quinta-feira, 29 de junho de 2023

A encruzilhada da cidadania no Brasil pós-pandêmico

A cidadania no Brasil é um fenômeno cíclico. Durante as eleições o campo politico se volta à população e procura seu voto. Fora desse período, vastas parcelas da população voltam a viver em condição subalterna de cidadania. O Brasil hoje vive um apartheid: mais de 55 milhões de pessoas vivem de transferência de renda e, fora dos períodos eleitorais, não há qualquer espaço para que exerçam sua cidadania.

Estamos falando de um em cada quatro adultos, aproximadamente, cuja possibilidade de expressão dentro do campo social está restrita ao consumo de subsistência, quando muito. São pessoas destituídas de ocupação fixa, que procuram meios de subsistência dia-a-dia, sem qualquer previsibilidade. Têm a fome como companheira recorrente e não raro deixam de comer para dar algo aos seus filhos.

Segundo Archon Fung (2003), numa democracia cidadãos tem oportunidade de expressar seus interesses e preferências por expedientes participativos, sejam eles eleitorais, em que elegem representantes ao governo que em retorno prestam contas aos seus eleitores, ou não eleitorais, em que cidadãos fazem o controle social de políticas e têm sua voz reconhecida por meio de expedientes participativos, como em conselhos, por exemplo.

Até 2016 alguns conselhos estavam presentes em 98% dos municípios brasileiros. Havia entre 60 e 65 mil conselhos no país: e mais conselheiros da sociedade civil do que vereadores. Essa maior diversidade e potência de mecanismos de controle social e responsabilização foram considerados, então, importantes indicativos da qualidade da democracia. Inaugurava-se uma institucionalidade social popular inédita no país. Nessa época, contudo, o numero de beneficiários de transferência de renda já totalizava quase 45 milhões de pessoas, ou seja, constituíam 1 em cada 5 pessoas adultas, aproximadamente. Em outras palavras, nessa época o apartheid apontado acima, já existia. O que aconteceu?

De lá para cá abateu-se sobre o mundo a covid. Concomitantemente testemunhamos o renascimento da extrema direita, considerada até então superada pelo Estado de direito do pós-guerra por praticamente todo pensamento politico.

O Brasil pós-pandêmico é mais pobre do que o de 2015 (PIB per capta caiu 38% no período — de 12 mil para 7,5 mil dólares), menos educado (o país caiu do 4º para o 7º decil no ranking da educação da OCDE) e mais conectado (o acesso à internet pulou de 57% para 70% da população com mais de dez anos).

A trajetória de fortalecimento democrático até então, que teve como companhia uma aurora da participação social (o que, ironicamente, não impediu o impeachment do governo que conduzia esse processo), lida hoje com uma realidade de formação de opinião publica radicalmente diferente da que se via em 2016.
O resgate da trajetória democrática enfrenta não só essa dura realidade como também o crescimento da parcela social de desvalidos, a que se denomina, formalmente, de “beneficiários da renda cidadã”. Marcio Pochman mostra que no período 2015-2021 a quantidade de miseráveis dobrou e a de pobres e miseráveis, juntos, cresceu 40%. Isso configura não só um retrocesso, mas uma inversão abrupta e acelerada de tendência de evolução do bem estar social.

Como diz Aldaiza Sposatti, tratar esse tema primordialmente pela sua dimensão econômico-financeira, relegando a dimensão política ao segundo plano, é abandonar a perspectiva de cidadania universal e, por consequência, a democracia. Ou melhor, é abraçar uma versão iliberal de democracia.

Interromper esse percurso de deterioração democrática, e de aprofundamento da condição de cidadania sub-normal, exige, portanto, estabelecer contato com essa população. Mas como dar representatividade a um extrato que reúne, genericamente, em uma única categoria, um em cada quatro adultos da sociedade brasileira?

Certamente é preocupante qualquer entendimento que descarte tamanha lacuna metodológica. Ao incrementar as condicionalidades de acesso ao benefício e complexificar sua distribuição, o Estado se distancia da promoção de um entendimento amplo. Ao mesmo tempo, alimenta uma concepção discriminatória e subordinativa sobre o tema, conduzida sob um debate técnico e burocratizante, cujo resultado é a corrosão de ganhos conquistados e a promoção de um debate em que a aferição de impactos reais é relegada a um segundo plano, sob manto da governabilidade. É preciso conhecer e desenhar políticas em diálogo com a realidade concreta dessas populações e universalizar o direito, não discricionalizá-lo sob medidas burocráticas de difícil aferição.

É preciso renovar o pacto com a institucionalidade social popular antes instalada e ampliá-la, de fato, para o campo popular. Uma retomada democrática que envolve reconhecer identidades cidadãs dentro dessa parcela da população, o que quer dizer reconhecer seu papel expressivo como força de trabalho e transformação social, e como tal, seus direitos civis e autodeterminação coletiva. Isso quer dizer, antes de mais nada, reconhecer quem ela é, como é composta, como se autodenomina, o que quer prioritariamente e onde reside.

Isso implica, como afirma Pedro Jacobi, reconhecer que populações locais têm amplo conhecimento sobre suas realidades e como tal, são quem mais pode contribuir para a definição dos problemas que enfrentam e para a elaboração de respostas que precisam ser objeto de políticas públicas, pois tem conhecimento prático sobre o assunto. E essa perspectiva só é possível por meio da escuta atenta e oferta de oportunidade de protagonismo social e ampliação dos direitos de concessão do beneficio da Renda Básica por parte do Estado brasileiro.

 

Ø  Tirar o combate à fome do arcabouço e seu cabresto. Por André Cardoso, Juliane Furno, Luís Fernandes, Iriana Cadó e Pedro Faria

 

O programa político eleito nas urnas em 2022 e que sustenta o governo do presidente Lula tem o combate à fome no seu centro. Para o campo popular, o Novo Arcabouço Fiscal anunciado pelo governo, apesar de solucionar os problemas mais graves criados pelo Teto de Gasto, limita excessivamente o espaço de implementação do programa popular e de sua pauta mais importante, o combate à fome. Em 2022, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer — o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome em relação ao período pré- pandemia. Conforme o estudo, 58,7% da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave.

Frente a isso, aproveitamos a discussão do Novo Arcabouço Fiscal no congresso para colocarmos em pauta a proposta “orçamento popular é orçamento sem fome”. Contra os interesses financistas que rondam o governo, entendemos que é urgente proteger os programas de combate à fome de cortes e limitações orçamentárias.

A prioridade de um orçamento sem fome que respeita o programa popular é a proteção a três programas centrais do novo governo Lula: o Programa Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). No orçamento de 2023, os três programas têm previsão de R$181,7 bilhões: o Bolsa Família é responsável pela maior parte desse valor, com R$175 bilhões; PAA e PNAE terão R$531,5 milhões e R$5,46 bilhões, respectivamente. Juntos, os três programas representam 8,9% da despesa primária líquida esperada pelo governo para 2023.

O direito à alimentação é um direito humano previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. Também é considerado um direito social pela Constituição Federal. A nossa Constituição dá atenção particular ao direito das crianças à alimentação, especialmente em ambiente escolar: os capítulos sobre infância e educação apontam explicitamente para o papel da boa alimentação.

O Programa Bolsa Família é a base da política de combate à fome no Brasil. É ele que levanta a população da extrema pobreza e a coloca no caminho do mercado de trabalho. Assim se abre o espaço para que outras políticas voltadas para o emprego, como a valorização real do salário mínimo, tenham efeito.

O combate à fome vai além das transferências diretas: é necessário apoiar e promover os complexos produtivos que garantem concretamente o direito à alimentação. Por isso, a proposta de emenda também exclui o PAA e o PNAE do conjunto de gastos sujeitos ao novo limite de crescimento. Com orçamento enxuto, estes programas são fundamentais para o desenvolvimento de longo-prazo da agricultura familiar.

A obrigatoriedade de uso de 30% dos recursos do PNAE na aquisição de alimentos da agricultura familiar e o PAA garantem aos pequenos produtores agrícolas estabilidade e possibilidade de planejamento. Com a garantia de que o Estado fará compras significativas, a agricultura familiar pode se planejar melhor: a estabilidade das vendas permite, por exemplo, o planejamento de investimentos de longo-prazo a partir de programas como o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

Atuando em conjunto, os três programas – Bolsa Família, PAA e PNAE – contribuem para a revitalização de economias locais: as pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza ganham poder de consumo que pode ser atendido por uma agricultura familiar com capacidade de planejamento e investimento. Além disso, a permanência escolar, um dos condicionantes do Bolsa Família, garante que crianças e jovens da classe trabalhadora estarão presentes em escolas supridas com alimentos de qualidade adquiridos pelo PNAE.

A proteção dos programas de combate à fome também é uma oportunidade de garantir ferramentas para uma política fiscal anticíclica. Conforme nossa posição sobre o arcabouço, o Novo Arcabouço Fiscal precisa de mais espaço para o protagonismo do investimento público a fim de ter um caráter anticíclico mais forte. O programa Bolsa Família pode atuar como um “estabilizador automático” por meio do crescimento esperado do número de novos beneficiários em períodos de crise. O valor dos benefícios também pode ser facilmente alterado de acordo com as variações de demanda agregada.

Além disso, todos os três programas possuem fortes multiplicadores fiscais. Transferências e compras direcionadas a populações de baixa renda em áreas com consumo reprimido se transformam em grandes expansões de demanda agregada. Segundo estudo dos pesquisadores Marcelo Neri, Fábio Monteiro Vaz e Pedro Herculano Souza, o Bolsa Família tem o maior multiplicador fiscal entre todos os programas de transferência de renda do governo federal. Portanto, preservar os programas de combate à fome significa que, em situações de crise econômica, o governo federal terá liberdade para utilizar-se dos melhores instrumentos de retomada da demanda agregada sem o constrangimento imposto pela regra de vinculação ao crescimento da receita.

Por fim, preservar os programas de combate à fome da sanha fiscalista representa um avanço político para o campo popular. A garantia dos programas de compra de alimentos da agricultura familiar representará uma vitória da aliança campo-cidade na luta por soberania alimentar. Esses programas garantem a base material da luta da classe trabalhadora urbana e rural por um Brasil mais justo.

O fortalecimento dessa aliança é ainda mais importante no momento em que o centro de poder político e econômico do país se desloca para o agronegócio do interior do país. PNAE, PAA e Bolsa Família têm papel fundamental em garantir a autonomia da classe trabalhadora e camponesa e a força política e econômica do campo popular nas pequenas e médias cidades do interior do país. Com o fortalecimento desses programas, há maior possibilidade de se resistir ao poder destrutivo do agronegócio e do extrativismo mineral predatório que dominam esses territórios.

 

Fonte: Por Felix Ruiz Sanches e Andre Leirner, em Outras Palavras

 

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