Por que o tempo só
anda para frente, nunca para trás
A flecha do tempo começou sua jornada no Big Bang e,
no dia em que o universo morrer, não haverá mais passado e futuro. Mas, até lá,
o que impulsiona o tempo sempre para frente?
Quando
Isaac Newton publicou seus famosos Princípios Matemáticos da Filosofia
Natural em 1687, suas três elegantes leis do movimento responderam uma
série de questões. Sem elas, não teríamos conseguido levar pessoas à Lua 282
anos depois.
Mas
essas leis trouxeram um novo problema para a física, que só foi totalmente
percebido séculos depois de Newton e continua intrigando os cosmólogos até
hoje.
A
questão é que as leis de Newton funcionam duas vezes mais do que poderíamos
esperar.
Elas
descrevem o mundo em que vivemos todos os dias — o mundo das pessoas, o
movimento dos ponteiros do relógio e até a queda apócrifa de certas maçãs — mas
também representam muito bem um mundo no qual as pessoas andam para trás, os
relógios andam no sentido inverso, da tarde para a manhã, e as frutas sobem do
chão para os seus galhos na árvore.
"A
característica interessante das leis de Newton, que somente foi apreciada muito
mais tarde, é que elas não fazem diferença entre o passado e o futuro",
afirma o físico teórico e filósofo americano Sean Carroll, que discute a
natureza do tempo no seu livro mais recente, The Biggest Ideas in the
Universe ("As maiores ideias do universo", em tradução
literal).
"Mas
a direcionalidade do tempo é a sua característica mais óbvia, certo?",
questiona ele. "Eu tenho fotografias do passado, mas não tenho fotografias
do futuro."
E
o problema não se restringe às teorias de Newton, de séculos atrás.
Virtualmente
todas as teorias básicas da física desde então funcionaram tão bem quando
avançamos no tempo quanto no sentido inverso, segundo o físico italiano Carlo
Rovelli, do Centro de Física Teórica de Marselha, na França. Ele é autor de
vários livros, incluindo A Ordem do Tempo (Ed. Objetiva,
2018).
"Desde
Newton, passando pela teoria do eletromagnetismo de James Clerk Maxwell, pelos
trabalhos de Einstein, até a mecânica quântica, a teoria do campo quântico, a
relatividade geral e até a gravidade quântica, não há distinção entre o passado
e o futuro", afirma Rovelli.
"O
que é uma surpresa, já que a distinção é muito evidente para todos nós. Se você
fizer um filme, fica óbvio qual é o caminho do futuro e qual é o passado."
Parte
da resposta está no Big Bang, cerca de 14 bilhões de anos atrás. Outra
indicação vem do extremo oposto - a eventual morte do universo.
Mas,
antes de embarcar nessa jornada épica, para frente e para trás, ao longo da
flecha do tempo do universo, vale a pena fazer uma parada em 1865, quando a
primeira lei da física verdadeiramente relacionada à direção do tempo chegou
deslizando pelos trilhos da Revolução Industrial.
·
O acúmulo de vapor
No
século 19, enquanto as pás retiravam o carvão para alimentar as fornalhas que
geravam a energia do vapor, cientistas e engenheiros tentavam desenvolver
motores melhores. Para isso, eles adotaram um conjunto de princípios que
descreviam a relação entre o calor, a energia e o movimento.
Esses
princípios ficaram conhecidos como as leis da termodinâmica.
Em
1865, na Alemanha, o físico Rudolf Clausius (1822-1888) afirmou que o calor não
pode passar de um corpo frio para um corpo quente, a menos que haja alguma
mudança em torno deles. Clausius criou o conceito que chamou de
"entropia" para medir esse comportamento do calor.
Outra
forma de dizer que o calor nunca flui de um corpo frio para outro quente é
dizer "a entropia apenas aumenta, nunca diminui".
Como
Rovelli salienta em A Ordem do Tempo, esta é a única lei básica da
física que pode separar o passado do futuro. Uma bola pode rolar montanha
abaixo ou ser chutada de volta para o pico, mas o calor não pode fluir do frio
para o quente.
Para
ilustrar a questão, Rovelli deixa cair sua caneta de uma mão para a outra.
"A
razão por que ela para na minha mão é porque ela tem um pouco de energia e a
energia é transformada em calor e aquece a minha mão", explica ele.
"E a fricção impede o seu retorno. Caso contrário, se não houvesse calor,
ela ficaria pulando para sempre e eu não diferenciaria o passado do futuro."
Até
aqui, tudo bem. Mas agora começamos a analisar o calor em nível molecular.
A
diferença entre os objetos quentes e os frios é a agitação das moléculas. Em um
motor a vapor quente, as moléculas de água estão muito agitadas, movendo-se e
colidindo umas com as outras rapidamente. Essas mesmas moléculas de águas ficam
menos agitadas quando se condensam sobre uma vidraça.
Mas
aqui é que mora o problema. Quando você amplia a imagem até o nível, digamos,
em que uma molécula de água colide e ricocheteia em outra, a flecha do tempo
desaparece.
Se
você assistisse a um vídeo microscópico dessa colisão e quisesse retrocedê-lo,
não ficaria óbvio qual era o sentido do vídeo, se para frente ou para trás. Na
menor escala possível, o fenômeno que produz calor — a colisão de moléculas — é
simétrico no tempo.
Isso
significa que a flecha do tempo do passado para o futuro surge apenas quando
você se afasta um passo do mundo microscópico em direção ao macroscópico. Isso
foi observado pela primeira vez pelo físico e filósofo austríaco Ludwig
Boltzmann (1844-1906).
"A
direção do tempo é consequência do fato de que olhamos para as coisas grandes e
não para os detalhes", afirma Rovelli. "Desse passo, da visão
microscópica fundamental do mundo para a descrição aproximada e grosseira do mundo
macroscópico, é que vem a direção do tempo."
"Não
é que o mundo seja fundamentalmente orientado no espaço e no tempo",
explica Rovelli.
A
questão é que, quando olhamos à nossa volta, vemos uma direção na qual os
objetos do dia a dia, com tamanho médio, têm mais entropia - como a maçã madura
que cai da árvore ou as cartas de um baralho.
A
entropia, de fato, parece estar indissociavelmente ligada à direção do tempo,
mas parece um tanto surpreendente — talvez até desconcertante — que a única lei
da física que possui forte direcionalidade do tempo perca essa característica
quando você observa as coisas muito pequenas.
"O
que é a entropia?", questiona Rovelli. "Entropia é simplesmente o
quanto nós nos esquecemos da microfísica, o quanto nos esquecemos das moléculas."
·
A entropia e o aumento da desordem
Quando
você compra um baralho, as cartas costumam estar em ordem. Cada naipe é reunido
e as cartas seguem a ordem do ás até o rei (ou o contrário). Mas, quando você o
embaralha bem pela primeira vez, o que você tem? Provavelmente, um baralho
completamente fora de ordem.
Agora,
embaralhe uma segunda vez. O que podemos esperar agora? Aposto que não será
"o baralho em perfeita ordem que comprei originalmente". A melhor
resposta pode ser "um baralho completamente fora de ordem, apenas uma
confusão diferente da que eu tinha antes".
Uma
forma de pensar na entropia é considerá-la uma medida da desordem. O baralho
novo tem baixa entropia. Quando você o embaralha, você aumenta a entropia do
sistema, ou sua aparente aleatoriedade.
Da
mesma forma, quando um objeto se aquece, sua entropia aumenta. Em um bloco de
gelo, as moléculas de água são intimamente reunidas e ordenadas. À medida que o
gelo se aquece e derrete, tornando-se água no estado líquido, as moléculas se
movimentam umas contra as outras com mais liberdade — elas estão em maior
desordem. E, no vapor, as moléculas de água estão ainda mais desordenadas.
·
O início e o fim
Se
existe uma flecha do tempo, de onde ela veio, para começar?
"A
resposta está ligada ao início do universo", segundo Carroll. "Porque
o Big Bang tinha baixa entropia. E, até hoje, 14 bilhões de anos depois,
estamos enfrentando as consequências daquele tsunami que começou perto do Big
Bang. É por isso, que, para nós, o tempo tem uma direção."
Na
verdade, a entropia extraordinariamente baixa do universo durante o Big Bang é,
ao mesmo tempo, uma resposta e uma enorme pergunta.
"A
questão que menos entendemos sobre a natureza do tempo é por que o Big Bang
tinha baixa entropia e por que o universo, no seu começo, era daquela
forma", explica Carroll.
"E
acho, sinceramente, como cosmólogo profissional, que meus colegas cosmólogos
desistiram de responder a essa questão. Eles realmente não levam esse problema
a sério."
Carroll
publicou um estudo em 2004, em conjunto com sua colega Jennifer Chen, tentando
explicar por que o universo tinha entropia tão baixa perto do Big Bang, em vez
de simplesmente aceitar que esta fosse simplesmente a realidade.
"Existem
muitas falhas na teoria, muitos aspectos que não foram totalmente respondidos.
Mas também acho que ela é, de longe, a melhor teoria do mercado", afirma
Carroll. "Ela não engana ninguém."
Já
outros cosmólogos concordam que, de fato, está na hora de pensar seriamente na
baixa entropia das origens do universo.
"A
probabilidade de que o nosso universo atual tivesse condições iniciais desta
natureza, e não de qualquer outra forma, é de cerca de uma em 10 à 10ª à 124ª
potência [1:10^10^124]", segundo Marina Cortês.
Outra
forma de indicar esse número é dizer que o evento tinha probabilidade de
ocorrer de 0,00...01 - omitindo 10^(10^124) zeros, um número tão grande que é
difícil de expressar na matemática convencional.
"Acho
que posso dizer com certeza que este é o maior número da física moderna, fora
da filosofia ou da matemática", afirma ela.
Por
isso, considerar simplesmente essas improváveis origens com baixa entropia como
uma certeza é um caso típico de "varrer o problema para baixo do
tapete", segundo Cortês.
"Se
os físicos continuarem fazendo isso, em breve haverá uma pilha enorme embaixo
do tapete. Nós, cosmólogos, precisamos explicar por que o tempo só se move para
frente."
Embora
ainda não saibamos o porquê, a baixa entropia do universo no passado é uma
origem plausível da flecha do tempo. Como a maioria das coisas que têm um
começo, a flecha também terá seu fim. E a primeira pessoa a identificar esta
questão, novamente, foi o físico austríaco Ludwig Boltzmann.
"Boltzmann
pensou, 'ah, a entropia está crescendo no universo e talvez, em algum momento,
ela chegue ao nível máximo'", explica Rovelli. Nesse momento, o calor
estaria distribuído de forma homogênea em todo o universo, sem fluir mais de um
lugar para outro.
Não
haveria energia útil disponível para fazer trabalhos. Em outras palavras, quase
nada de interessante estaria acontecendo em todo o universo.
Como
descreve a astrofísica Katie Mack, "à medida que este processo continua,
tudo se degrada tanto que sobra apenas o calor residual de tudo o que já
existiu no universo". Este destino é conhecido como a morte térmica do
universo, ou a morte pelo calor.
"As
estrelas irão parar de queimar e nada mais irá acontecer. Não haverá nada,
exceto pequenas flutuações térmicas", afirma Rovelli.
"Suponha
que isso aconteça — e não sabemos ao certo se irá acontecer, mas suponha que
sim", prossegue ele. "Devemos dizer que ali não existe a flecha do
tempo? É claro que não existe flecha do tempo, já que todos os fenômenos que
aconteceram em uma direção também poderiam ocorrer para um sentido ou para o
outro. Nada irá diferenciar as duas direções do tempo."
Isso
talvez seja o mais estranho sobre a flecha do tempo: "Ela dura apenas por
pouco tempo", afirma Carroll.
·
Qual será o fim do universo?
A
morte pelo calor não é a única forma em que o universo como o conhecemos poderá
encontrar o seu fim. Diversas outras possibilidades já foram propostas,
incluindo o ponto de virada e outros modelos cíclicos.
Mas
a morte térmica é, de longe, a principal candidata, segundo o cosmólogo Sean
Carroll. "Ela não é definitiva, de nenhuma forma, mas é a extrapolação
mais simples que conhecemos, já que não precisamos nos esforçar muito para
chegar até ela", explica ele.
Tudo
o que o universo precisa fazer para chegar à morte térmica é continuar
exatamente o que está fazendo, indefinidamente. "Não há razão para que ele
pare algum dia", segundo Carroll.
É
muito difícil imaginar o que poderá acontecer se, algum dia, a flecha do tempo
desaparecer.
"Nós
produzimos calor nos nossos neurônios quando pensamos", afirma Rovelli.
"Pensar é um processo no qual o neurônio precisa de entropia para
trabalhar. A nossa sensação da passagem de tempo é apenas o que a entropia faz
com o nosso cérebro."
A
flecha do tempo decorrente da entropia nos leva para muito mais perto de
compreender por que o tempo só anda para frente.
Mas
pode haver outras flechas do tempo além desta. Na verdade, provavelmente existe
uma enorme quantidade de flechas do tempo levando do passado para o futuro. E,
para compreendê-las, precisamos sair da física para entrar na filosofia.
·
O tempo humano
As
formas como compreendemos e experimentamos intuitivamente o tempo precisam ser
levadas a sério, segundo a professora de filosofia Jenann Ismael, da
Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos.
Se
você analisar sua própria experiência com o tempo, poderá conseguir reconhecer
rapidamente diversas flechas psicológicas que fazem parte central da
experiência humana. Uma dessas flechas é o que Ismael chama de
"fluxo".
Como
uma direção clara do tempo surge dessas descrições do universo, se todas elas
omitem sua própria flecha do tempo? Como diz a astrofísica Marina Cortês, da
Universidade de Lisboa, em Portugal, "existem muitas implicações que
começam com levar a sério a questão 'por que o tempo passa?'".
"Se
você olhar para o mundo, você não verá uma representação puramente estática do
estado instantâneo do mundo", afirma ela, como em um filme composto de
diversos quadros estáticos por segundo. "Nós vemos diretamente que o mundo
está mudando."
Esta
experiência do fluxo do tempo está enraizada na nossa percepção. "A visão
não é uma câmera cinematográfica", afirma Ismael.
"Na
verdade, o que acontece é que o seu cérebro está coletando informações sobre um
certo período de tempo. Ele integra essas informações, de forma que, em um dado
momento, o que você vê é uma computação feita pelo cérebro."
"Por
isso, você não vê apenas que as coisas estão se movendo, mas sim a velocidade
desse movimento, a direção desse movimento. Todo o tempo, o seu cérebro está
integrando informações ao longo de intervalos de tempo e fornecendo a você o
resultado. Por isso, de certa forma, você vê o tempo", explica ela.
Existe
uma segunda característica do tempo que Ismael diferencia do fluxo e chama de
"passagem". A ideia da passagem está intimamente ligada a
experiências orientadas pelo tempo, como a memória e a antecipação.
Podemos
tomar o exemplo do casamento, ou de qualquer outro evento da vida que se
aguarda com muita antecipação. Nossa experiência desses momentos tem muitas
camadas, que vão desde as etapas turbulentas de planejamento até a intensidade
do dia propriamente dito e as lembranças que permanecem conosco por anos.
Existe
uma direcionalidade para essas diferentes experiências. A forma em que
antecipamos um evento no futuro é fundamentalmente diferente de como nos
lembramos dele depois que ele passa.
"Tudo
isso é parte do que eu considero a experiência de passagem, uma ideia de que
experimentamos todos os eventos como antecipados do passado, experimentados no
presente e relembrados em retrospectiva", segundo Ismael. "Sua
densidade é meio que proustiana."
Estes
aspectos da direcionalidade do tempo psicológico — além de muitos outros, como
a sensação de abertura que temos sobre o futuro, mas não sobre o passado —
podem ter suas raízes traçadas até a flecha do tempo que surgiu com a Revolução
Industrial.
"Acho
que tudo se resume à entropia", afirma Ismael. "Não vejo motivo para
pensar agora que as setas do tempo envolvidas na psicologia humana não estejam,
em última instância, enraizadas na flecha entrópica."
"Mas
é uma questão empírica. Não vejo razão para que este projeto de compreender a
experiência humana com relação à linha entrópica possa falhar", segundo a
professora.
Sean
Carroll espera realizar esse projeto, tomando diversas características da nossa
experiência com o tempo e relacionando-as à entropia. Seu primeiro alvo é a
causalidade, outro elemento da flecha do tempo, segundo a qual as causas
acontecem antes dos seus efeitos.
Este
projeto, para dizer o mínimo, é um empreendimento importante para todos os
físicos e filósofos envolvidos. Ainda assim, por trás desses esforços,
permanece aquela incômoda questão: por que a entropia era tão baixa no início
do universo?
"Acho
que entendemos por que temos essa sensação de fluxo", afirma Carlo
Rovelli. "Nós compreendemos por que o passado parece fixo para nós,
enquanto o futuro segue em aberto. Nós entendemos por que existem fenômenos
irreversíveis e podemos reduzir tudo isso à segunda lei da termodinâmica, ao
aumento da entropia.
"Está
muito relacionado ao fato de que, se rastrearmos para trás, para trás, para
trás, o universo começou muito pequeno, em uma situação muito específica. E, de
alguma forma, ele está caindo daquela situação específica", segundo
Rovelli.
"Mas
é claro que há uma questão em aberto: por quê? Por que tudo começou daquela
forma específica?"
Fonte:
BBC Future
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