A encruzilhada da
cidadania no Brasil pós-pandêmico
A
cidadania no Brasil é um fenômeno cíclico. Durante as eleições o campo politico
se volta à população e procura seu voto. Fora desse período, vastas parcelas da
população voltam a viver em condição subalterna de cidadania. O Brasil hoje
vive um apartheid: mais de 55 milhões de pessoas vivem de transferência de
renda e, fora dos períodos eleitorais, não há qualquer espaço para que exerçam
sua cidadania.
Estamos
falando de um em cada quatro adultos, aproximadamente, cuja possibilidade de
expressão dentro do campo social está restrita ao consumo de subsistência,
quando muito. São pessoas destituídas de ocupação fixa, que procuram meios de
subsistência dia-a-dia, sem qualquer previsibilidade. Têm a fome como
companheira recorrente e não raro deixam de comer para dar algo aos seus
filhos.
Segundo
Archon Fung (2003), numa democracia cidadãos tem oportunidade de expressar seus
interesses e preferências por expedientes participativos, sejam eles
eleitorais, em que elegem representantes ao governo que em retorno prestam
contas aos seus eleitores, ou não eleitorais, em que cidadãos fazem o controle
social de políticas e têm sua voz reconhecida por meio de expedientes
participativos, como em conselhos, por exemplo.
Até
2016 alguns conselhos estavam presentes em 98% dos municípios brasileiros.
Havia entre 60 e 65 mil conselhos no país: e mais conselheiros da sociedade
civil do que vereadores. Essa maior diversidade e potência de mecanismos de
controle social e responsabilização foram considerados, então, importantes
indicativos da qualidade da democracia. Inaugurava-se uma institucionalidade
social popular inédita no país. Nessa época, contudo, o numero de beneficiários
de transferência de renda já totalizava quase 45 milhões de pessoas, ou seja,
constituíam 1 em cada 5 pessoas adultas, aproximadamente. Em outras palavras,
nessa época o apartheid apontado acima, já existia. O que aconteceu?
De
lá para cá abateu-se sobre o mundo a covid. Concomitantemente testemunhamos o
renascimento da extrema direita, considerada até então superada pelo Estado de
direito do pós-guerra por praticamente todo pensamento politico.
O
Brasil pós-pandêmico é mais pobre do que o de 2015 (PIB per capta caiu 38% no
período — de 12 mil para 7,5 mil dólares), menos educado (o país caiu do 4º
para o 7º decil no ranking da educação da OCDE) e mais conectado (o acesso à
internet pulou de 57% para 70% da população com mais de dez anos).
A
trajetória de fortalecimento democrático até então, que teve como companhia uma
aurora da participação social (o que, ironicamente, não impediu o impeachment
do governo que conduzia esse processo), lida hoje com uma realidade de formação
de opinião publica radicalmente diferente da que se via em 2016.
O resgate da trajetória democrática enfrenta não só essa dura realidade como
também o crescimento da parcela social de desvalidos, a que se denomina,
formalmente, de “beneficiários da renda cidadã”. Marcio Pochman mostra que
no período 2015-2021 a quantidade de miseráveis dobrou e a de pobres e
miseráveis, juntos, cresceu 40%. Isso configura não só um retrocesso, mas uma
inversão abrupta e acelerada de tendência de evolução do bem estar social.
Como
diz Aldaiza Sposatti, tratar esse tema primordialmente pela sua dimensão
econômico-financeira, relegando a dimensão política ao segundo plano, é
abandonar a perspectiva de cidadania universal e, por consequência, a
democracia. Ou melhor, é abraçar uma versão iliberal de democracia.
Interromper
esse percurso de deterioração democrática, e de aprofundamento da condição de
cidadania sub-normal, exige, portanto, estabelecer contato com essa população.
Mas como dar representatividade a um extrato que reúne, genericamente, em uma
única categoria, um em cada quatro adultos da sociedade brasileira?
Certamente
é preocupante qualquer entendimento que descarte tamanha lacuna metodológica.
Ao incrementar as condicionalidades de acesso ao benefício e complexificar sua
distribuição, o Estado se distancia da promoção de um entendimento amplo. Ao
mesmo tempo, alimenta uma concepção discriminatória e subordinativa sobre o
tema, conduzida sob um debate técnico e burocratizante, cujo resultado é a
corrosão de ganhos conquistados e a promoção de um debate em que a aferição de
impactos reais é relegada a um segundo plano, sob manto da governabilidade. É
preciso conhecer e desenhar políticas em diálogo com a realidade concreta
dessas populações e universalizar o direito, não discricionalizá-lo sob medidas
burocráticas de difícil aferição.
É
preciso renovar o pacto com a institucionalidade social popular antes instalada
e ampliá-la, de fato, para o campo popular. Uma retomada democrática que
envolve reconhecer identidades cidadãs dentro dessa parcela da população, o que
quer dizer reconhecer seu papel expressivo como força de trabalho e
transformação social, e como tal, seus direitos civis e autodeterminação
coletiva. Isso quer dizer, antes de mais nada, reconhecer quem ela é, como é
composta, como se autodenomina, o que quer prioritariamente e onde reside.
Isso
implica, como afirma Pedro Jacobi, reconhecer que populações locais têm amplo
conhecimento sobre suas realidades e como tal, são quem mais pode contribuir
para a definição dos problemas que enfrentam e para a elaboração de respostas
que precisam ser objeto de políticas públicas, pois tem conhecimento prático
sobre o assunto. E essa perspectiva só é possível por meio da escuta atenta e
oferta de oportunidade de protagonismo social e ampliação dos direitos de
concessão do beneficio da Renda Básica por parte do Estado brasileiro.
Ø Tirar o combate à
fome do arcabouço e seu cabresto. Por André Cardoso, Juliane Furno, Luís
Fernandes, Iriana Cadó e Pedro Faria
O
programa político eleito nas urnas em 2022 e que sustenta o governo do
presidente Lula tem o combate à fome no seu centro. Para o campo popular, o
Novo Arcabouço Fiscal anunciado pelo governo, apesar de solucionar os problemas
mais graves criados pelo Teto de Gasto, limita excessivamente o espaço de
implementação do programa popular e de sua pauta mais importante, o combate à
fome. Em 2022, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no
Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas
não têm garantido o que comer — o que representa 14 milhões de novos
brasileiros em situação de fome em relação ao período pré- pandemia. Conforme o
estudo, 58,7% da população brasileira convive com a insegurança alimentar em
algum grau: leve, moderado ou grave.
Frente
a isso, aproveitamos a discussão do Novo Arcabouço Fiscal no congresso para
colocarmos em pauta a proposta “orçamento popular é orçamento sem fome”. Contra
os interesses financistas que rondam o governo, entendemos que é urgente proteger
os programas de combate à fome de cortes e limitações orçamentárias.
A
prioridade de um orçamento sem fome que respeita o programa popular é a
proteção a três programas centrais do novo governo Lula: o Programa Bolsa
Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE). No orçamento de 2023, os três programas têm
previsão de R$181,7 bilhões: o Bolsa Família é responsável pela maior parte
desse valor, com R$175 bilhões; PAA e PNAE terão R$531,5 milhões e R$5,46
bilhões, respectivamente. Juntos, os três programas representam 8,9% da despesa
primária líquida esperada pelo governo para 2023.
O
direito à alimentação é um direito humano previsto na Declaração Universal dos
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. Também é considerado um
direito social pela Constituição Federal. A nossa Constituição dá atenção
particular ao direito das crianças à alimentação, especialmente em ambiente
escolar: os capítulos sobre infância e educação apontam explicitamente para o
papel da boa alimentação.
O
Programa Bolsa Família é a base da política de combate à fome no Brasil. É ele
que levanta a população da extrema pobreza e a coloca no caminho do mercado de
trabalho. Assim se abre o espaço para que outras políticas voltadas para o
emprego, como a valorização real do salário mínimo, tenham efeito.
O
combate à fome vai além das transferências diretas: é necessário apoiar e
promover os complexos produtivos que garantem concretamente o direito à
alimentação. Por isso, a proposta de emenda também exclui o PAA e o PNAE do
conjunto de gastos sujeitos ao novo limite de crescimento. Com orçamento
enxuto, estes programas são fundamentais para o desenvolvimento de longo-prazo
da agricultura familiar.
A
obrigatoriedade de uso de 30% dos recursos do PNAE na aquisição de alimentos da
agricultura familiar e o PAA garantem aos pequenos produtores agrícolas
estabilidade e possibilidade de planejamento. Com a garantia de que o Estado
fará compras significativas, a agricultura familiar pode se planejar melhor: a
estabilidade das vendas permite, por exemplo, o planejamento de investimentos
de longo-prazo a partir de programas como o Programa de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (Pronaf).
Atuando
em conjunto, os três programas – Bolsa Família, PAA e PNAE – contribuem para a
revitalização de economias locais: as pessoas em situação de pobreza e extrema
pobreza ganham poder de consumo que pode ser atendido por uma agricultura
familiar com capacidade de planejamento e investimento. Além disso, a
permanência escolar, um dos condicionantes do Bolsa Família, garante que
crianças e jovens da classe trabalhadora estarão presentes em escolas supridas
com alimentos de qualidade adquiridos pelo PNAE.
A
proteção dos programas de combate à fome também é uma oportunidade de garantir
ferramentas para uma política fiscal anticíclica. Conforme nossa posição sobre
o arcabouço, o Novo Arcabouço Fiscal precisa de mais espaço para o protagonismo
do investimento público a fim de ter um caráter anticíclico mais forte. O
programa Bolsa Família pode atuar como um “estabilizador automático” por meio
do crescimento esperado do número de novos beneficiários em períodos de crise.
O valor dos benefícios também pode ser facilmente alterado de acordo com as
variações de demanda agregada.
Além
disso, todos os três programas possuem fortes multiplicadores fiscais.
Transferências e compras direcionadas a populações de baixa renda em áreas com
consumo reprimido se transformam em grandes expansões de demanda agregada.
Segundo estudo dos pesquisadores Marcelo Neri, Fábio Monteiro Vaz e Pedro
Herculano Souza, o Bolsa Família tem o maior multiplicador fiscal entre todos
os programas de transferência de renda do governo federal. Portanto, preservar
os programas de combate à fome significa que, em situações de crise econômica,
o governo federal terá liberdade para utilizar-se dos melhores instrumentos de
retomada da demanda agregada sem o constrangimento imposto pela regra de
vinculação ao crescimento da receita.
Por
fim, preservar os programas de combate à fome da sanha fiscalista representa um
avanço político para o campo popular. A garantia dos programas de compra de
alimentos da agricultura familiar representará uma vitória da aliança
campo-cidade na luta por soberania alimentar. Esses programas garantem a base
material da luta da classe trabalhadora urbana e rural por um Brasil mais
justo.
O
fortalecimento dessa aliança é ainda mais importante no momento em que o centro
de poder político e econômico do país se desloca para o agronegócio do interior
do país. PNAE, PAA e Bolsa Família têm papel fundamental em garantir a
autonomia da classe trabalhadora e camponesa e a força política e econômica do
campo popular nas pequenas e médias cidades do interior do país. Com o
fortalecimento desses programas, há maior possibilidade de se resistir ao poder
destrutivo do agronegócio e do extrativismo mineral predatório que dominam
esses territórios.
Fonte:
Por Felix Ruiz Sanches e Andre Leirner, em Outras Palavras
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