2013, segundo Safatle
Talvez
fosse o caso de começar afirmando que 2013 foi o último ano da história da
esquerda brasileira e de suas estruturas hegemônicas. Essa revolta popular
ressoa ainda como uma espécie de acontecimento não-integrado, com uma rede de
potencialidades que continua a nos assombrar de forma espectral. O que ocorreu
depois de 2013 foi uma lenta e contínua degradação marcada pela atrofia da
capacidade de ação e da imaginação política da esquerda brasileira em seus
múltiplos partidos, em seus sindicatos e movimento sociais.
Depois
de 2013, a esquerda brasileira tornou-se basicamente uma força reativa que
responde desesperadamente à capacidade de constituir agenda política e pautar
mobilização popular da extrema direita. Que ela encabece frente eleitorais
amplíssimas, como ocorreu na eleição de 2022, não significa que ela encontrou
novamente protagonismo. Isso apenas significa que ela se tornou gestora do
pânico social, pânico do retorno de uma extrema direita robusta.
Nosso
afeto central é o medo. Nesse contexto, no máximo ela se torna gestora de
conquistas simbólicas que, como tudo de natureza simbólica, tem sua importância
e força, mas importância e forças limitadas pois são destinadas a nos fazer
“ganhar tempo” diante da evidente ausência de uma força ofensiva contra o
capital. De fato, após 2013 a extrema direita brasileira foi capaz de se
colocar como a única força política insurrecional entre nós. Por isso, ela
continua consolidada e forte.
Mas
seria o caso de inicialmente explorar a natureza de 2013 como acontecimento, já
que a esquerda se divide de forma bastante clara a esse respeito. 2013 é um
divisor de águas do que restou da esquerda brasileira. Há quem enxergue nessa
sequência de manifestações populares apenas um setor avançado da dita “guerra
híbrida”. Não seria por outra razão que, a partir de 2013, veríamos a
consolidação fulminante da extrema direita como força política principal do
país. Nesse sentido, 2013 não estaria distante de eventos com o Maidan,
ocorrido na Ucrânia mais ou menos no mesmo período. A ideia de base nessa
narrativa é que se tratava de desestabilizar um governo de esquerda popular e,
para tanto, emergiram “movimentos de massa” marcados por pautas anti-partidos,
luta contra a corrupção, nacionalismo paranoico e luta contra o “comunismo”.
Todas bandeiras que irão pavimentar a ascensão da extrema direita brasileira.
Contra
esses, seria o caso de insistir que 2013 como acontecimento porta uma questão
que toda teoria da ação revolucionária deveria ser capaz de pensar, a saber,
como uma revolta popular se degrada em um movimento de restauração
conservadora? Como forças transformadoras são transmutadas em processos de
regressão social? A questão, e esta é sua ironia, sequer é nova. Ela está no
fundamento da teoria revolucionária marxista, haja vista o sentido de um texto
como o 18 de Brumário, todo ele construído a partir de uma questão:
o que aconteceu para que uma verdadeira revolução social proletária em solo
europeu terminasse em restauração do Império e em governo cínico-autoritário.
Toda
teoria da ação revolucionária é, ao mesmo tempo, uma teoria das contradições
imanentes da vida social, de seu potencialmente de transformação
revolucionária, e uma teoria dos processos de reação e das inversões entre
revolução e reação, uma teoria das contrarrevoluções. Deveríamos ter isso em
mente ao analisarmos 2013.
·
Um século de insurreições populares
Bem,
antes de começar a discussão direta sobre 2013, gostaria de apresentar uma
hipótese de natureza estrutural a respeito de um largo movimento histórico que
começa com a Primavera árabe e do qual, a meu ver, 2013 participa. Insistir
nesse ponto é uma forma de colocar em relevo a centralidade da noção de
“insurreição” como operador de acontecimentos políticos, em especial em países
que outrora foram chamados de “Terceiro Mundo”. Conhecemos analistas que,
depois do colapso da organização da classe operária através de partidos de
massa de aspiração revolucionária, afirmarão o inelutável “fim da política”.
No
entanto, tal colapso, por mais que coloque questões reais de organização e
força de mudança, não representou o fim de processos insurrecionais. Na
verdade, poderíamos mesmo arriscar uma proposição de filosofia da história e
afirmar que o século XXI nasce a partir de uma sequência insurrecional mundial
que articula Sul e Norte em uma ressonância de descontentamentos sociais
ligadas ao impacto do aumento da pauperização e das dinâmicas de concentração
provocadas pelo neoliberalismo. Essa sequência, embrião possível de novas
formas sociais, precisa ser nomeada enquanto tal para que tenhamos uma
intelecção mais precisa a respeito de nosso momento histórico e de suas
potencialidades reais.
Ou
seja, é possível defender a tese da característica política mais relevante do
século XXI ser uma impressionante sequência de insurreições populares de luta
contra o capital e de recuperação paulatina da soberania das massas espoliadas.
Esse processo traz em seu bojo uma articulação entre reconfiguração
micropolítica e des-identificação com macro-estruturas. Fala-se aqui de
“des-identificação” para salientar a maneira com que populações se voltam
contra instituições e estruturas estatais, compreendidas como esvaziadas de sua
capacidade real de representação política.
Tais
populações não se manifestam apenas como portadores de demandas a serem
realizadas por instâncias reconhecidas de poder, mas como força destituinte.
Isso explica porque muitas dessas insurreições começam com demandas pontuais
ligadas a custo de vida, a preços de combustíveis, a aumento nos custos de
transporte, para posteriormente passarem a expressões gerais de
des-identificação social.
No
entanto, é importante para os que procuram preservar o sistema de paralisia
próprio à nossa situação atual que essa dinâmica mundial não seja identificada,
que as insurreições apareçam como revoltas esparsas e sem continuidade, que a
recusa a representação política que elas muitas vezes veiculam sejam
compreendidas como regressões anti-políticas cujo horizonte natural de
incorporação seria os “populismos”: termo cuja vagueza analítica esconde sua
real estratégia política. Estratégia essa que consiste em nos fazer crer que
toda e qualquer vontade de sair dos limites da democracia liberal só pode ser
expressão de regressões políticas potencialmente autoritárias e afetivamente
irracionais.
Esse
apagamento da sequência insurrecional do século XXI é parte de uma estratégia
mais ampla de limitação da imaginação política das massas. Seu primeiro passo
foi a desqualificação generalizada da noção de revolução, processo que ganhou
força como consequência do fim das sociedades burocráticas do Leste Europeu. O
esforço monumental, feito nos últimos trinta anos, de apagar o conceito de
“revolução” do centro da reflexão política expressava a crença de que as
democracias liberais teriam condições de gerenciar os conflitos sociais que
aparecessem em seu interior. A escolha das palavras não está aqui por acaso.
Tratava-se efetivamente de “gerenciamento” e de compreender as lutas de classe
como meros “conflitos sociais”.
Nesse
contexto, “gerenciamento” significa impedir que o descontentamento social se
incarne em desejo por transformações estruturais. Como um “gerente”, trata-se
de encontrar a alocação correta de recursos para a otimização dos engajamentos.
Mas como o horizonte de ajustes graduais prometidos pelo Estado de bem-estar
social não mais se encontra em operação, como os últimos vinte anos foram
marcados por crises de decomposição dos sistemas de direitos trabalhistas e de
aumento exponencial dos processos de concentração, como as macro-estruturas de
proteção social foram decompostas sem que mesmo as consequências catastróficas
de uma pandemia mundial tenha tido a capacidade de recompô-las, trata-se então
de gerenciar o descontentamento através da generalização das situações de
guerra, com a elevação do medo à condição de afeto político central.
A
guerra, como forma primeira da acumulação capitalista e sistema de mobilização
de afetos, torna-se assim o horizonte principal de organização social e de
funcionamento gerencial de nossa estrutura normativa. Ela vira a única forma de
garantir alguma coesão social em um mundo que expulsou de seu horizonte de
reprodução material toda forma de coesão real. Assim, é singular que a tópica
da revolução desapareça do debate e da ação política no exato momento em que as
democracias liberais aumentem o uso do aparato policial contra populações,
brutalizem refugiados, reorganizem os direitos civis e fortaleçam dispositivos
de controle e disciplina a partir da generalização das situações de guerra.
Isso
quando essas mesmas democracias liberais não são assombradas por outra
revolução, no caso, uma revolução conservadora capitaneada pela força de
mobilização da extrema direita. Forças essas que se servem naturalmente da
tópica da guerra permanente (contra imigrantes, contra “comunistas”, contra os
que ameaçam a família etc.) como fator de mobilização e governo.
No
entanto, a análise de processos políticos concretos nos últimos dez anos mostra
que o eixo político central do século XXI não pode ser compreendido apenas a
partir da mobilização do medo e de sua dinâmica de guerra, generalizada
principalmente a partir de 11 de setembro de 2001, com o atentado contra
o World Trade Center. É certo que, a partir de então, o século
parecia se inscrever sob o signo da “ameaça terrorista” que nunca passa, que se
torna uma forma normal de governo. Essa era a forma de colocar nosso século sob
o signo paranoico da fronteira ameaçada, da identidade invadida, do corpo a ser
imunizado, do choque civilizacional. Como se nossa demanda política fundamental
fosse, em uma retração de horizontes, segurança e proteção policial.
No
entanto, há de se perceber a emergência de outro eixo de acontecimentos e
ações. Para tanto, há de se insistir que o século XXI começou em uma pequena
cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid, no dia 17 de dezembro de 2010. Ou seja,
começou longe dos holofotes, longe dos centros do capitalismo global. Ele
começou na periferia. Nesse dia, um vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi
decidiu reclamar com o governador regional e exigir a devolução de seu carrinho
de venda de frutas, que fora confiscado pela polícia. Vítima constante de
extorsões policial, Bouazizi foi a sede do governo com uma cópia da lei em
punho. No que ele foi recebido por uma policial que rasgou a cópia na sua
frente e lhe deu um tapa na cara. Bouazizi então tacou fogo em seu próprio
corpo.
Depois
disso, a Tunísia entrou em convulsão, o governo de Ben Ali caiu, levando
insurreições em quase todos os países árabes. Começava assim o século XXI: com
um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava assim a
primavera árabe, com um ato que dizia: melhor a morte que a sujeição, com uma
conjunção toda particular entre uma “ação restrita” (reclamar por ter seu
carrinho de venda de frutas apreendido) e uma “reação agonística” (imolar-se)
que reverbera por todos os poros do tecido social.
Desde
então o mundo verá uma sequência de insurreições durante dez anos. Occupy,
Plaza del Sol, Istambul, Brasil, França (Gillets Jaunes), Tel-Aviv, Santiago:
esses são apenas alguns lugares por onde esse processo passou. E na Tunísia já
se via o que o mundo conheceria nos próximos dez anos: sublevações múltiplas,
que ocorrem ao mesmo tempo, que recusam centralismo e que articulavam, na mesma
série, revoltas micropolíticas e des-identificação macro-política,
reconfiguração das potencialidades dos corpos e recusa da representação
política.
A
maioria dessas insurreições irá se debater com as dificuldades de movimentos
que levantam contra si as reações mais brutais, que se deparam com a
organização dos setores mais arcaicos da sociedade na tentativa de preservar o
poder tal como sempre foi. Principalmente, durante uma década a
des-identificação macro-estrutural não foi capaz de se encarnar em um processo
de conquista dos espaços macro-políticos. Isso fez com que muitos vissem nelas
dinâmicas destinadas à dispersão e ao fracasso.
Por
outro lado, vimos a proliferação de discursos que acreditaram que a transformação
das estruturas do desejo e da sexualidade, que as novas circulações
micro-políticas dos corpos seriam suficientes para transformações de estrutura.
Daí o abandono teórico de uma dimensão da ação política marcada pela conquista
do estado e pela procura em modificar estruturalmente as formas de produção de
valor e em decompor a sociedade do trabalho. Creio que esse é o contexto
correto de avaliação de 2013, de seus desdobramentos e legados.
·
Sobre a interpretação de 2013
Primeiro,
há de se lembrar que a tese, da esquerda oficial, de 2013 como ação de
consolidação da extrema direita nacional só pode se sustentar ignorando uma
série de fatos concretos significativos. Primeiro, depois de um número baixo de
greves no período 2003-2008, um processo crescente se inicia entre 2010 (445
greves no ano) e 2012 (877 no ano). Ele explode em 2013, que conhecerá o maior
número de greves desde o fim da ditadura (quando se inicia a série histórica),
ou seja, 2050 greves, sendo 1106 apenas no setor privado. Tais greves começam
já no início do ano, com movimentos de grevistas autônomos em relação a seus
sindicatos e centrais, como ocorreu nas greves de garis e bombeiros dos
primeiros meses de 2013.
Tal
fenômeno era sintomático: trabalhadores que não reconheciam mais suas “representações”
e que procuravam deixar claro sua insatisfação e precariedade. Isto demonstra
como as narrativas que procuram vincular 2013 a uma sedição das classes médias
não se sustenta. Classe média não faz nem lidera greve. Essas foram greves de
setores espoliados e que entenderam que o projeto de ascensão social do lulismo
havia se esgotado.
E
nesse contexto que vieram as manifestações de maio de 2013, iniciando-se em
Porto Alegre, coordenadas por movimentos autonomistas contrários ao aumento nas
tarifas de transporte público. Manifestações contra as condições abusivas dos
transportes públicos são uma constante na história brasileira, assim como é
constante a reação violenta do braço armado do poder. No entanto, naquele
momento estava em marcha um descolamento da enunciação do descontentamento em
relação a seus representantes tradicionais, todos eles comprometidos com o
consórcio governista e com a gestão de sua paralisia.
Daí
o movimento de greves espontâneas e a vocalização, feita por setores autonomistas,
da permanência da pauperização da classe trabalhadora brasileira. A remuneração
de 93% dos novos empregos criados nos entre 2003 e 2013 chegava apenas a até um
e meio salário mínimo. Em 2014, 97,5% dos empregos criados estava nesta faixa.
Ou seja, o horizonte social estava marcado pela consciência da preservação
daquilo que um dia Marx chamou de “pobreza relativa”. Isso quer dizer, sair da
pobreza absoluta, da miséria não implica em eliminação do sofrimento social se
estamos em um país em franco processo de crescimento. Pois esse processo de
crescimento produz novos sistemas de necessidades e de desejos, fazendo com que
sujeitos se sintam cada vez mais distantes do padrão social de realização
material.
Notemos
ainda que a partir de junho, o país será atravessado por uma sequência inédita
de manifestações ininterruptas com pautas múltiplas (de junho a novembro não
houve um dia sequer que alguma manifestação não tenha ocorrido no país). Foram
manifestações por mais serviços públicos, pelo fim da violência policial, pela
gratuidade do transporte público, pela recusa da representação, contra a PEC 37
e as políticas discriminatórias, contra o uso de animais em pesquisas e
cosméticos, contra o péssimo atendimento hospitalar. Nunca o Brasil vira de
forma tão forte e retomada da enunciação de seus problemas pela população
auto-organizada.
Há
de se lembrar que o governo chegou a esboçar uma reação ao anunciar, em cadeia
nacional, um projeto de revisão constitucional. Tal projeto foi desmentido pela
sua própria enunciadora, a então presidenta Dilma Rousseff em menos de 24
horas. Sua reunião presidencial com representantes dos movimentos autonomistas
foi uma das mais espetaculares ações inócuas que se tem notícia. Tudo isso
mostrava claramente a inoperância, a incapacidade da esquerda governista em
responder à dinâmica de politização insurrecional da sociedade. Na verdade,
sequer outros setores da esquerda brasileira se mostraram capazes de produzir
tal resposta. Eles desvelaram, na verdade, uma tendência gravitacional
irresistível a paulatinamente retornarem ao horizonte de atuação e às
limitações funcionais dos modelos de coalização próprios ao exercício do poder
pelo Partido dos Trabalhadores.
Mas
é fato que a ampliação das manifestações, a partir de 17 de junho, demonstrou a
existência de grupos ligados a discursos nacionalistas e a uma pauta
anti-corrupção focada, basicamente, no consórcio governista. Começam lutas
internas e brigas nas próprias manifestações entre grupos de esquerda e
direita. Era o início de um processo de embate político nas ruas que
posteriormente exporá as clivagens ideológicas do país. Como disse àquela
ocasião, essas clivagens nunca mais se apagariam. Antes, elas se aprofundariam
em um processo sem retorno. Seria necessário estar preparado para ela. Isso
significa claramente entender que a política mundial foi para os extremos e só
mesmo uma postura suicida procura, no momento em que a direta se desloca com
força para um extremo, continuar com uma política de “conquista do centro”. Só
um deslocamento real da esquerda ao extremo pode fazê-la retomar protagonismo,
seja no Brasil, seja no mundo.
Àqueles
que se perguntam como a extrema direita conseguiu ser setor fortalecido de
2013, seria o caso de lembrar de ao menos dois fatores. Primeiro, lembremos de
um fato histórico negligenciado por nossa formação intelectual. Nos anos 1930,
o Brasil foi o país com o maior partido fascista fora da Europa. Há de se
lembrar que a Aliança Integralista Nacional tinha, à época, ao em torno de 1,2
milhões de aderentes. Mesmo depois do suicídio de Vargas e do fim da Segunda
Guerra, seu candidato à presidência, Plínio Salgado, terá 8,28% dos votos
válidos para a eleição presidencial de 1955.
A
participação do integralismo na ditadura cívico-militar será orgânica. Mesmo
assim, a Nova República criou a ilusão de que seu sistema de pactos e
conciliações seria suficientemente forte para eliminar por completo as
dinâmicas do fascismo nacional: termo esse que durante muito tempo fora visto
muito mais como palavra de ordem de mobilização de centro acadêmico do que como
conceito com força analítica vinculada à história nacional concreta. Mas a
verdade é que o fim da Nova República recolocaria no horizonte as forças de
ruptura de uma revolução conservadora sempre presente no horizonte nacional.
O
basteamento conservador de processos de revoltas populares já havia ocorrido
anos antes na Primavera Árabe. Foi o caso da Tunísia, com o Emnahda, e do
Egito, com a Irmandade muçulmana: grupos islâmicos com forte penetração popular
devido à prática de políticas de assistência. Nestes casos, houve um
basteamento conservador do movimento que levaram tais grupos ao poder por um
tempo.
Ou
seja, a estrutura dos movimentos religiosos se beneficiou do fato destes serem
um dos poucos grupos efetivamente organizados a fornecer amparo e assistência a
populações pauperizadas. Longe de ser alguma expressão de “obscurantismo”,
“superstição”, “ignorância”, tratava-se de uma ação completamente racional. Em
um contexto de transformação social estrutural, populações tendem a levar em
conta a posição daqueles grupos e instituições que estiveram a seu lado antes.
Isso deveria ser levado em conta no momento de entendermos a fulgurante
ascensão das igrejas evangélicas como fator de consolidação da extrema direita
nacional.
·
O colapso da esquerda nacional
Já
o segundo fator capaz de explicar a ascensão da extrema direita encontra-se na
própria esquerda. Um elemento decisivo para esse basteamento conservador de
2013 foi o colapso da esquerda nacional. Era difícil à esquerda no poder
entender como o povo poderia estar naquele momento nas ruas contra o governo do
próprio povo. A única resposta possível era: não se tratava do povo real.
Contrariamente a outros processos de insurreição popular que ocorreram
posteriormente, como o Estallido chileno de 2019, os
movimentos populares na Colômbia em 2021, os gillets jaunes franceses,
a primeira reação de setores majoritários da esquerda em relação a esses
movimentos foi a desqualificação ou o espanto (“não estamos entendendo nada e
será necessário muito tempo para compreender”).
Isso
mostra, primeiro, um imenso desejo de dirigismo da esquerda brasileira, sua
incapacidade de tentar criar hegemonia dentro de processos populares na rua, de
ultrapassar o momento e impor uma pauta ainda mais avançada e ousada de
questões. Criação de hegemonia, em situações insurrecionais é indissociável de
um processo de “protagonizar a aceleração”. Essa é uma lição clássica dos
processos insurrecionais. A base da estratégia de hegemonia consiste em ser o
protagonista da aceleração, da radicalização das demandas.
No
entanto, como dizia Carlos Marighella desde nos anos sessenta, a esquerda
brasileira tem uma tendência orgânica a se colocar em posição perpétua de
“reboquismo”. Sua aliança com setores “esclarecidos” da burguesia nacional, seu
desejo de encontrar algo como “setores democráticos da direita” com quem seria
possível governar apenas lhe faz completamente inapta a intervir em processos
populares em curso, a lutar por hegemonia em movimento, a usar a imaginação
política como força ofensiva em momentos nos quais ela é decisiva. Ou seja, a
esquerda brasileira simplesmente não tem, em seu horizonte de ação, a atuação
no interior de processos insurrecionais. Ela não foi formada para isso. Sua
formação histórica lhe fez, ao contrário, agente de processos de negociação
institucional.
·
Uma contrarrevolução permanente
O
que acontecerá depois é muito significativo. 2013 mostrou como o Brasil é de
fato, nos dizeres proféticos de Florestan Fernandes, o país da contrarrevolução
permanente. A extrema direita brasileira entrou em fase insurrecional. Nesse
contexto, “fase insurrecional” significa que a extrema direita mundial tenderá,
cada vez mais, a operar como força ofensiva anti-institucional de longa duração.
Força essa que pode se expressar em grandes mobilizações populares, em ações
diretas, em formas de recusa explícita das autoridades constituídas. Ou seja,
toda uma gramática de luta que até pouco atrás caracterizava a esquerda
revolucionária agora está migrando para a extrema-direita, como se estivéssemos
em um mundo invertido.
No
entanto, de certa forma, a contrarrevolução é também um serviço conjunto
oferecido pela esquerda nacional. Ela o faz a partir do momento em que não
pauta suas ações por uma imaginação política em movimento. Ao contrário, ela
conseguiu impor a si mesmo algo pior do que a restrição de horizontes de
expectativas. Ela impôs a si uma brutal restrição do horizonte de enunciação.
Mesmo a possibilidade de ser uma força de vocalização de demandas de
transformação estrutural sai de cena.
Por
exemplo, quantas vezes ouvimos nesses últimos anos palavras como “auto-gestão
da classe trabalhadora”, “ocupação de fábricas”, “nenhum emprego precarizado”,
“liberar os sujeitos da cadeia do trabalho”, entre tantos outros? Pois 2013
colocou para a esquerda brasileira o verdadeiro desafio: não é possível mudar o
país sendo o fiador de coalizações impossíveis que paralisam nossa capacidade
de transformação e que, ao final, explodem sempre em nosso colo.
Não
ter correlação de forças suficiente é um argumento clássico para justificar tal
restrição do horizonte de enunciação. No entanto, isso é apenas uma falácia que
se faz passar por cálculo racional. Correlações de força mudam inclusive
através de derrotas. A política não desconhece a derrota como força prévia de
mobilização, como estratégia de consolidação de lutas. As feministas argentinas
sabiam que seriam derrotadas quando apresentaram no Parlamento a lei pelo
aborto. Mas mesmo assim o fizeram. Por que? Por inépcia ou por astúcia? E seria
o caso de lembrar que, apresentada a lei, a sociedade foi obrigada a
discuti-la, a ouvir todos os setores. Derrotada uma primeira vez, elas puderam
identificar os pontos de maior resistência, mudar certos dispositivos e reapresenta-la
anos depois. Bem, anos depois, elas venceram. O que aconteceu com a famosa
correlação de forças? Digo isso, porque esse tipo de raciocínio inexiste no
Brasil.
Mas
para compensar a paralisia social, fez-se necessário criar movimentos
localizados. Nesse sentido, não é estranjo perceber que, depois de 2013, as
pautas de esquerda com maiores mobilizações de seus setores foram, no fundo,
“pautas de integração”. Como se fosse o caso de aceitar que rupturas na ordem
capitalista estão fora de discussão, que a luta pela realização concreta de
macro-estruturas de proteção não será mais nosso horizonte e que agora a luta é
por criar um capitalismo mais humano, mais diverso, com representantes de
setores vulneráveis em comitês de diversidade de grandes empresas e em capas da
revista Forbes.
Não,
isso não é uma vitória. É apenas uma das figuras de uma restrição brutal do
nosso horizonte de enunciação. Todo processo revolucionário é, ao mesmo tempo,
uma revolução molecular, ou seja, uma transformação estrutural nos campos do
desejo, da linguagem, das afetividades. Mas esse processo molecular pode também
correr no vazio quando uma revolução nas estruturas de reprodução material da
vida, no fundo, não está na ordem do dia.
Nesse
sentido, o discurso contra “pautas identitárias”, que se consolidou em 2013, é
apenas uma maneira de não entender o verdadeiro problema. Ele não está lá onde
alguns acreditam que estejam. Essas pautas sequer são “identitárias”. Elas são
as verdadeiras pautas “universalistas”, pois nos lembram que a naturalização de
marcadores de violência contra raça, gênero, religião, orientação sexual,
colonialidade impedem qualquer advento de um universalismo real. Mas a própria
esquerda aprendeu nesses últimos tempos a usar tais pautas para esconder de si
mesma que não tem mais nada a oferecer de transformação efetiva.
Ela
empurra assim tais pautas para serem veículos de dinâmicas de integração a uma
sociedade completamente desintegrada, de reconhecimento em uma sociedade que
não é capaz de assegurar nada mais que o aprofundamento de dinâmicas de
espoliação e sofrimento social. A tendência dos movimentos sociais que
sustentam tais pautas é, em larga medida, serem sócios do poder de estado,
fiadores de um governo para o qual elas não podem oferecer um sistema
necessário de pressões externas.
Hoje,
dez anos depois de 2013, este é o lugar da esquerda nacional. Por isso, é
possível dizer que 2013 foi um acontecimento em suspenso, uma oportunidade
perdida. Que esse seja um momento de reflexão antes de uma nova ascensão da
extrema direita entre nós e da perda de mais uma oportunidade.
Fonte:
Por Vladmir Safatle,
em A Terra é Redonda
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