Marco temporal:
voto de Xandão é ‘ruim’, afirmam advogados dos indígenas
Duas
expressões repetidas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal
Federal, na leitura de seu voto estão no centro das preocupações de um grupo de
mais de 30 advogados indígenas e não indígenas que atuam na defesa dos povos
originários no julgamento do marco temporal. O caso é
considerado o “julgamento do século” para os povos
originários e para a conservação de áreas vitais ao enfrentamento da emergência
climática.
A
primeira expressão preocupante é a “indenização prévia” a agricultores ou
empresários que alegam ser proprietários de terras tradicionais indígenas. Caso
o voto de Moraes seja acatado pelos demais ministros, poderá ser criado um
entrave – financeiro e burocrático – hoje inexistente para novas demarcações,
avaliam advogados ouvidos por SUMAÚMA.
A
segunda é a possibilidade de uma “compensação de territórios de interesse
público” – ou seja, de que o governo federal ofereça a um povo um território
alternativo ao que ele pretende ver demarcado. É algo que, na prática,
permitiria a remoção de povos indígenas de suas
terras, uma medida amplamente praticada durante a ditadura empresarial-militar
(1964-1985). A proposta reduz o conceito de terra a coisa que pode ser trocada
ou reposta, violando a profunda ligação cultural das centenas de povos
originários com o território ancestral.
As
duas propostas do ministro do Supremo devem aprofundar um problema já grave
na Amazônia, avalia o advogado
indígena Mauricio Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (Apib). “[Isso] Vai incentivar a grilagem de terras”,
afirma, referindo-se à invasão de áreas públicas não destinadas, as chamadas
terras devolutas, por posseiros e fazendeiros. Muitas dessas terras são,
também, reivindicadas por povos indígenas – especialmente na Amazônia.
“A
tendência é de acirramento de conflitos”, concorda Rafael Modesto, advogado do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e do povo Xokleng, de Santa
Catarina. “Com a indenização prévia, Moraes cria uma fase nova no processo de
demarcação”, acrescenta. O processo de
demarcação já
tem se mostrado muito mais lento do que deveria, aumentando conflitos e
provocando assassinatos na Amazônia e na maioria dos biomas.
“Nunca
nos opusemos à indenização, achamos que é uma medida de justiça, principalmente
quando envolve pequenos agricultores”, explicou Deborah Duprat,
ex-vice-procuradora-geral da República e atualmente advogada dos povos
indígenas no processo do marco temporal. “Mas a indenização tem que ser
discutida num processo judicial próprio, e não no curso do processo
administrativo de demarcação.”
A
defesa da compensação territorial demonstra que Moraes “não entendeu” a relação
entre os povos indígenas e suas terras tradicionais, afirma Modesto. “A
possibilidade de compensação de um território por outro desconsidera a relação
do povo com a terra de origem, que é psíquica, anímica. A terra tradicional é o
lugar onde estão enterrados os antepassados, é um lugar de culto, de mitos, vai
além da compreensão civil e patrimonialista dos não indígenas”, argumenta.
É
por isso que a avaliação majoritária entre advogados que defendem a causa
indígena no julgamento do marco temporal é que o voto de Moraes é “ruim”, apesar
de ter afastado a tese de que os povos originários só podem pleitear a posse de
territórios que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data em que a Constituição
foi promulgada.
Além
do agravamento de um problema da região amazônica, que é a disputa por terras,
as duas teses presentes no voto de Moraes entram em choque com o que está
definido no artigo 231 da
Constituição.
O texto diz que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a
sua posse permanente”. Mais: a Carta afirma que “são nulos e extintos, não
produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o
domínio e a posse das terras (…), ressalvado relevante interesse público da
União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a
extinção direito a indenização ou a ações contra a União (…)” – algo que, em
seu voto, Moraes propõe mudar. Por fim, o mesmo artigo afirma: “é vedada a
remoção dos grupos indígenas de suas terras”.
O
Supremo reiniciou o julgamento no dia 7 de junho justamente com a leitura do
voto de Moraes. Até então, o placar era de 1 voto contra a tese do marco
temporal – do relator, ministro Edson Fachin – e 1 a favor dela – do ministro
Nunes Marques, indicado à corte pelo ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro.
O
julgamento foi novamente interrompido após pedido de vista feito pelo outro
indicado de Bolsonaro à corte, o “terrivelmente evangélico” André Mendonça. O
pedido de vista é usado por ministros para analisar com mais tempo um processo
antes de tomar uma decisão – e, também, para adiar julgamentos em que estão em
desvantagem. O prazo para que Mendonça devolva o processo ao plenário é de 90
dias. Mas, como o Supremo tem recesso durante o mês de julho, na prática o
marco temporal poderá voltar à pauta de julgamentos apenas em outubro.
Caminho
do meio ou permissão para novos conflitos?
Decorridas
duas semanas da retomada do julgamento, a íntegra do voto de Alexandre de
Moraes ainda não foi anexada, por escrito, aos documentos do processo que vai
definir se a Constituição admite ou não um marco temporal para a demarcação de
terras indígenas. Só quando isso ocorrer, explicaram os advogados com quem
SUMAÚMA conversou, será possível ter uma avaliação consolidada a respeito dele.
Ao
final da leitura de seu voto, Moraes elencou as considerações que o fizeram
rejeitar a tese do marco temporal em dez itens. Elas parecem resumir, à
primeira vista, uma espécie de “caminho do meio” – entre o que propôs Fachin em
seu relatório e o voto divergente, a favor do marco temporal, de Nunes Marques.
É possível que esse “caminho do meio” seja fruto de um consenso prévio entre os
ministros que ainda não votaram, suspeitam advogados da causa indígena. É em
dois desses itens que aparecem os termos preocupantes.
O
item 4 da conclusão do voto de Moraes está disponível em um documento anexado
ao processo no site do Supremo. Nele, o ministro afirma que, se os indígenas
não estavam no – ou brigavam pelo – território que pretendem ver demarcado,
documentos de posse daquela área passarão a ser válidos. E, por causa disso, o
“dono” das terras precisará ser indenizado previamente pelo governo federal
para que a demarcação ocorra. Caso o entendimento do ministro prevaleça, ele
vai produzir uma mudança em relação ao texto constitucional, que prevê
indenização apenas por “benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé” feitas
pelos ocupantes não indígenas.
Benfeitorias
de boa-fé, em geral, são aquelas feitas por pessoas e famílias, na maior parte
das vezes posseiros, pequenos agricultores em busca de possibilidades de
existência, que atenderam a algum programa do Estado, no passado, que levou à
ocupação de um território indígena. Como, por exemplo, os nordestinos pobres
chamados a extrair látex das seringueiras para a fabricação da borracha e
depois abandonados na floresta amazônica quando o preço do produto caiu. Casos
como esse são muito diferentes dos de grileiros, que buscam, por meio da
apropriação ilegal de grandes áreas de terras públicas, com frequência de
ocupação ancestral indígena, amealhar um patrimônio privado, tornando-se
latifundiários.
No
item 5 da síntese de seu voto, Moraes afirma: “Sendo contrário ao interesse
público a desconstituição da situação consolidada e buscando a paz social, a
União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes
terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja expressa
concordância”. Ou seja, diz que, caso haja “interesse público” em que uma terra
tradicional indígena não seja destinada aos povos originários que a
reivindicam, o governo federal poderá oferecer a eles uma área de tamanho
equivalente.
Trata-se
de uma resposta ao que Deborah Duprat chama de “efeito Copacabana” – a alegação
de que, uma vez que os povos indígenas viviam em todo o Brasil antes da invasão
pelos portugueses, não haveria limites para as demarcações; mesmo cidades com
séculos de existência poderiam ser declaradas terras indígenas – caso da famosa
praia carioca. Bastante difundido por latifundiários e outros adversários
contumazes da causa indígena, esse argumento já esteve até mesmo na boca do
ministro Gilmar Mendes, do Supremo.
Isso
é uma falácia, rebatem os advogados ouvidos por SUMAÚMA. Atualmente, os laudos
antropológicos que orientam os processos de demarcação de terras indígenas já
excluem áreas consolidadas de ocupação não indígena – como as tantas cidades já
reconhecidas no Brasil. Mas, para resolver um problema que não existe, Moraes
criou a possibilidade de outro – este, sim, grave.
A
menção ao “interesse público” é particularmente explosiva. “Essa parte do voto
tem vários problemas, a começar pela expressão ‘interesse público’, em que cabe
qualquer coisa”, avaliou Deborah Duprat. “E, na prática, vai transformar as
terras indígenas em balcão de negócios, vai fomentar a divisão das comunidades
[para que abram mão de suas terras]. A Corte Interamericana de Direitos tem
registros de que essa estratégia de dividir as comunidades para obter um
consentimento [sobre a saída dos territórios] é comum nos países que têm
populações indígenas.”
A
possibilidade aberta pelo voto de Moraes tem grande potencial para se tornar
uma “remoção forçada”. “A compensação de territórios [de uma área ancestral
pleiteada por indígenas por outra, em tese equivalente] é uma ‘remoção forçada
pactuada’”, ironizou Mauricio Terena. A ironia aponta para o resultado
previsível de uma negociação entre partes que têm forças políticas e econômicas
muito desiguais.
Durante
a ditadura, foram comuns as remoções forçadas de povos indígenas de territórios
cobiçados por latifundiários ou pela política expansionista dos militares no
poder. Levados a territórios com os quais não tinham nenhuma relação, muitos
indígenas caminharam centenas de quilômetros na tentativa de voltar para a
terra à qual pertenciam. Vários morreram pelo caminho. Em Os Fuzis e as
Flechas – História de Sangue e Resistência Indígena na Ditadura (Companhia
das Letras, 2017), o jornalista Rubens Valente relata casos como o do povo
Nambikwara. Pressionados pela ocupação de seu território tradicional no Vale do
Guaporé, entre Mato Grosso e Rondônia, por fazendeiros (autorizados pela Funai)
que chegavam com a abertura da BR-364, eles foram alvo de duas remoções, em
1971 e 1974. Na segunda, a “operação levou quatro dias de voos em um avião
providenciado pela Funai e mais dois dias de camionete”. O destino eram terras
de solo pobre e arenoso, ruim para a roça e de pouca caça. O resultado, nas
duas vezes, foi o mesmo: os indígenas, “famintos em solo pobre, passaram a
retornar espontaneamente para suas terras de origem. A pé ou de carona,
regressaram um a um”, escreve o jornalista.
·
Com
seu ex-advogado no Supremo, Lula entra no jogo
Com
o prazo de 90 dias para que André Mendonça devolva o processo do marco temporal
e o recesso judiciário durante todo o mês de julho, é provável que o julgamento
recomece apenas em outubro. É, também, quando a atual presidenta do Supremo, a
ministra Rosa Weber, precisará se aposentar compulsoriamente por completar 75
anos de idade. O voto dela a favor dos indígenas, da natureza e do
enfrentamento do colapso climático é tido como provável.
Na sessão de 7 de junho, ela sinalizou o desejo de votar. O novo integrante da
corte, Cristiano Zanin (advogado de Luiz Inácio Lula da Silva em processos
da Operação Lava Jato, que vai assumir a vaga aberta pela aposentadoria de
Ricardo Lewandowski), também deverá se posicionar sobre o caso.
Em
sua sabatina no Senado, realizada no dia 21 de junho, Zanin ficou em cima do
muro ao ser questionado sobre o marco temporal. Falou em “valores que terão que
ser conciliados, como é o caso do direito à propriedade e do direito dos povos
originários” – uma sinalização de que tem entendimento similar ao de Moraes.
“Os indígenas sabem que o presidente Lula é o grande fiador de Zanin ao
Supremo”, disse um advogado, falando, sob a condição de anonimato, sobre quem
deverá ser cobrado caso o futuro novo ministro vote contra os interesses dos
povos originários e das novas gerações. Ao fazer uma escolha pessoal para uma
posição pública, decisão que provocou críticas da direita à esquerda, Lula se
colocou num lugar vulnerável em todas as decisões delicadas do Supremo.
Apesar
de algum pessimismo, provocado pela possibilidade de que o voto de Moraes seja
fruto de consenso entre os ministros, Mauricio Terena afirma que os povos
indígenas continuarão trabalhando para que a posição do relator, Edson Fachin,
prevaleça: “A Apib vai seguir, até o barco afundar, com o voto do ministro
Fachin. Porque isso vai entrar para os anais da história”.
Fonte:
Sumaúma
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