Condomínio na ilha
de Boipeba aquece ocupação da Mata Atlântica
Comunidades
tradicionais e ambientes naturais em terra e mar podem ser os mais prejudicados
pela construção de um projeto turístico-imobiliário privado na ilha de Boipeba.
A empreitada pode azeitar a especulação de terras e a aprovação de licenças
similares no litoral da Bahia.
O
empreendimento Ponta dos Castelhanos foi licenciado em março pelo governo
baiano numa fazenda que toma quase 20% de Boipeba, ou 1.651 hectares. A ilha é
uma das porções mais preservadas da Mata Atlântica e abriga povoados
tradicionais de quilombolas, pescadores e extrativistas.
“Em
mais de 500 anos de ocupação houve uma devastação sem precedentes da Mata
Atlântica, mas ela foi mantida pela ocupação tradicional do litoral sul da
Bahia”, afirma Eduardo Barcelos, do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia (IF Baiano), ligado ao Ministério da Educação.
Uma
de suas guardiãs é Rosângela Maria da Paixão Santos, a Dolinha. Ela cresceu
catando mariscos e pescando com a família, atividades mantidas pelos filhos e
marido. Hoje todos manejam uma barraca na praia do Bainema, em Boipeba, buscada
por turistas brasileiros e do exterior.
“Sempre
sobrevivi do mangue. O mangue era a minha firma [empresa onde trabalhava], vive
aqui no meu coração. Eu aprendi a respeitar o ser humano, aprendi a respeitar a
natureza e a trazer para casa o alimento, tudo através do mangue. Ele é um
‘ser’ muito importante”, declara Dolinha.
As
ilhas de Tinharé e Boipeba abrigam a maior faixa contínua de restinga arbórea
do litoral do Baixo Sul baiano e cerca de 36 mil ha de manguezais, que protegem
o clima e garantem a renovação da vida marinha, mesmo de espécies que
interessam à pesca comercial.
Todavia,
a Bahia é um dos líderes nacionais em casos de violência no campo e no desmate
da Mata Atlântica. Restam apenas 196 mil ha dos 770 mil ha originais no litoral
do Baixo Sul do estado. A redução é superior a 70% na vegetação nativa da
região. Os dados são do IF Baiano.
• Latifúndios costeiros
Barcelos,
do IF Baiano, avalia que a decaída ecológica da região é ligada a uma “corrida
pela terra” para a formação de “latifúndios costeiros”. Seus levantamentos
apontam que 16 mil ha do território são concentrados em 18 imóveis. Isso ocorre
muitas vezes pela privatização de terras públicas, conta.
“A
experiência brasileira mostra que onde esses empreendimentos chegaram, o solo
foi fatiado, a Mata Atlântica foi devastada, comunidades foram divididas,
expulsas e submetidas à insegurança alimentar [pela privação de fontes de renda
e alimentos]”, destaca o pesquisador.
O
cenário que se acerca de Boipeba assusta quem tem a vida calejada pela
discriminação histórica que o Brasil impõe a populações negras e indígenas, a
quem não tem dinheiro ou padrinhos políticos para lhe proteger. É o caso do
quilombola Benedito da Paixão Santos, o Bio.
“Fui
escravo demais dos outros e hoje graças a Deus eu trabalho para mim mesmo, com
a pesca e o turismo. Sempre estou aqui para apresentar o de melhor, tanto pra
minha comunidades e pros amigos que visitam a nossa ilha”, ressalta. Mas as
perspectivas para essas pessoas não são animadoras.
Os
especialistas ouvidos por ((o))eco avaliam que uma consolidação do Ponta dos
Castelhanos estimulará iniciativas semelhantes em outras áreas preservadas do
litoral. O projeto foi licenciado em março deste ano pelo Instituto do Meio
Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) da Bahia.
Doutora
em Biologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Cacilda Rocha alerta
que eliminar florestas, restingas e mangues da Mata Atlântica prejudicará
ambientes preservados em terra, costa e mar, bem como as populações que deles
sobrevivem.
“Isso
agravará processos erosivos e das chuvas nesses terrenos arenosos. E isso tudo
pode ser carreado para o ambiente marinho da ilha, onde temos recifes com 16
espécies de corais”, descreve a cientista e moradora da ilha de Boipeba.
• Licença contestada
A
licença inicial do Inema ao projeto prevê obras em menos de 2% da área da
fazenda e desmate de 3 ha (0,17%) dos 1.651 ha comprados em 2008 pela Mangaba
Cultivo de Coco. O grupo tem sócios como José Roberto Marinho, herdeiro da Rede
Globo, e Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central.
Mas,
cálculos do IF Baiano apontam que a ocupação será de ao menos 347 ha. Serão 201
ha de loteamentos, outros 88 ha para pousadas, 22 ha da pista de pouso e 36 ha
para residências. O consumo de água das estruturas será cinco vezes maior que o
da comunidade de Cova da Onça, no sul de Boipeba.
“O
projeto impactará matas, restingas geológicas, áreas de recarga de água,campos
de mangaba [fruta nativa], de mussununga e manguezais”, avisa Eduardo Barcelos,
do IF Baiano.
Conforme
o cientista, a licença estadual dribla diretrizes federais para conservar a
biodiversidade e não pesa impactos cumulativos de outros projetos na segurança
alimentar das comunidades tradicionais, que pescam, catam alimentos e operam
turismo, inclusive na área do projeto.
Matriarca
do samba de raíz em Boipeba, Jenice Santos pede muita cautela antes que
moradores e autoridades públicas dêem sinal verde definitivo ao empreendimento.
“Fica esperto, abre o olho e pare para analisar, que é para depois não chorar”,
avisa.
“Eu
sou nativa de Boipeba, vivi muitos anos pescando, tirando polvo, metendo o
braço no buraco do caranguejo, pescando naquele rio do Catu. Então como é que
hoje eu vou aceitar que as pessoas vêm de fora querer poluir um lugar tão
bonito”, reclama.
• Patrimônio federal
A
licença do governo baiano ao projeto Ponta dos Castelhanos foi abalada no
início de abril, quando a Secretaria de Patrimônio da União (SPU)
suspendeu a transferência de
titularidade das terras federais à Mangaba Cultivo de Coco. O repasse ocorreu
no governo de Jair Bolsonaro, em abril de 2022.
O
bloqueio vale por 90 dias. Até lá, a empresa não pode realizar “qualquer obra
ou benfeitoria” no “resort”, determina o governo federal, e a SPU emitirá um
parecer definitivo sobre o imóvel. Se for confirmado como patrimônio da União,
a licença do Inema pode ser derrubada.
“A
licença perde completamente a validade. A partir de estudos, o Ministério
Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União já fizeram essa
indicação. Infelizmente o Inema não seguiu essa orientação”, lamenta o deputado
estadual Hilton Coelho (PSOL-BA).
Ao
mesmo tempo, uma ação do MPF questiona os prejuízos do empreendimento às
comunidades locais, que têm preferência no uso das terras da União. “A área não
é propriedade particular, ela é pública. Ela é muito pública”, diz o procurador
federal Ramiro Rockenbach.
“Não
podemos permitir neste país nenhum tipo de fraude, nenhum tipo de grilagem de
terra pública. É proibido que se faça um regime de ocupação quando uma área tem
interesse ambiental, quando uma área é ocupada por comunidades tradicionais”,
salienta.
Professor
de Direito na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e membro do Conselho
Gestor da APA Tinharé-Boipeba, Leonardo Fiusa denuncia que grandes empresas,
latifundiários, especuladores de terras e até agentes de governos tomam terras
públicas no litoral baiano.
“É
uma avalanche de empreendimentos, de cercamentos e de desmatamentos afetando o
modo de vida das famílias tradicionais e o meio ambiente”, destaca o
pesquisador, também membro do Observatório Socioterritorial do Baixo Sul da
Bahia (OBSUL).
• Vidas em jogo
Ao
mesmo tempo em que ameaça distribuir prejuízos socioambientais, o Ponta dos
Castelhanos é visto como uma possibilidade de mudança de vida por moradores de
Boipeba, negligenciados por políticas públicas para geração de empregos e
renda, de saúde e de educação.
A
esperança é mais forte no povoado de São Sebastião, ou Cova da Onça, rodeado
pela fazenda onde pode ser implantado o projeto. “Muitos alunos desistem de
estudar porque não tem perspectiva de futuro”, lamenta a pedagoga Taiane
Magalhães.
“As
dificuldades que a gente vem enfrentando fizeram a gente acordar e correr atrás
do empreendimento, mas ao mesmo tempo em que queremos o desenvolvimento para
nossas comunidades, queremos que [o projeto] ocorra de forma sustentável e com
nossos direitos respeitados”, diz.
O
avanço de empreendimentos privados no litoral sul baiano ocorre também num
cenário de criminalidade crescente. Narcotraficantes já monitoram a circulação
de pessoas e veículos nas vias de terra e areia nas ilhas de Tinharé e de
Boipeba.
Uma
fonte que não será identificada para sua segurança confirmou a ((o))eco
pressões crescentes de marginais sobre as populações tradicionais. “Isso já
está acontecendo, já está muito forte, até impondo uma ‘lei do silêncio’ nas
comunidades”, revela. A situação é assumida pelo poder público.
“Temos
três polos empregatícios em Cairu. Primeiro é o turismo, graças ao Morro de São
Paulo, segundo é a Prefeitura e o terceiro é o crime organizado”, reconheceu o
vereador Vereador Diego Meireles (DEM), presidente da Câmara Municipal de
Cairu, onde estão as ilhas.
Outro
lado
As
fontes desta reportagem foram ouvidas por ((o))eco, em parceria com Mongabay
Brasil, em Boipeba e numa audiência pública na Assembleia Legislativa da Bahia,
em 18 de abril. José Roberto Marinho e Armínio Fraga não se pronunciaram.
<<<<
A posição da Mangaba Cultivo de Coco foi recebida por email e pode ser
conferida abaixo.
O
projeto atende a todos os requisitos legais e regulamentares, e o Inema definiu
59 condicionantes que buscam evitar qualquer inadequação ou prejuízo ambiental.
Dentre elas, está previsto que, entre os 69 lotes do projeto, dois deles serão
destinados à comunidade para a construção de um Centro de Cultura e Capacitação
(CECC), campo de futebol, equipamento esportivo e estação de tratamento de
resíduos. Tais condicionantes garantem ainda o livre acesso para atividades
extrativistas, respeitando o limite do manguezal. Além disso, a comunidade terá
ganhos imediatos, como um projeto integrado de saneamento básico e
infraestrutura pública comunitária, preservação de fauna e flora, programas de
educação ambiental, implementação de um programa de gerenciamento dos resíduos
da comunidade de Cova da Onça, que contará com coleta seletiva e uma usina de
tratamento de lixo. Isso sem falar em um programa de capacitação e na geração
de empregos diretos para uma parte da população que, ao longo dos anos,
permanece em situação vulnerável.
O
projeto não prevê a construção de nenhum campo de golfe. As construções serão
eventualmente realizadas em menos de 2% da área total, com supressão vegetal em
apenas 0,17% (e sua devida compensação determinada pela Lei 11.428 de 2006) de
1.651 hectares adquiridos pelo grupo em 2008, o que garante a preservação
naturalmente da APA das Ilhas de Tinharé-Boipeba. Para além do cumprimento das
condicionantes e medidas compensatórias, o projeto ocupará uma área menor do que
determinam as regras de zoneamento da APA Tinharé Boipeba, oferecendo poucos
lotes, entre 20 e 80 mil metros quadrados cada, para evitar um alto
adensamento. Ressalte-se que esses terrenos previstos para a construção são
compostos essencialmente por coqueirais. Ao contrário do que tem sido também
divulgado, será garantido o acesso das comunidades a todos os caminhos
relacionados com a pesca e coleta de mangaba e mariscos. Esses caminhos serão
inclusive melhorados, para que fique ainda mais fácil, por exemplo, alcançar o
Rio Catu, os portos do Almendeiro
Grande, da Ribanceira, do Coqueiro e do Campo do Jogador. Não haverá muros nem cercas.
Pelas
nossas estimativas, considerando os ajustes realizados no projeto inicial,
serão gerados aproximadamente 1500 empregos, na alta estação, e cerca de 700,
na baixa estação.
A
área está localizada em terreno de Marinha, que são considerados bens da União
(Art. 20, VII, CRFB/88). Foi pleiteado, em 2007, pelo antigo proprietário, o
aforamento gratuito, conforme Artigo 64 do Decreto-lei número 9760/1946, que
trata as questões de transferência de domínio útil. Há, inclusive, documentação que considera essa área privada.
Existe farto registro de sua cadeia sucessória. Compramos o terreno em 2008 e,
como legítimos proprietários, ocupamos legalmente essa área e continuamos
pagando a taxa de ocupação (Artigo 127 do Decreto-lei 9760/1946), que já vinha
sendo paga regularmente há muitos anos. Diversos documentos asseguram a posse
do imóvel Fazenda Ponta dos Castelhanos pelos sócios da Mangaba Cultivo de Coco
LTDA. Inicialmente, adquiriu-se direito de ocupação do antigo titular ainda em
2008, conforme escritura pública de compra e venda devidamente registrada em
Cartório de Registro de Imóveis de Taperoá (BA). Além disso, há, ainda, a
adequada Certidão de Autorização para Transferência (CAT), documento expedido
pela própria SPU. Acrescente-se que o pedido de transferência teve todos os
seus trâmites administrativos encerrados em 2022, quando passou a constar como
titular um dos sócios.
Constatamos,
por meio de diálogos e escutas junto às comunidades locais, que uma ampla maioria da população da Ilha de
Boipeba é favorável ao desenvolvimento sustentável da região. Essa posição foi
inclusive referendada por uma abaixo assinado realizado pela comunidade de Cova
da Onça em 2019, com mais de 300 assinaturas. O projeto vai promover uma
importante transformação social, com melhoria da qualidade de vida em
comunidades com as quais foi estabelecido um diálogo intenso. Desde o início
das tratativas com o Inema, em 2010, a Mangaba participou de diversas
audiências públicas com essas comunidades, visando esclarecer as informações do
projeto e os impactos socioambientais positivos para a região, bem como
assegurar a mitigação e a devida ação compensatória relativa a quaisquer
intervenções no território, para implementação do projeto. Antes de ser aprovado pelo Inema, o projeto
foi submetido à manifestação de diversos órgãos, como o IPHAN, Fundação Palmares, Superintendência do Patrimônio da União
(SPU), Prefeitura de Cairu e Ministério Público estadual. Além de todas as
audiências públicas realizadas ao longo dos anos, ocorreram em 2014, por exemplo, sete reuniões
com as comunidades: Barra dos Carvalhos (9/9); Fazenda Cova da Onça (10/9); Sede
do município de Cairu (10/9, uma reunião; e em 16/9 outras duas reuniões); Cova
da Onça (17/9); Barra dos Carvalhos (23/9).
A
empresa Mangaba Cultivo de Coco sempre primou pelo cumprimento irrestrito da
legislação e do devido processo legal em relação ao projeto Fazenda Ponta dos
Castelhanos. Com base nessas diretrizes a empresa buscará fazer os
esclarecimentos necessários e demonstrar a regularidade da ocupação da área
pela Mangaba, esperando que tudo seja resolvido o mais rápido possível, em
observância ao direito de todos. Vamos aguardar o trâmite legal, fazendo todos
os esclarecimentos necessários em audiências públicas, bem como aos órgãos
fiscalizadores, às comunidades e aos poderes institucionais do governo federal,
estadual e do município de Cairu.
Fonte:
Mongabay
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