De onde vem a
comida do seu prato?
Arroz,
feijão, bife acebolado, batata frita, farofa e salada. Café com leite e pão com
manteiga. Baião de dois com carne-de-sol e macaxeira. Feijoada com arroz, couve
bem fininha e farofa. Cuscuz de milho com charque. Macarronada. Arroz
carreteiro com polenta frita. Acarajé com vatapá e caruru. Tutu, frango com
quiabo, angu e couve mineira. Peixada com arroz. Camarão com açaí e farinha
d’água. Arroz com feijão tropeiro. Galinhada com pequi. Moqueca baiana com
arroz e farofa.
A
variedade de comidas no Brasil é tão grande quanto a extensão do país. Porém,
ela está ameaçada pelo crescimento acelerado do consumo de produtos ultraprocessados — enquanto o
de arroz e feijão, base de grande parte das refeições no país, só faz cair.
Enquanto isso, cerca de 70% da alimentação continua vindo de alimentos in
natura ou minimamente processados, segundo o Guia Alimentar para a População
Brasileira.
Mas
de onde vem a comida que compõe o PF nosso de cada dia? Quem a produz? Por qual
fatia dessa produção a agricultura familiar é responsável?
Essas
perguntas ganharam muita visibilidade a partir do Censo Agropecuário 2006, que introduziu a
diferenciação entre “agricultura familiar” e “agricultura não familiar”. Os dados
mostravam que a agricultura familiar era responsável pela maior parte da
produção de vários alimentos consumidos no Brasil, como feijão (71%), mandioca
(83%), milho (46%) e leite de vaca (58%) — apesar de ocupar apenas 24% da área
total dos estabelecimentos rurais.
Logo
se popularizou a ideia, divulgada pelo próprio governo federal, durante o
segundo mandato de Lula, de que 70% da nossa alimentação provinha da produção
familiar. Segundo Guilherme Cassel, que comandava o Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) na época da divulgação dos dados, essa foi uma
média geral feita pela pasta a partir dos dados referentes aos alimentos.
Cassel
avalia que o slogan dos 70% colou com força porque, no fundo, de alguma forma
as pessoas já sabiam do papel importante da agricultura familiar. “Esse número
só ganhou a repercussão que ganhou porque ele bate na realidade fática, bate
com a sensibilidade das pessoas comuns, que comem arroz, feijão, milho,
verdura, fruta, e sabem que isso não é produzido pela agricultura patronal, que
produz commodities para exportação”, afirma o ex-ministro. “Nesse meio do agro,
além da concentração fundiária tem também uma concentração cultural de
informação. Você não pode valorizar um pouco a agricultura familiar e camponesa
que parece um crime”, avalia.
A
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) reagiu publicando o estudo “Quem
produz o quê no campo: quanto e onde”, encomendado à Fundação Getúlio Vargas
(FGV) e ao Instituto Brasileiro de Economia (IBRE). O trabalho tem uma
metodologia enviesada, que só considera como agricultores familiares aqueles
enquadráveis nas normas do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). E conclui,
basicamente, que a produção familiar gera pouca receita e não é tão importante
assim.
Fruto
da parceria entre De Olho nos Ruralistas e O Joio e o Trigo, o especial Brasil Sem Veneno analisa o
papel da produção familiar e camponesa na alimentação brasileira e suas
histórias de luta contra o agronegócio e os agrotóxicos. Lançado em 2022, o
projeto relatou casos de pesquisadores perseguidos por denunciar os perigos dos
venenos agrícolas e identificou iniciativas agroecológicas em todo o Brasil,
além de mapear as candidaturas comprometidas com um Brasil Sem Veneno nas
eleições de 2022.
CENSO DE 2006 MOSTRAVA FORÇA DA AGRICULTURA FAMILIAR
Saber
exatamente o quanto da nossa alimentação vem da agricultura familiar é, hoje,
virtualmente impossível. Para isso, seria preciso conhecer não apenas a
quantidade consumida anualmente de cada alimento (um dado que não existe), como
também o quanto de cada ingrediente é consumido – e ainda a produção
agropecuária necessária para fazer esses ingredientes. Por exemplo: quanto de
cana é necessário para fazer o açúcar de um pacote de biscoito, quanto trigo se
precisa para fazer um pão francês, quanto leite se usa para fazer o requeijão.
Isso sem falar que teríamos que colocar na conta todos os alimentos que o país
exporta e importa.
O
que é possível, no atual contexto, é dimensionar a agricultura familiar e
calcular sua participação em relação a toda a produção agropecuária de
alimentos. Em 2006, segundo o Censo Agropecuário, havia 5,1 milhões de
estabelecimentos rurais no país, sendo a esmagadora maioria deles – 4,3
milhões, ou 84% – de agricultura familiar. Mesmo ocupando pouco mais de 24% da
área total, ela dominava a produção de vários alimentos importantes.
Além
disso, a produção familiar é intensiva em mão-de-obra — 74% do pessoal ocupado
na agricultura estava em estabelecimentos familiares — e extremamente produtiva
— o valor de produção por hectare/ano era de R$ 677 na agricultura familiar,
contra apenas R$ 358 na patronal. “Isso são dados, não é ideologia, não é boa-vontade
com a agricultura familiar, não é amor pela agricultura familiar”, reforça
Cassel.
Tirando
da conta o que não é alimento (como algodão, juta e forrageiras), a agricultura
familiar era responsável por boa parte da produção. Na horticultura, ela era soberana,
sendo responsável por 64,6% no geral, e chegando a ultrapassar os 80% para
produtos como batata-doce (86,5%), couve-flor (84,4%), pimenta (84,3%), vagem
(80,8%) e inhame (82,6%).
Nas
lavouras temporárias – aquelas em que a colheita é anual ou sazonal, como
arroz, feijão e mandioca –, ela respondia por 12,8% do total da produção. Esse
número era puxado para baixo por commodities como cana-de-açúcar e soja.
Tirando esses dois produtos, o percentual subia para 49,2%.
A
produção era mais baixa nas lavouras permanentes, ou seja, naquelas culturas
que são plantadas uma vez e podem render por vários anos, como as árvores
frutíferas. Mesmo assim, a produção familiar era desproporcional – de um jeito
positivo – à área ocupada por ela: 31,8% do total, com vários alimentos
ultrapassando os 60%, como o açaí (88,7%), amora (78,3%), cupuaçu (76,1%),
maracujá (67,5%), e castanha-de-caju (66%).
EM DEZ ANOS, PARTICIPAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR
CAIU
Onze
anos depois, a divulgação do Censo Agropecuário 2017 veio com uma
surpresa: houve queda de 9,5% no número de estabelecimentos de agricultura
familiar, além de uma redução de 2,2 milhões de postos de trabalho nessa
categoria. Embora continuassem fortes na horticultura, os estabelecimentos
familiares perderam muito do seu papel na produção de alimentos como arroz em
casca (de 33% para 11%), feijão preto (de 76% para 42%), mandioca (de 83% para
70%) e batata-inglesa (de 31% para 12%).
O
que aconteceu? Enquanto alguns pesquisadores viram nesses números uma mostra do
sucesso das políticas públicas de apoio à agricultura familiar — que teriam
levado as famílias a adotar tecnologias que permitiram aumentar a produção e
liberar mão-de-obra — o geógrafo Marco Mitidiero, da Universidade Federal da
Paraíba, aponta que tais casos seriam a minoria dentro da agricultura familiar
e não explicam a redução nos números. De acordo com ele, existem outros pontos
que ajudam a entender essa disparidade entre os dois Censos.
NOVOS CRITÉRIOS AFETARAM OS NÚMEROS DO CENSO
Uma
das questões, de acordo com Mitidiero, tem a ver com a própria definição de
agricultura familiar. A lei que trata disso é de 2006 e
sofreu mudanças em 2017 e 2021. O texto diz que, para ser considerado como
familiar, o agricultor precisa ter uma área de no máximo 4 módulos fiscais
(sendo que o módulo fiscal varia de 5 a 110 hectares, dependendo do município);
utilizar predominantemente mão-de-obra familiar; ter a maior parte da renda
familiar originada de atividades vinculadas ao estabelecimento; e dirigir o
estabelecimento com a própria família. Alguns grupos não precisam obedecer ao
critério de área máxima: extrativistas, pescadores, povos indígenas e
quilombolas podem ocupar áreas com mais de quatro módulos fiscais e seguir
classificados como agricultores familiares.
problema,
segundo Mitidiero, é que a regra pode jogar para a agricultura patronal
agricultores que, na verdade, são familiares. Uma evidência disso é que, no
Censo 2017, nada menos que um terço de todos os estabelecimentos não-familiares
declararam produzir apenas para o autoconsumo.
Outro
indício: em 2006, só 8% dos estabelecimentos com até 10 hectares eram
não-familiares, mas esse percentual mais que dobrou – chegando a 19,5% – em
2017. “É um contrassenso ter o não-familiar crescendo em pequenas áreas”, diz
Mitidiero.
Uma
hipótese para explicar os possíveis erros na classificação dos produtores seria
um aumento no número de agricultores familiares empobrecidos, com membros
da família precisando se empregar em outros lugares e, assim, fazendo com que a
renda familiar advinda de fora supere a do estabelecimento rural.
O
pesquisador acrescenta ainda que há um envelhecimento da população rural, e
muitos dos agricultores familiares recebem aposentadoria. “A aposentadoria
rural se torna grande parte da sua renda – que vem de fora do estabelecimento.
Aí a pessoa pode não ser considerada agricultora familiar”, aponta. Nesse
sentido, defende ele, a lei é como uma “camisa de força”.
PESQUISADOR APONTA O REAL PAPEL DOS PEQUENOS
AGRICULTORES
Mitidiero
considera mais interessante avaliar a produção agropecuária brasileira de
acordo com os estratos de área em que ela ocorre, em vez de usar a
classificação agricultura familiar versus não-familiar.
O
pesquisador escreveu um livro sobre o Censo
2017 trabalhando os dados a partir desse enfoque. E concluiu que os
estabelecimentos com menos de 200 hectares – que ele considera pequenos – são responsáveis
por uma parte enorme da nossa alimentação. Eles produziram, por exemplo, 61% do
feijão preto, 83% da mandioca, 85% do abacaxi, 82% da banana e 65% do café
arábica, além de ter 39% das cabeças de gado e produzir 83% do leite de vaca.
“Isso
é de assustar porque, no imaginário nacional, o grande fazendeiro – o ‘Rei do
Gado’ – é quem produz a carne do Brasil”, aponta. “Mentira. A boiada sempre
esteve mais nos pequenos estabelecimentos”.
Mitidiero
acredita que há limitações em considerar pequenos os estabelecimentos com até
200 hectares, pois a mesma área pode significar uma terra pequena em um
município, mas grande em outro. “E é possível ter um agricultor patronal, um
capitalista super tecnificado, produzindo em 40, 50 hectares”, reconhece.
Isso
acontece porque as terras no Brasil são classificadas de acordo com módulos
fiscais. Um módulo fiscal é a área mínima necessária para que um
estabelecimento rural seja economicamente viável. Então, o seu tamanho varia de
acordo com fatores que afetam a capacidade de produção – como a disponibilidade
de recursos naturais, infraestrutura e dinâmica de mercado. Municípios com
menor acesso a essas condições demandam áreas maiores para obter rentabilidade,
então, neles, o módulo fiscal é maior.
É
por isso que a legislação não se baseia apenas na extensão da terra em hectares
para classificar as propriedades em pequenas, médias ou grandes – e as pequenas
são aquelas que têm até quatro módulos fiscais. Em Tabatinga, no Amazonas, isso
significa até 400 hectares. Já em Campinas, no interior de São Paulo, são
apenas 40. Na maior parte dos municípios, o módulo fiscal tem até 30 – neles,
terras com mais de 120 hectares já não são mais consideradas pequenas.
O
menor módulo fiscal possível no Brasil é de 5 hectares. Isso significa que toda
propriedade com até 20 hectares, em qualquer lugar do país, vai ser
necessariamente considerada pequena. No Censo 2017, eles ocupavam uma área
mínima: só 5,2% de todos os estabelecimentos agropecuários. Mesmo assim,
produziam mais de 80% de alimentos como morango, cogumelos, chicória, rabanete
e temperos diversos.
Eles
também responderam por mais de 70% do pepino, da couve, da alface, do chuchu,
da berinjela, da abobrinha e da couve-flor.
E
tinham ainda uma participação relevante na produção de repolho (60%), goiaba
(50%), mandioca (46%), batata-doce (45%), caju (44%), uva de mesa (44%),
abacaxi (41%), abóbora (39%), milho verde (37%), banana (36%), tangerina (34%),
ovos de galinha (31%), leite de vaca (24%) e feijão preto (23%).
Em
relação aos animais, eles tinham 45% das galinhas e 39% dos suínos. E ainda
produziam 42% de todo o peixe, 92% das ostras e 88% dos mexilhões. Sim, tudo
isso ocupando só 5% da área total dos estabelecimentos.
PARTICIPAÇÃO DE GRANDES ESTABELECIMENTOS CRESCEU
Na
outra ponta, os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares ocupam quase metade
da área total (48%), mas não produzem alimentos nessa mesma proporção. O
carro-chefe é a cana-de-açúcar (83%), que sequer se converte toda em alimento
para o Brasil: boa parte vira etanol e boa parte é exportada. Também se
destacam produtos como soja (60%) e milho em grão (58%), além de alimentos que
o Brasil exporta muito, como melão (47%) e laranja (42%).
Eles
também geram uma parcela importante de alimentos que, de fato, ficam no país e
fazem parte da nossa cultura alimentar. A participação na produção do arroz
subiu de 30% para 49%. No caso do feijão preto, houve um salto de 3% para 15%;
na de feijão de cor, de 20% para 53%. Ficaram mais relevantes na batata-inglesa
(de 28% para 35%); ervilha em grão (de 16% para 54%); trigo (20% para 28%); e
cenoura (de 0,25% para 26%).
Encarar
esses números de frente não significa minimizar a importância e a produtividade
da agricultura familiar e dos pequenos estabelecimentos. Pelo contrário: é
preciso reconhecer que eles produzem muito com pouca área e poucos recursos,
mas que poderiam nos alimentar muito mais (e melhor) se estivessem no centro
das políticas públicas de produção e abastecimento.
PEQUENOS AGRICULTORES TÊM DIFICULDADE EM ACESSAR CRÉDITO
Vários
fatores ajudam a explicar por que os estabelecimentos menores e familiares têm
uma grande produção de horticultura, mas não possuem o mesmo volume em grãos
como arroz ou trigo.
O
primeiro, mais elementar, é a extensão das suas terras. Quase 40% dos
estabelecimentos agropecuários no Brasil têm menos de cinco hectares. Cerca de
12% não chegam nem mesmo a um hectare.
O
tamanho reduzido dificulta a lida com culturas sazonais – que deixam a área
ocupada por boa parte do ano – ou lavouras permanentes que podem levar anos até
começarem a produzir. “Se você tem um terreno grande, em volta você bota uma
carreira de bananeiras, por exemplo, dali a dois anos elas estão produzindo”,
afirma Nilton Raimundo, que vive e trabalha em uma terra que não chega nem a
0,5 hectare em Teresópolis, interior do Rio. “Mas se eu plantar bananeira no
meu terreno, o que é que eu vou comer até daqui a dois anos?”, questiona .
É
por isso que, quando se tem pouca terra e poucos recursos, a aposta mais
certeira é nas verduras e legumes, que demandam investimentos relativamente
baixos e demoram poucas semanas para chegar no ponto de colheita e venda.
O
contexto é ainda mais complicado quando se trata da produção de grãos,
como o arroz. Porque aí não basta ter terra: a produção também é cara. “Esse
agricultor precisa de um investimento razoável, alto”, aponta Diego Moreira, da
direção nacional do setor de produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). “Vai precisar de maquinário, de investimento em recuperação do solo,
ou seja, precisa de um investimento fixo para alcançar uma determinada
produtividade”
Então,
são necessários programas de crédito adequados à realidade da agricultura
familiar, conforme aponta Yamila Goldfarb, vice-presidente da Associação
Brasileira de Reforma Agrária (ABRA):
—
Quando um grande produtor não paga um crédito tomado, ele negocia essa dívida.
Os grandes produtores estão o tempo todo arrolando dívida. E isso não os impede
de acessar o crédito novamente. Mas o pequeno produtor, sim [é impedido]. Ele
não tem crédito fácil como o grande tem, ele não tem o que dar como garantia,
não tem o poder de negociação com o Estado que o grande produtor tem.
Tanto
investimento de tempo, trabalho e dinheiro na produção só faz sentido se tiver
retorno: é preciso garantir o escoamento da produção. Como nota Goldfarb, houve
nas últimas décadas um grande desmonte das políticas de abastecimento no país,
com, por exemplo, o sucateamento dos estoques públicos.
Com
isso, os preços ficaram nas mãos do mercado: no caso dos grãos, especialmente,
quem tem maior capacidade de processamento e estocagem é que vai negociar os
preços, retirando ou colocando os produtos no mercado conforme a conveniência.
Se os preços são controlados pelos grandes produtores, não é difícil saber quem
se dá mal.
“O
arroz, por exemplo, tem um custo de produção x, e você só consegue equilibrar
esse custo se tiver um preço mínimo para o arroz colhido”, explica Diego.
“Quando o agricultor fica refém do mercado, ele não consegue o preço mínimo
para fechar a conta do seu custo de produção. E é óbvio que vai falir”
Por
isso, diz a vice-presidente da ABRA, estoques públicos funcionais e
estruturados fazem uma falta tremenda aos pequenos produtores: além de servirem
para regular os preços para os consumidores, eles são também um instrumento do
Estado para garantir o preço mínimo ao produtor.
Mesmo
no caso de alimentos frescos, como frutas, legumes e verduras, o escoamento
pode ser uma pedra no sapato dos agricultores familiares. Para eles, vender
para supermercados costuma ser um fator de estrangulamento de preços: eles
dificilmente terão toneladas de um único alimento para oferecer, como as
grandes redes exigem. Então, lhes resta ficar na mão de atravessadores, que
compram mercadorias de vários produtores para revender.
“Aqui
não tem nenhum produtor que entrega para os mercados”, explica Sérgio Lage,
agricultor familiar de Petrópolis/RJ. “Vem tudo de fora. Não compensa, porque o
supermercado quer quantidade, nota fiscal e produto consignado. Se não vender,
não paga ao produtor”.
O
problema é que, cada vez mais, o modelo das grandes redes – agora, atacarejos –
vai se consolidando como hegemônico, conforme destaca Diego Moreira, do MST:
—
As feiras, que são um canal de comercialização direta dos pequenos e médios
produtores, e os pequenos mercados – aqueles de bairro, que a gente comprava na
caderneta –, estão sumindo. Mesmo esses produtos que a agricultura familiar
produz mais, como as verduras e temperos, estão sendo engolidos. À medida que
os grandes atacadistas tomam conta do comércio, mesmo no interior, eles vão
inviabilizando as feiras, os pequenos mercados e sacolões, que são
tradicionalmente populares.
“VAI DAR UM CAOS SOCIAL”
Ainda
que a agricultura familiar não tenha, de fato, encolhido tanto entre 2006 e
2017 quanto os dados dos Censos sugerem, é razoável pensar que ela possa, de
fato, vir a minguar. Isso porque a agricultura é um trabalho extenuante,
arriscado e pouco valorizado. “Férias” é um termo que não faz parte do
vocabulário da maioria dos agricultores familiares, a não ser quando problemas
de saúde relacionados ao próprio trabalho levam a uma folga forçada.
Edvaldo
Viera da Silva e sua esposa, dona Celeni, trabalham juntos desde que se
casaram, há 30 anos. Eles moram na comunidade do Jacó, que fica no meio do
caminho entre Petrópolis e Teresópolis, e produzem dezenas de variedades de
verduras, legumes e frutas. Antes do casamento, os dois já trabalhavam com os
pais e avós. Só no ano passado, após décadas de trabalho pesado, que eles
conseguiram sair de férias pela primeira vez: tiraram uma semana de folga e
foram visitar o Mato Grosso. “Andamos de chalana, vimos jacaré, muito cervo,
aves de rapina, o gavião negro, muito bicho. Mas para planejar, a gente juntou
dinheiro no conta-gotas. Que não é fácil pra gente que não tem renda, né?”.
Existe
um problema real de sucessão. “É um trabalho muito árduo e que não é
valorizado”, avalia Nilton Raimundo. “Minha filha mais velha tem 23 anos e
trabalha numa clínica de bronzeamento artificial. Ela ganha um salário de R$
1,7 mil. Quer dizer, ela sozinha pega mais do que eu às vezes, e é uma renda
garantida, faça chuva ou faça sol”.
Na
casa de Sérgio, o clima é parecido. “Nossos filhos não vêem futuro nisso aqui.
Querem fazer qualquer outra coisa. Até mesmo trabalhar na terra dos outros”,
diz, puxando cálculos de cabeça para explicar o porquê. Ele trabalha com a
esposa e o filho. Como o preço da diária na região é R$ 150, eles ganhariam,
juntos, mais de R$ 10 mil por mês se trabalhassem fora seis vezes por semana –
o que supera a renda familiar atual. “Eu só estou aqui nesse local por causa
das raízes. Porque isso aqui foi passado de pai para filho, e a gente não
conheceu outro lugar.”
Sérgio
diz que muitos agricultores nem gostam de parar para pensar nos gastos
envolvidos na atividade, porque, do contrário, poderiam desistir de continuar.
“Eu mesmo não faço muita conta”, confessa.
Os
efeitos dessa falta de perspectiva são percebidos até espacialmente. A terra
onde Edvaldo vive mudou radicalmente nos últimos anos: “Tudo que é mato que
você vê, era lavoura. Tinha 200 famílias por aqui, mas quase todo mundo foi
embora”.
Sua
filha ainda ajuda os pais na roça, mas não tem nenhuma intenção de continuar
nisso para sempre. E mesmo os parentes mais velhos já mudaram de serviço: todos
os seus nove irmãos foram migrando, ao longo dos últimos anos, para atividades
como comércio, jardinagem e construção civil. Só ele continua na lavoura.
—
Se ninguém fizer nada, vai dar um caos social. E isso vai acontecer por quê?
Porque o agricultor do passado não teve apoio suficiente para ter dignidade
financeira de ficar na roça. E os filhos estão vendo. Os filhos às vezes têm um
estudo a mais que a gente não teve, um conhecimento a mais que a gente não
teve, arrumam outra coisa que fazer. E tá até certo e justo de ir, mesmo.
Porque cada um tem que defender o seu, até por instinto de sobrevivência da
gente, né?
PESQUISADORES APONTAM NECESSIDADE DE MUDANÇA
De
um lado, agricultores familiares cansados, desvalorizados, sem políticas
públicas que lhes ofereçam apoio adequado, e com filhos que buscam novos
horizontes. De outro, dados do Censo mostrando que grandes estabelecimentos
estão produzindo fatias maiores de alimentos como arroz, feijão e batata.
Então, por que os agricultores familiares não podem mudar para atividades mais
rentáveis e deixar que os grandes estabelecimentos e a agricultura patronal se
responsabilizem por alimentar a população?
Para
Mitidiero, uma razão central é a desconcentração de renda. “Uma coisa é ter
vários agricultores familiares produzindo milho. Outra é ter dez grandes
produtores plantando milho e concentrando renda”, diz.
Goldfarb
chama a atenção também para o fato de que grandes produtores não geram
realmente desenvolvimento local. Em municípios onde há assentamentos de reforma
agrária, por exemplo, se percebe que o comércio local é dinâmico – com lojas de
materiais de construção e de roupas, farmácias, mercadinhos e restaurantes –, e
há incremento no setor de serviços. Isso sem falar, claro, na maior oferta de alimentos
saudáveis para a população.
A
pesquisadora dá um contra-exemplo que condiz com a experiência de cobertura de
O Joio e o Trigo revelada na série “No coração do agro”. “Vá ao Mato
Grosso ver o que são cidades como Sinop. Tem aquelas lojas que vendem trator e
veneno, e as ruas que não têm mais nada. Não tem vida naquelas cidades”. Ela
vai além, lembrando que o avanço da fronteira agrícola para dentro de reservas
florestais e territórios ocupados por populações tradicionais gera conflitos
sociais e impactos ambientais.
Mesmo
que possa produzir alimentos, o objetivo maior do agronegócio não é realmente
colocar comida no prato. O setor orienta sua produção para onde há mais
dinheiro.
Não
é por acaso que, nos últimos anos, vimos o Brasil bater recordes de exportação de produtos
agropecuários enquanto a fome aumentava no país. “Um dos mais fundamentais
papéis que o Estado pode ter é o de se organizar para ter comida para a sua
população. Então, a política agrícola é uma política de Estado. Tem que ser”,
conclui Mitidiero.
Fonte:
O Joio e o Trigo
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