sexta-feira, 30 de junho de 2023

Jorge Majfud: O capitalismo está morto

O livre mercado sempre foi o dogma central de liberais e capitalistas, mas nunca foi praticado pelos liberais, nem pelos capitalistas. Todas as teorias e metáforas, como a “mão invisível do mercado” e os gráficos inúteis que alguns economistas inventaram para fazer acreditar que a economia era uma ciência dura, como a física, e não parte das ciências sociais, só funcionaram na imaginação simplificada de seus autores e crentes.

Poucas coisas são tão irreais e sem nenhum exemplo histórico concreto. Em todos os casos, são propostas desprovidas das variáveis mais importantes da realidade. A lei da oferta e da demanda, da liberdade dos mercados e o egoísmo individual como motor do progresso coletivo não incluem a política, o poder imperial, as manipulações monetárias e financeiras, muito menos as externalidades.

Segundo esta visão lunática, em uma sociedade organizada pelo mercado não há acumulação de poder, nem a destruição da própria liberdade do mercado, mesmo quando liberais fundadores como Adam Smith, David Ricardo e mais recentemente Joseph Schumpeter reconheceram essa perigosa fragilidade da maravilhosa teoria.

A prosperidade e a riqueza acumuladas pelas maiores potências do mundo foram possíveis ao impor essas regras só às colônias. Enquanto isso, o governo global de corporações privadas continuava e globalizava o sistema escravista. O próprio presidente Rutherford Hayes observou, algumas décadas após a abolição da escravatura, que o governo estadunidense estava a serviço das corporações, não do povo; que as leis eram aprovadas para proteger e beneficiá-las, não o povo.

O capitalismo surgiu na Inglaterra do século XVII, com a sacralização do direito à propriedade privada acima de qualquer outro direito (incluindo o direito à vida) e seu império impôs à força os interesses de suas companhias privadas, como a East India Company, auxiliada por seu governo assim como, antes, a monarquia havia auxiliado os senhores feudais a desapropriar os camponeses de suas terras sob o novo sistema de comercialização da terra e do trabalho dos deslocados.

Esse processo foi radicalizado com o sistema financeiro. Do liberalismo clássico, nada. O sistema global atual é tão oposto ao capitalismo como era o capitalismo em relação ao seu antecessor, o feudalismo, razão pela qual o chamamos por muitos anos de neofeudalismo.

O capitalismo está morto. O que vemos é um zumbi que anda sem vida e assusta apologistas e detratores. O que estamos vendo é a etapa pós-capitalista marcada por crises econômicas e sociais cada vez mais crescentes e frequentes. A ditadura dos cartéis das finanças é exercida através do capital virtual.

A transferência de riqueza das classes médias e das neocolônias é realizada por meio de (1) pagamento de dívidas alheias em dinheiro real e pagamento de dívidas próprias em dinheiro criado do nada; (2) transferência de recursos das classes trabalhadoras para financiar guerras eternas da indústria militar, nas mãos de uma elite financeira; e (3) privatização de seus espólios e exigência de compensações às nações destruídas que, por sua vez, vão se converter em novos satélites.

Essa tem sido, há séculos, a história ocidental: o extermínio do outro, algo que se radicalizou com a ascensão dos impérios europeus, a partir do século XVI. A chamada “Paz dos Cem Anos” (1815-1914) foi, segundo Polanyi, “um fenômeno inaudito nos anais da civilização ocidental”. É claro que devemos considerar um detalhe esquecido por esses títulos: nesse mesmo período, o imperialismo europeu e estadunidense exportou quase toda a sua violência para as colônias na Ásia e na África e para as repúblicas das bananas na América.

A Ásia, da China à Índia, manteve-se por três séculos sem agressões militares, de 1598 a 1894. Se considerarmos a China, o período sem guerras expansionistas soma 500 anos, desde a breve invasão do Vietnã, em 1406. Na Ásia e na África, existiram culturas e civilizações baseadas no pacifismo e na cooperação, como é o caso do Ubuntu, incluída a hoje tão insultada tradição islâmica na Espanha e na África Ocidental.

O Reino de Nri na África durou 1.000 anos e se destacou por seu pacifismo radical, sua proibição da escravidão, sua propriedade comunal da terra e a produção e seu comércio intenso e livre com outras nações. Tudo isso terminou com a chegada do cristianismo e o mercado escravista dos marinheiros portugueses.

Se antes as finanças eram uma forma de administrar os capitais, agora, são os capitais uma forma de administrar as finanças. Os donos desse jogo de extração de valor, criando dinheiro do nada, pertencem a uma microelite. O poder dos governos é simbólico, representam a grande distração na luta de antagônicos: para os povos, os políticos são os demônios ou são os salvadores, mas quem têm o poder são os bancos e as corporações.

Em 1790, o fundador da dinastia de banqueiros Rothschild, Mayer Rothschild, já havia antecipado: “Deixe-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e não me importo com quem escreve as leis”. Esse processo de abstração se radicalizou com a criação do dinheiro digital nos bancos, pressionando várias vezes a tecla “0”.

É assim que todo o sistema de roubo faraônico fica suspenso apenas por um fio: a fé. Se a partir de 1971, o dólar substituiu o padrão-ouro pela fé dos detentores, ela ainda tinha uma vinculação com a realidade material: assumia-se que o governo dos Estados Unidos iria sustentar seu valor por meio do valor real de sua economia. Contudo, a economia dos Estados Unidos não só trocou superávit por déficit, como produção por consumo.

No entanto, um sistema baseado na fé precisa de templos, de sacerdotes e de crentes: meios de comunicação, políticos, jornalistas e consumidores. Como o dinheiro, a realidade é uma criação virtual. Só uma crise global poderia mudá-la, e essa crise será uma crise de fé, uma conversão religiosa.

Como qualquer templo religioso, o principal recurso dos meios de comunicação obedientes é a inoculação do medo a um ente que é venerado como criador de prosperidade e temido como destruidor da ordem mundial. Qualquer dúvida é demonizada como artifício dos anjos das trevas que querem destruir o mundo com suas perigosas ideias.

Há muito tempo, o atual sistema de acumulação ultrapassou as próprias regras do capitalismo. Se antes era necessário capital real roubado das colônias ou das classes trabalhadoras para investi-lo e produzir produtos e serviços, hoje, esse capital é um capital virtual. É o maior sistema de assalto da história. Nunca antes a humanidade havia organizado um sistema de roubo global tão perfeito, que não se restringe mais aos impérios, mas a uma microelite dentro desses ex-impérios, que em sua maioria pode estar nos países desenvolvidos ou em outros.

 

       Capitalismo e morte: um olhar sobre a necropolítica. Pot Alvaro Soler

 

A necropolítica é um conceito que aponta como as inércias políticas de uma sociedade se vinculam e tem como principal matriz a gestão da morte. Esse contexto está ligado a uma crise climática que de forma cada vez mais evidente encurrala todas as sociedades atuais, como também ao auge do autoritarismo mundialmente e, por fim, ao recente contexto pandêmico, que serviu como janela de apresentação para compreender até que ponto a necropolítica dirige o curso social da humanidade.

Dessa forma, a necropolítica se apresenta como um termo muito interessante para entender, em escala macro, as inércias que a gestão dos governos e empresas empregam sobre a população. Além disso, também é um termo necessário para entender muitos dos processos de controle ocorridos durante a pandemia.

Fora das teorias da conspiração e outras especulações, a pandemia foi um espelho para olhar e entender lógicas de controle e poder, em larga escala, exercidas pelos governos (também reações em microescala, dos cidadãos e suas interações cotidianas).

Além disso, a palavra necropolítica foi utilizada pelo historiador Achille Mbembe para abarcar um conjunto de iniciativas e estratégias políticas que fazem sentido no que diz respeito ao controle dos corpos biológicos em relação direta com a morte. Ou seja, gerar um ambiente de controle onde a morte e suas dimensões são a principal esfera utilitária para o domínio: “As formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte obrigam alguns corpos a permanecerem em diferentes estados situados entre a vida e a morte” (Achille Mbembe).

Em outras palavras, a necropolítica não seria diretamente exterminar a população, mas gerar contextos de precariedade onde a exclusão e o abandono vão encurralando segmentos populacionais e a morte vai ganhando terreno em suas vidas. Seria algo parecido a tornar a vida de certos coletivos uma existência projetada constantemente à precariedade mais absoluta. Uma precariedade que desfaz os critérios de dignidade aos quais um ser humano deveria ter acesso para viver.

Como dizia a socióloga Saskia Sassen, passamos de um sistema baseado na inclusão (pelo menos em parte) da população no mercado de consumo a um sistema capitalista que busca excluir, em que sobra gente, e é aí que entra a necropolítica.

A necropolítica seria um tipo de biopolítica, conceito proveniente de Michel Foucault, onde a gestão biológica em larga escala dos corpos, que caracteriza o capitalismo, se inclina para a morte. Essa inércia tanatopolítica está presente em diversos exemplos ao longo da história do capitalismo. Mais ainda, a história da evolução do capitalismo pode ser entendida como a história da necropolítica e sua ascensão.

O Apartheid na África do Sul, o genocídio do povo palestino, a fome na Ásia e na África, o Holocausto, as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki etc. A necropolítica foi se expandindo e deixou de marcar o fio da história com eventos isolados para se assentar como um risco global no século XXI, sobretudo depois da pandemia. Ninguém mais está seguro, todos somos possíveis pacientes zero.

Um risco globalizado, um medo globalizado e políticas mundializadas sobre esta tessitura: as políticas sobre a morte. Em seu livro Dysphoria mundi, Paul B. Preciado nos lembra que a história da necropolítica tem sua origem nas indústrias da carne, onde o modelo produtivo de otimização da morte de animais para obter pedaços de carne é adotado por Henry Ford para fabricar carros.

Essas mesmas lógicas impregnarão todas as dimensões da vida social. Também serão uma inspiração para a matança sistemática de pessoas no Holocausto, como nos contará o sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra fundamental Modernidade e Holocausto.

Desta forma, voltando a Preciado, cabe destacar sua noção de necrobiopolítica. Ou seja, ao conceito de biopolítica de Foucault, onde segundo o francês os corpos eram otimizados para a vida para se tornarem mais produtivos e se obter seu máximo rendimento no capitalismo moderno, é preciso acrescentar: “Por trás do capitalismo petro-sexo-racial e de suas formas mutantes contemporâneas (tecnopatriarcado racial, o capitalismo farmacopornográfico e cibernético), não há tecnologia de poder biopolítico que não funcione ao mesmo tempo como tecnologia da morte. Por isso, não falaremos mais de biopolítica, mas de necrobiopolítica” (Paul B. Preciado).

O final deste texto nos apresenta uma dualidade, algo que Preciado sem dúvida odeia, mas pode ser útil para entender o que estamos enfrentando: a vida versus a morte. É fácil de conceber, objetivamente é simples sustentar uma posição que defenda uma política voltada para a vida, ainda que o capitalismo se empenhe em virar a balança para a morte.

•        O autoritarismo como contexto apropriado para a necropolítica

O autoritarismo é uma inércia política cada vez mais presente nos governos de todo o mundo. Mesmo nas chamadas democracias liberais há um processo contínuo e gradual de erosão dos valores democráticos que sustentavam essas sociedades. A ascensão da extrema direita e a radicalização dos partidos conservadores na Europa mergulharam o velho mundo em um contexto sócio-histórico preocupante, que evoca paralelos inquietantes com os anos 1930.

As grandes potências capitalistas, como Estados Unidos, Rússia e China, caminham para postulados reacionários onde o coletivo LGTBIQ+, as minorias étnicas, as mulheres e a classe trabalhadora sofrem medidas disciplinares de seus estados.

Na América Latina, enfrenta-se dimensões semelhantes: a luta contra o narcotráfico e a criminalidade está relacionada com a corrupção política e a ascensão de governos populistas de direita e extrema direita. O exemplo mais recente de autoritarismo desmedido pode ser encontrado em El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele empreendeu uma guerra impiedosa contra membros de gangues, grupos violentos associados à criminalidade que causavam um autêntico terror social em forma de agressões e assassinatos no país.

No entanto, longe de solucionar o problema de uma forma coerente, Bukele aproveitou essa situação para se colocar como líder autoritário, criando prisões onde uma grande porcentagem da população supostamente vinculada às gangues já foi presa. A realidade é que diversos relatórios apontam que pelo menos um em cada seis prisioneiros é inocente. Além disso, foram registradas mortes e torturas, com essas prisões sendo comparadas a campos de concentração, em um recente relatório da ONU.

O contexto descrito é preocupante, pois facilita o surgimento e a implantação da necropolítica. O autoritarismo gera um processo de desumanização da população, em que deixa de ter uma vida para se tornar um futuro cadáver. Exemplos como o de Bukele não são os únicos, nem os mais terríveis, basta observar como os países supostamente civilizados deixam morrer dezenas de pessoas no Mediterrâneo, ou como na Ásia os fundamentalismos islâmicos minam a liberdade de todos os cidadãos, em especial das mulheres.

O capitalismo entrou na fase em que se normalizou gerir parte da população como resíduos, danos colaterais do imparável e imprescindível deus do capital. Há muito mais exemplos do que os mencionados, como as imagens de crianças trancadas em jaulas na fronteira entre os Estados Unidos e o México. E as pessoas da terceira idade abandonadas à própria sorte na pandemia, após ações de desprezo dos governos em países como Espanha, Brasil, Reino Unido e o próprio Estados Unidos.

Também é possível citar a negação das vacinas nos países pobres, sobretudo os localizados na África, enquanto nos países ricos foram fornecidas duas ou três doses. E é possível fazer referência aos ecossistemas esgotados pela exploração contínua do sistema capitalista, com pessoas afetadas e mais ainda as espécies animais condenadas à morte. A necropolítica está em todas as partes.

A necropolítica: filha de um capitalismo autodestrutivo

“Agora, eu me tornei a morte, o destruidor de mundos”. Quando o físico Oppenheimer observou o teste Trinity que confirmava o sucesso da bomba atômica, a frase anterior passou pela sua mente.

O mundo e seus demônios. O inferno de Dante em um único ato na forma de cogumelo nuclear. Alguns historiadores afirmam que este foi o acontecimento crucial que levou ao fim definitivo da Segunda Guerra Mundial. Outros defendem a posição de que se chegaria ao mesmo ponto de encontro sem que os Estados Unidos tivessem lançado as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki.

A morte parando a morte. O preço de derrotar Lúcifer foi compactuar com o pai da mentira. Em algum momento, a Segunda Guerra Mundial acabou? Colocou-se fim ao Holocausto? Pôs-se. Contudo, não foram derrubados os alicerces das estruturas de poder que perpetuaram tais crimes: o racismo, o medo, o ódio, o patriarcado, o capitalismo.

Agora, a humanidade vive com o risco nas costas, como diria Ulrich Beck, em Sociedade de Risco, tendo sempre presente a possibilidade de que tudo acabe, de que uma ameaça global mude a vida para sempre.

A sociedade atual é filha das câmaras de gás de Buchenwald e Auschwitz, das bombas atômicas queimando o solo do Japão, do Napalm caindo na população de Trang Bang.

O sociólogo Zygmunt Bauman dizia que o Holocausto não era um fato isolado e extraordinário que jamais poderia voltar a ocorrer. O Holocausto só era compreensível a partir das condições sociais da modernidade e do imperialismo. Tal atrocidade só poderia ser entendida observando a história do colonialismo europeu, a implantação da fria lógica otimizadora do capitalismo e sua revolução industrial/produtiva e, como reação a uma emancipação da classe operária, um surgimento do fascismo que buscava garantir os privilégios das elites capitalistas.

Não se rompeu com essas inquietantes sombras estendidas. Os palestinos sofrem um apartheid por parte dos sionistas israelenses, os imigrantes morrem no Mediterrâneo abandonados e agredidos pelo mundo “civilizado”. A Europa, paraíso da liberdade, volta a mergulhar em seus demônios.

A necropolítica avança junto com a extrema direita, o autoritarismo, o racismo, a misoginia e o antiecologismo. Os demônios incrustrados na matriz da modernidade capitalista são expostos por essas inércias mortuárias; alguns demônios que já foram derrotados. Talvez, desta vez, a humanidade deveria se assegurar de chegar aos seus alicerces.

“O que era realidade ontem, na medida em que seus pressupostos fundamentalmente não variam, é igualmente possível novamente hoje; que, então, o tempo do monstruoso não tenha sido mais do que um simples interregno” (Günther Anders).

 

Fonte: IHU OnLine

 

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