quinta-feira, 29 de junho de 2023

Bolsonaro cometeu abuso de poder político em reunião com embaixadores, diz relator

Ao promover uma reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada meros três meses antes das eleições de 2022, Jair Bolsonaro usou do cargo de presidente da República e dos meios de comunicação social em desvio de finalidade que representa abuso de poder. A conduta teve gravidade suficiente para gerar sua inelegibilidade.

Essa foi a conclusão apresentada pelo ministro Benedito Gonçalves,  corregedor-geral da Justiça Eleitoral e relator da primeira das 16 ações de investigação judicial eleitoral (aijes) ajuizadas contra Jair Bolsonaro pelos atos praticados antes e durante a campanha de 2022.

O extenso voto foi apresentado ao colegiado com a conclusão de julgar parcialmente procedente a aije ajuizada pelo PDT, com declaração de inelegibilidade de 8 anos apenas de Jair Bolsonaro. O general Walter Braga Netto, vice na chapa bolsonarista, foi poupado porque não se envolveu no episódio.

Essa foi a segunda sessão de julgamento dedicada ao caso. A primeira envolveu a leitura do relatório sobre o caso e as sustentações orais dos advogados Tarcísio Vieira de Carvalho, por Jair Bolsonaro, e Walber Agra, que atua pelo PDT junto com a advogada Ezikelly Barros.

O julgamento foi interrompido sem pedido de vista e será retomado na quinta-feira (29/6), com voto do ministro Raul Araújo. O relator ainda propôs o envio do caso para a Procuradoria-Geral de Justiça, para tomada de eventuais providências na área penal, e para o Tribunal de Contas da União, por conta do uso de bens e recursos públicos com desvio de finalidade.

·         Esticou demais a corda

Em resumo, o ministro Benedito Gonçalves concluiu que os atos praticados por Bolsonaro na condição de presidente da República, chefe de Estado e candidato à reeleição esgarçaram a normalidade democrática e a isonomia da votação, situação suficiente para levar à sua punição.

O longo voto do relator foi resumido para o público de modo a analisar se o ato pelo qual Bolsonaro foi processado acabou por ofender os bens jurídicos tutelados pela ação de investigação judicial eleitoral: legitimidade, normalidade, isonomia e liberdade do eleitor na votação. A resposta foi positiva.

“Ao propor uma cruzada contra uma inexistente conspiração para fraudar eleições, não estava perdido em autoengano. Estava fazendo política e estava fazendo campanha. A recusa de valor ao conhecimento técnico a respeito das urnas e a repulsa à autoridade do TSE foram manejadas como ferramentas de engajamento”, destacou o relator.

Para Benedito Gonçalves, Bolsonaro foi hábil se impor para parte do eleitorado como fonte confiável a respeito do sistema de votação e exerceu esse papel com desprezo às informações técnicas e à verdade dos fatos. Com isso, acirrou tensões institucionais e instigou a crença de que a adulteração de resultados era uma ameaça real, apesar de não haver provas.

 “A banalização do golpismo — meramente simbolizada, nestes autos, pela minuta que propunha intervir no TSE e dormitava, sem causar desassossego, em uma pasta na residência do ex-Ministro da Justiça — é um desdobramento grave de ataques infundados ao sistema eleitoral de votação”, disse.

Se Bolsonaro não é o único elo que conecta esses fenômenos, é ao menos pessoalmente responsável pelo evento com os embaixadores, pois se envolveu ativamente em sua organização, execução e transmissão. Desse desvio de finalidade, não participou seu candidato a vice em 2022, general Walter Braga Netto.

·         Uso indevido dos meios de comunicação

O voto do relator fez uma exauriente análise do discurso de Bolsonaro na reunião para concluir que a conduta pode ser enquadrada no ilícito, devido à difusão deliberada e massificada de severa desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e sobre a governança eleitoral brasileira em benefício da própria candidatura.

A conclusão se baseou em sete pontos:

  1. Na reunião, Bolsonaro apontou que houve manipulação de votos nas Eleições de 2018 e inércia, conivência e interesse do TSE, que prejudicou a investigação de indícios de fraude eleitoral, em uma espécie de conluio para manter o sistema vulnerável e manipulável.
  2. A mensagem atentou diretamente contra a confiabilidade dos resultados eleitorais e contra o papel institucional do TSE na preparação e organização das eleições, na interlocução com embaixadas, na Comissão de Transparência Eleitoral e nas missões internacionais de observação eleitoral.
  3. O discurso de Bolsonaro ignorou informações oficiais sobre o funcionamento do sistema eletrônico de votação e explicações dadas pelo TSE para o não acatamento de sugestões das Forças Armadas na Comissão de Transparência.
  4. As informações falsas usadas foram usadas por ele ao longo do mandato e durante a campanha de reeleição para formar bolhas no eleitorado.
  5. Bolsonaro usou de conspiracionismo, vitimização e pensamentos intrusivos para passar a ideia de que as eleições de 2022 estava sob risco e de que ele próprio, em simbiose com as Forças Armadas, seria o responsável por uma cruzada em nome da transparência e da democracia.
  6. A transmissão do evento e da fala pela TV Brasil e pelas redes sociais de Bolsonaro fez a mensagem se alastrar rapidamente, efeito que foi potencializado pela tendência das informações falsas, sobretudo em temas políticos, a circular com maior velocidade e produzir mais engajamento.
  7. Quando o evento ocorreu, Bolsonaro era pré-candidato. Isso permitiu sua a projeção midiática antecipada de temas que foram explorados continuamente na campanha, assegurando aos investigados vantagem eleitoral triplamente indevida: em função do momento, em função do veículo e em função do conteúdo.

·         Gravidade e consequências

O voto também apontou a gravidade acentuada das condutas, uma vez que Bolsonaro violou ostensivamente os deveres do Presidente da República listados no artigo 85 da Constituição Federal, de zelar pelo exercício livre dos Poderes instituídos e dos direitos políticos e pela segurança interna.

“A discrepância entre as declarações feitas e a realidade não constituem mera imprecisão ou equívoco, mas, sim, desabrida manipulação de sentidos, conduzida com método, para fins de manter suas bases políticas mobilizadas por elementos passionais a serem explorados para fins eleitorais”, pontuou o ministro Benedito.

Afirmou ainda que o conteúdo veiculado por ele não poderia esclarecer pontos obscuros sobre o processo eleitoral brasileiro, mas apenas incitar um “estado de paranoia coletiva diante do amontoado de informações falsas ou distorcidas, relativas a tema de alta complexidade técnica” as quais o próprio Bolsonaro não dominava.

As consequências foram igualmente graves, uma vez que a reunião contribuiu para o caos desinformacional a respeito da governança eleitoral e do sistema eletrônico de votação, permitiu acionar a militância a partir de simples menções a episódios que se amarram pelo conspiracionismo e permitiu a ele se firmar como “fonte alternativa” de informação, com descrédito das instituições.

·         Abuso de poder político

Para o ministro Benedito Gonçalves, a particularidade do abuso de poder político praticado por Jair Bolsonaro está na utilização do cargo de Presidente da República para finalidades eleitorais ilícitas.

Não apenas ele usou a estrutura da residência oficial da Presidência e o cargo para organizar evento com embaixadores em tempo recorde, como se apropriou da simbologia do cargo como arma anti-institucional, segundo o relator, de maneira a levar a atuação da Justiça Eleitoral ao completo descrédito perante a sociedade e a comunidade internacional.

Na análise do relator, o uso da máquina pública permitiu a Bolsonaro levar ao eleitorado uma imagem de grande valor estratégico para sua candidatura: viram-no lecionar para embaixadores, como se fosse uma autoridade na temática do sistema de votação e na Justiça Eleitoral.

Como complemento, Bolsonaro fez diversas menções às Forças Armadas durante o evento, insinuando que o convite para a Comissão de Transparência do TSE as colocou como garantes da lisura eleitoral e que poderiam atuar para em medida “fora das quatro linhas da Constituição” caso fosse necessário.

 

Ø  Para relator no TSE, reunião de Bolsonaro com embaixadores excedeu paradigmas

 

Para o ministro Benedito Gonçalves, do Tribunal Superior Eleitoral, a ação que aponta abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação por Jair Bolsonaro na reunião que fez com embaixadores em 2022 não apenas se enquadra em um precedente paradigmático sobre o tema, como transborda em gravidade e reprovabilidade.

A comparação foi feita no voto apresentado ao colegiado na noite de terça-feira (27/6) em que propôs a procedência da ação de investigação judicial eleitoral (Aije) ajuizada pelo PDT para declarar o ex-presidente inelegível pelo prazo de oito anos.

O caso a que ele se reportou é o do deputado estadual Delegado Francischini (PSL-PR), o primeiro parlamentar a ter o mandato cassado por difundir fake news nas redes sociais. A punição foi definida pelo TSE em outubro de 2021 e representou uma importante guinada jurisprudencial.

A partir dali, a corte passou a entender que, embora o uso indevido dos meios de comunicação social seja tradicionalmente associado a veículos como televisão, rádio, revistas e jornais, sua menção pela Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) fornece um conceito aberto capaz de abarcar redes sociais.

O próprio Bolsonaro quase foi alvo dessa tendência quando, na mesma semana, escapou da cassação pelo uso de disparos em massa via WhatsApp nas eleições de 2018. O TSE entendeu que também esses aplicativos de mensagem podeM ser enquadrados como "meio de comunicação" e virarem palco para abusos eleitorais. Faltou comprovar a gravidade dos fatos.

Inclusive naquela ocasião, o ministro Alexandre de Moraes, que ainda não era o presidente do TSE, fez o alerta de que esses precedentes seriam importantíssimos e mandou o recado: se em 2022 houver repetição do que foi feito em 2018, registros seriam cassados e pessoas seriam presas.

Bolsonaro não só sabia do risco de usar lives para atacar a democracia, o TSE e as eleições como, quando o Supremo Tribunal Federal manteve a cassação de Francischini, ironizou o julgamento ao dizer que "o que ele falou eu também falei" e prometeu que "não viveria como um rato".

Ainda assim, menos de um ano depois do precedente, ele organizou uma reunião com embaixadores e usou-a de palco para difundir críticas ao TSE e desconfiança em relação ao sistema eletrônico de votação, em evento transmitido por suas redes sociais e também pela TV Brasil, da empresa pública estatal EBC.

·         Transbordou em tudo

Para o ministro Benedito Gonçalves, dizer que o caso de Bolsonaro se amolda ao precedente de Francischini é muito pouco. "Quase um eufemismo", alertou. "A verdade é que os ilícitos comprovados neste feito em tudo transbordam os critérios que haviam sido aplicados naquele julgamento", acrescentou.

O relator usou termos contundentes para tratar da gravidade de tudo que envolveu o episódio com os embaixadores. A ação de Bolsonaro foi mais leviana, por tratar investigações sobre ataque hacker ao TSE e documentos oficiais com distorções severas.

Transbordou também no uso das prerrogativas do cargo público e do comando das Forças Armadas, ao promover o acirramento de tensões institucionais. Foi ainda mais virulenta, por atacar três ministros presidentes do TSE — Luis Roberto Barroso, Luiz Edson Fachin e Alexandre de Moraes.

E mais covarde, por forjar acusações contra servidores da Justiça Eleitoral. Assim, degradou mais cadeia de confiança no TSE, o que levou a um cenário de caos informacional que vem provocando danos graves ao debate democrático. E manipulou os sentidos, ao transformar desejos de liberdade e transparência em violência discursiva.

"Transbordam, enfim, no golpismo, sob a forma de um flerte perigoso com soluções extremas supostamente motivadas pelo desejo de eleições transparentes e autênticas, obstinadamente repetido para jamais ser saciável", afirmou o relator da Aije, que terá seu julgamento retomado na quinta-feira (29/6), pela manhã.

·         Caso Dilma-Temer

O início do voto do relator ainda tratou de afastar qualquer ligação existente entre a ação contra Bolsonaro e outro importante precedente do TSE, fixado em 2017, quando a corte se recusou a incluir elementos novos no julgamento que propunha a cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, eleita em 2014.

O precedente foi usado pela defesa de Bolsonaro para se opor à inclusão da chamada "minuta do golpe" na Aije do PDT. O documento foi encontrado na casa do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, em janeiro de 2023, muito depois da campanha e das eleições, mas foi considerado pelo relator para a análise do abuso do poder político.

Na prática, a questão da delimitação da Aije já estava preclusa porque foi analisada pelo TSE em fevereiro. Mas como foi repetida como preliminar pela defesa de Bolsonaro, o ministro Bendito Gonçalves destacou que ela não confronta, não revoga e não contraria a jurisprudência do TSE firmada no caso da chapa Dilma-Temer.

Naquele caso, a causa de pedir da Aije tratava de doações recebidas em 2012 e 2013, declaradas à Justiça Eleitoral, mas de fonte ilícita, que permitiram a determinados partidos assumir um poderio econômico desproporcional que refletiu no resultado da eleição presidencial de 2014.

A delação da Odebrecht — que fez barulho, mas rendeu pouca coisa — que se tentou incluir naquele caso visava ampliar a ação para incluir nela um delito autônomo e com elementos próprios. À época, a defesa da chapa Dilma-Temer exortou o TSE a não confundir "fatos novos" com "provas novas".

"Os fatos posteriores não foram apresentados como desdobramentos dos primeiros, tampouco serviam para adensar ou corroborar a narrativa da petição inicial", destacou o ministro Benedito Gonçalves. Já o caso da minuta do golpe tem outra relação com a causa de pedir de Aije do PDT.

A imputação foi de que Bolsonaro teria usado uma estratégia político-eleitoral assentada em grave desinformação a respeito das urnas eletrônicas e da atuação para o TSE. O episódio da minuta do golpe, assim, serviria para evidenciar os efeitos concretos do estado de ânimo coletivo praticado pelo presidente.

"Portanto, não se alterou a orientação traçada por este Tribunal. O que se tem são duas situações totalmente distintas", afirmou o ministro Benedito Gonçalves. "No pleito de 2022, a Corte admitiu que possa ser discutido nesta Aije um fato posterior ao ajuizamento da ação que foi suscitado para demonstrar a gravidade da conduta narrada na petição inicial. Se o autor tem ou não razão, é tema para examinar no mérito", concluiu.

 

Fonte: Por Danilo Vital, na Conjur

 

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