Jorge Majfud: O
capitalismo está morto
O
livre mercado sempre foi o dogma central de liberais e capitalistas, mas nunca
foi praticado pelos liberais, nem pelos capitalistas. Todas as teorias e
metáforas, como a “mão invisível do mercado” e os gráficos inúteis que alguns
economistas inventaram para fazer acreditar que a economia era uma ciência
dura, como a física, e não parte das ciências sociais, só funcionaram na
imaginação simplificada de seus autores e crentes.
Poucas
coisas são tão irreais e sem nenhum exemplo histórico concreto. Em todos os
casos, são propostas desprovidas das variáveis mais importantes da realidade. A
lei da oferta e da demanda, da liberdade dos mercados e o egoísmo individual
como motor do progresso coletivo não incluem a política, o poder imperial, as
manipulações monetárias e financeiras, muito menos as externalidades.
Segundo
esta visão lunática, em uma sociedade organizada pelo mercado não há acumulação
de poder, nem a destruição da própria liberdade do mercado, mesmo quando
liberais fundadores como Adam Smith, David Ricardo e mais recentemente Joseph
Schumpeter reconheceram essa perigosa fragilidade da maravilhosa teoria.
A
prosperidade e a riqueza acumuladas pelas maiores potências do mundo foram
possíveis ao impor essas regras só às colônias. Enquanto isso, o governo global
de corporações privadas continuava e globalizava o sistema escravista. O
próprio presidente Rutherford Hayes observou, algumas décadas após a abolição
da escravatura, que o governo estadunidense estava a serviço das corporações,
não do povo; que as leis eram aprovadas para proteger e beneficiá-las, não o
povo.
O
capitalismo surgiu na Inglaterra do século XVII, com a sacralização do direito
à propriedade privada acima de qualquer outro direito (incluindo o direito à
vida) e seu império impôs à força os interesses de suas companhias privadas,
como a East India Company, auxiliada por seu governo assim como, antes, a
monarquia havia auxiliado os senhores feudais a desapropriar os camponeses de
suas terras sob o novo sistema de comercialização da terra e do trabalho dos
deslocados.
Esse
processo foi radicalizado com o sistema financeiro. Do liberalismo clássico,
nada. O sistema global atual é tão oposto ao capitalismo como era o capitalismo
em relação ao seu antecessor, o feudalismo, razão pela qual o chamamos por
muitos anos de neofeudalismo.
O
capitalismo está morto. O que vemos é um zumbi que anda sem vida e assusta
apologistas e detratores. O que estamos vendo é a etapa pós-capitalista marcada
por crises econômicas e sociais cada vez mais crescentes e frequentes. A
ditadura dos cartéis das finanças é exercida através do capital virtual.
A
transferência de riqueza das classes médias e das neocolônias é realizada por
meio de (1) pagamento de dívidas alheias em dinheiro real e pagamento de
dívidas próprias em dinheiro criado do nada; (2) transferência de recursos das
classes trabalhadoras para financiar guerras eternas da indústria militar, nas
mãos de uma elite financeira; e (3) privatização de seus espólios e exigência
de compensações às nações destruídas que, por sua vez, vão se converter em
novos satélites.
Essa
tem sido, há séculos, a história ocidental: o extermínio do outro, algo que se
radicalizou com a ascensão dos impérios europeus, a partir do século XVI. A
chamada “Paz dos Cem Anos” (1815-1914) foi, segundo Polanyi, “um fenômeno
inaudito nos anais da civilização ocidental”. É claro que devemos considerar um
detalhe esquecido por esses títulos: nesse mesmo período, o imperialismo
europeu e estadunidense exportou quase toda a sua violência para as colônias na
Ásia e na África e para as repúblicas das bananas na América.
A
Ásia, da China à Índia, manteve-se por três séculos sem agressões militares, de
1598 a 1894. Se considerarmos a China, o período sem guerras expansionistas
soma 500 anos, desde a breve invasão do Vietnã, em 1406. Na Ásia e na África,
existiram culturas e civilizações baseadas no pacifismo e na cooperação, como é
o caso do Ubuntu, incluída a hoje tão insultada tradição islâmica na Espanha e
na África Ocidental.
O
Reino de Nri na África durou 1.000 anos e se destacou por seu pacifismo
radical, sua proibição da escravidão, sua propriedade comunal da terra e a
produção e seu comércio intenso e livre com outras nações. Tudo isso terminou
com a chegada do cristianismo e o mercado escravista dos marinheiros
portugueses.
Se
antes as finanças eram uma forma de administrar os capitais, agora, são os
capitais uma forma de administrar as finanças. Os donos desse jogo de extração
de valor, criando dinheiro do nada, pertencem a uma microelite. O poder dos
governos é simbólico, representam a grande distração na luta de antagônicos:
para os povos, os políticos são os demônios ou são os salvadores, mas quem têm
o poder são os bancos e as corporações.
Em
1790, o fundador da dinastia de banqueiros Rothschild, Mayer Rothschild, já
havia antecipado: “Deixe-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e não me
importo com quem escreve as leis”. Esse processo de abstração se radicalizou
com a criação do dinheiro digital nos bancos, pressionando várias vezes a tecla
“0”.
É
assim que todo o sistema de roubo faraônico fica suspenso apenas por um fio: a
fé. Se a partir de 1971, o dólar substituiu o padrão-ouro pela fé dos
detentores, ela ainda tinha uma vinculação com a realidade material: assumia-se
que o governo dos Estados Unidos iria sustentar seu valor por meio do valor
real de sua economia. Contudo, a economia dos Estados Unidos não só trocou
superávit por déficit, como produção por consumo.
No
entanto, um sistema baseado na fé precisa de templos, de sacerdotes e de
crentes: meios de comunicação, políticos, jornalistas e consumidores. Como o
dinheiro, a realidade é uma criação virtual. Só uma crise global poderia
mudá-la, e essa crise será uma crise de fé, uma conversão religiosa.
Como
qualquer templo religioso, o principal recurso dos meios de comunicação
obedientes é a inoculação do medo a um ente que é venerado como criador de
prosperidade e temido como destruidor da ordem mundial. Qualquer dúvida é
demonizada como artifício dos anjos das trevas que querem destruir o mundo com
suas perigosas ideias.
Há
muito tempo, o atual sistema de acumulação ultrapassou as próprias regras do
capitalismo. Se antes era necessário capital real roubado das colônias ou das
classes trabalhadoras para investi-lo e produzir produtos e serviços, hoje,
esse capital é um capital virtual. É o maior sistema de assalto da história.
Nunca antes a humanidade havia organizado um sistema de roubo global tão
perfeito, que não se restringe mais aos impérios, mas a uma microelite dentro desses
ex-impérios, que em sua maioria pode estar nos países desenvolvidos ou em
outros.
Capitalismo e morte: um olhar sobre a
necropolítica. Pot Alvaro Soler
A
necropolítica é um conceito que aponta como as inércias políticas de uma
sociedade se vinculam e tem como principal matriz a gestão da morte. Esse
contexto está ligado a uma crise climática que de forma cada vez mais evidente
encurrala todas as sociedades atuais, como também ao auge do autoritarismo
mundialmente e, por fim, ao recente contexto pandêmico, que serviu como janela
de apresentação para compreender até que ponto a necropolítica dirige o curso
social da humanidade.
Dessa
forma, a necropolítica se apresenta como um termo muito interessante para
entender, em escala macro, as inércias que a gestão dos governos e empresas
empregam sobre a população. Além disso, também é um termo necessário para
entender muitos dos processos de controle ocorridos durante a pandemia.
Fora
das teorias da conspiração e outras especulações, a pandemia foi um espelho
para olhar e entender lógicas de controle e poder, em larga escala, exercidas
pelos governos (também reações em microescala, dos cidadãos e suas interações
cotidianas).
Além
disso, a palavra necropolítica foi utilizada pelo historiador Achille Mbembe
para abarcar um conjunto de iniciativas e estratégias políticas que fazem
sentido no que diz respeito ao controle dos corpos biológicos em relação direta
com a morte. Ou seja, gerar um ambiente de controle onde a morte e suas
dimensões são a principal esfera utilitária para o domínio: “As formas
contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte obrigam alguns corpos a
permanecerem em diferentes estados situados entre a vida e a morte” (Achille
Mbembe).
Em
outras palavras, a necropolítica não seria diretamente exterminar a população,
mas gerar contextos de precariedade onde a exclusão e o abandono vão
encurralando segmentos populacionais e a morte vai ganhando terreno em suas
vidas. Seria algo parecido a tornar a vida de certos coletivos uma existência
projetada constantemente à precariedade mais absoluta. Uma precariedade que
desfaz os critérios de dignidade aos quais um ser humano deveria ter acesso
para viver.
Como
dizia a socióloga Saskia Sassen, passamos de um sistema baseado na inclusão
(pelo menos em parte) da população no mercado de consumo a um sistema
capitalista que busca excluir, em que sobra gente, e é aí que entra a
necropolítica.
A
necropolítica seria um tipo de biopolítica, conceito proveniente de Michel
Foucault, onde a gestão biológica em larga escala dos corpos, que caracteriza o
capitalismo, se inclina para a morte. Essa inércia tanatopolítica está presente
em diversos exemplos ao longo da história do capitalismo. Mais ainda, a
história da evolução do capitalismo pode ser entendida como a história da
necropolítica e sua ascensão.
O
Apartheid na África do Sul, o genocídio do povo palestino, a fome na Ásia e na
África, o Holocausto, as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki etc. A necropolítica
foi se expandindo e deixou de marcar o fio da história com eventos isolados
para se assentar como um risco global no século XXI, sobretudo depois da
pandemia. Ninguém mais está seguro, todos somos possíveis pacientes zero.
Um
risco globalizado, um medo globalizado e políticas mundializadas sobre esta
tessitura: as políticas sobre a morte. Em seu livro Dysphoria mundi, Paul B.
Preciado nos lembra que a história da necropolítica tem sua origem nas
indústrias da carne, onde o modelo produtivo de otimização da morte de animais
para obter pedaços de carne é adotado por Henry Ford para fabricar carros.
Essas
mesmas lógicas impregnarão todas as dimensões da vida social. Também serão uma
inspiração para a matança sistemática de pessoas no Holocausto, como nos
contará o sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra fundamental Modernidade e
Holocausto.
Desta
forma, voltando a Preciado, cabe destacar sua noção de necrobiopolítica. Ou
seja, ao conceito de biopolítica de Foucault, onde segundo o francês os corpos
eram otimizados para a vida para se tornarem mais produtivos e se obter seu
máximo rendimento no capitalismo moderno, é preciso acrescentar: “Por trás do
capitalismo petro-sexo-racial e de suas formas mutantes contemporâneas
(tecnopatriarcado racial, o capitalismo farmacopornográfico e cibernético), não
há tecnologia de poder biopolítico que não funcione ao mesmo tempo como
tecnologia da morte. Por isso, não falaremos mais de biopolítica, mas de
necrobiopolítica” (Paul B. Preciado).
O
final deste texto nos apresenta uma dualidade, algo que Preciado sem dúvida
odeia, mas pode ser útil para entender o que estamos enfrentando: a vida versus
a morte. É fácil de conceber, objetivamente é simples sustentar uma posição que
defenda uma política voltada para a vida, ainda que o capitalismo se empenhe em
virar a balança para a morte.
• O autoritarismo como contexto apropriado
para a necropolítica
O
autoritarismo é uma inércia política cada vez mais presente nos governos de
todo o mundo. Mesmo nas chamadas democracias liberais há um processo contínuo e
gradual de erosão dos valores democráticos que sustentavam essas sociedades. A
ascensão da extrema direita e a radicalização dos partidos conservadores na
Europa mergulharam o velho mundo em um contexto sócio-histórico preocupante,
que evoca paralelos inquietantes com os anos 1930.
As
grandes potências capitalistas, como Estados Unidos, Rússia e China, caminham
para postulados reacionários onde o coletivo LGTBIQ+, as minorias étnicas, as
mulheres e a classe trabalhadora sofrem medidas disciplinares de seus estados.
Na
América Latina, enfrenta-se dimensões semelhantes: a luta contra o narcotráfico
e a criminalidade está relacionada com a corrupção política e a ascensão de
governos populistas de direita e extrema direita. O exemplo mais recente de
autoritarismo desmedido pode ser encontrado em El Salvador, onde o presidente
Nayib Bukele empreendeu uma guerra impiedosa contra membros de gangues, grupos
violentos associados à criminalidade que causavam um autêntico terror social em
forma de agressões e assassinatos no país.
No
entanto, longe de solucionar o problema de uma forma coerente, Bukele
aproveitou essa situação para se colocar como líder autoritário, criando
prisões onde uma grande porcentagem da população supostamente vinculada às
gangues já foi presa. A realidade é que diversos relatórios apontam que pelo
menos um em cada seis prisioneiros é inocente. Além disso, foram registradas
mortes e torturas, com essas prisões sendo comparadas a campos de concentração,
em um recente relatório da ONU.
O
contexto descrito é preocupante, pois facilita o surgimento e a implantação da
necropolítica. O autoritarismo gera um processo de desumanização da população,
em que deixa de ter uma vida para se tornar um futuro cadáver. Exemplos como o
de Bukele não são os únicos, nem os mais terríveis, basta observar como os
países supostamente civilizados deixam morrer dezenas de pessoas no
Mediterrâneo, ou como na Ásia os fundamentalismos islâmicos minam a liberdade
de todos os cidadãos, em especial das mulheres.
O
capitalismo entrou na fase em que se normalizou gerir parte da população como
resíduos, danos colaterais do imparável e imprescindível deus do capital. Há
muito mais exemplos do que os mencionados, como as imagens de crianças
trancadas em jaulas na fronteira entre os Estados Unidos e o México. E as pessoas
da terceira idade abandonadas à própria sorte na pandemia, após ações de
desprezo dos governos em países como Espanha, Brasil, Reino Unido e o próprio
Estados Unidos.
Também
é possível citar a negação das vacinas nos países pobres, sobretudo os
localizados na África, enquanto nos países ricos foram fornecidas duas ou três
doses. E é possível fazer referência aos ecossistemas esgotados pela exploração
contínua do sistema capitalista, com pessoas afetadas e mais ainda as espécies
animais condenadas à morte. A necropolítica está em todas as partes.
A
necropolítica: filha de um capitalismo autodestrutivo
“Agora,
eu me tornei a morte, o destruidor de mundos”. Quando o físico Oppenheimer
observou o teste Trinity que confirmava o sucesso da bomba atômica, a frase anterior
passou pela sua mente.
O
mundo e seus demônios. O inferno de Dante em um único ato na forma de cogumelo
nuclear. Alguns historiadores afirmam que este foi o acontecimento crucial que
levou ao fim definitivo da Segunda Guerra Mundial. Outros defendem a posição de
que se chegaria ao mesmo ponto de encontro sem que os Estados Unidos tivessem
lançado as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki.
A
morte parando a morte. O preço de derrotar Lúcifer foi compactuar com o pai da
mentira. Em algum momento, a Segunda Guerra Mundial acabou? Colocou-se fim ao
Holocausto? Pôs-se. Contudo, não foram derrubados os alicerces das estruturas
de poder que perpetuaram tais crimes: o racismo, o medo, o ódio, o patriarcado,
o capitalismo.
Agora,
a humanidade vive com o risco nas costas, como diria Ulrich Beck, em Sociedade
de Risco, tendo sempre presente a possibilidade de que tudo acabe, de que uma
ameaça global mude a vida para sempre.
A
sociedade atual é filha das câmaras de gás de Buchenwald e Auschwitz, das
bombas atômicas queimando o solo do Japão, do Napalm caindo na população de
Trang Bang.
O
sociólogo Zygmunt Bauman dizia que o Holocausto não era um fato isolado e
extraordinário que jamais poderia voltar a ocorrer. O Holocausto só era
compreensível a partir das condições sociais da modernidade e do imperialismo.
Tal atrocidade só poderia ser entendida observando a história do colonialismo
europeu, a implantação da fria lógica otimizadora do capitalismo e sua
revolução industrial/produtiva e, como reação a uma emancipação da classe
operária, um surgimento do fascismo que buscava garantir os privilégios das
elites capitalistas.
Não
se rompeu com essas inquietantes sombras estendidas. Os palestinos sofrem um
apartheid por parte dos sionistas israelenses, os imigrantes morrem no
Mediterrâneo abandonados e agredidos pelo mundo “civilizado”. A Europa, paraíso
da liberdade, volta a mergulhar em seus demônios.
A
necropolítica avança junto com a extrema direita, o autoritarismo, o racismo, a
misoginia e o antiecologismo. Os demônios incrustrados na matriz da modernidade
capitalista são expostos por essas inércias mortuárias; alguns demônios que já
foram derrotados. Talvez, desta vez, a humanidade deveria se assegurar de
chegar aos seus alicerces.
“O
que era realidade ontem, na medida em que seus pressupostos fundamentalmente
não variam, é igualmente possível novamente hoje; que, então, o tempo do
monstruoso não tenha sido mais do que um simples interregno” (Günther Anders).
Fonte:
IHU OnLine
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