleições de outubro de 2022 “aumentaram essa crise democrática”. “Nesse
contexto, o Relator Especial observou com preocupação o aumento dos incidentes
de discurso de ódio e violência política”, destacou.
Um
dos destaques do informe é ainda o envolvimento militar no governo civil de
Bolsonaro.
“Durante
sua presidência, ele (presidente) promoveu a influência militar em órgãos do
Estado e nomeou oficiais militares para vários cargos no Governo, incluindo
cargos de alto nível, como o Chefe de Gabinete do Presidente e o Ministro da
Saúde”, destacou o informe.
O
documento cita como, em 2021, o Tribunal de Contas da União informou que havia
6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no Governo. Isso era o
dobro da participação militar em comparação com o Governo anterior, que tinha
2.765 militares em cargos civis.
Mas
era a linha de Bolsonaro que mais chamou a atenção. “O governo de Bolsonaro
expressou ambivalência em relação aos valores democráticos fundamentais,
defendendo abertamente o regime militar autoritário que vigorou entre 1964 e
1985 e atacando as instituições democráticas”, disse.
“Durante
seu governo, Bolsonaro e membros de seu governo frequentemente negaram a
existência de uma ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985, fizeram avaliações
positivas dos eventos que ocorreram durante a ditadura, que incluíram graves
violações de direitos humanos, banalizaram tais violações e glorificaram
pessoas condenadas por terem participado da prática de crimes contra a
humanidade ou que estavam sendo investigadas por tais crimes”, afirmou.
O
texto é contundente: “Não se tratava de comentários isolados, mas sim de parte
de uma narrativa contínua que buscava minar os esforços importantes para
lembrar a história das violações de direitos humanos do passado e reconhecer as
vítimas e suas famílias”. O informe ainda destinou uma parcela importante de
sua análise para alertar sobre a adoção de políticas que restringem a
participação social e política e limitam os espaços de consulta relativos às
políticas públicas e à tomada de decisões no país.
“Desde
2019, pelo menos 650 conselhos, comitês e outros mecanismos participativos
foram dissolvidos por decreto presidencial, enquanto os restantes, como o
Conselho Nacional de Direitos Humanos, estão enfrentando sérios obstáculos ao
seu funcionamento, incluindo questões orçamentárias e administrativas que
impedem a realização de suas reuniões”, disse.
“O
desmantelamento dessa estrutura de participação cívica tem sido prejudicial à
democracia brasileira, ao Estado de Direito, à inclusão social e ao
desenvolvimento econômico”, denunciou.
Para
ele, o decreto presidencial prejudica ainda mais os princípios da governança
democrática, como abertura, transparência e prestação de contas, reduz a
independência e a autonomia da sociedade civil e ameaça a promoção e a proteção
dos direitos humanos, inclusive o direito de participar da condução dos
assuntos públicos e o direito de acessar informações.
Terminado
o governo Bolsonaro, o relator “está confiante de que o Brasil tem a
capacidade, a vontade política e a maturidade para restaurar a confiança e a
esperança entre aqueles que sofreram com a marginalização e anos de violações
de direitos humanos, inclusive como resultado do exercício de suas liberdades
fundamentais”.
Para
ele, a vibrante sociedade civil do país tem um papel importante a desempenhar
na salvaguarda da democracia e da coesão do Brasil. “Como visto nos últimos
anos, a sociedade civil tem resistido ao discurso populista que mina a
legitimidade de seu trabalho e também tem resistido ao aumento de medidas
legais e leis que visam restringir o espaço cívico e a participação em assuntos
públicos”, disse.
Em
sua avaliação, é importante que as novas autoridades “reconstruam a confiança
na sociedade civil por meio da criação de um ambiente propício que permita seu
trabalho”.
“Reconhecer
a sociedade civil e reverter a narrativa negativa, no mais alto nível do
Estado, sobre o trabalho da sociedade civil e sua contribuição essencial para o
desenvolvimento do país será fundamental para a criação desse ambiente
favorável”, insistiu.
Segundo
ele, a superação dos desafios da discriminação, das profundas desigualdades e
da proteção da terra e das comunidades amazônicas, indígenas e marginalizadas
exigirá a participação livre e significativa da sociedade civil.
Fonte:
UOL
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