Bolsonaro cometeu
abuso de poder político em reunião com embaixadores, diz relator
Ao
promover uma reunião com
embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada meros três meses antes das
eleições de 2022, Jair Bolsonaro usou do cargo de presidente da República e dos
meios de comunicação social em desvio de finalidade que representa abuso de
poder. A conduta teve gravidade suficiente para gerar sua inelegibilidade.
Essa
foi a conclusão apresentada pelo ministro Benedito Gonçalves,
corregedor-geral da Justiça Eleitoral e relator da primeira das 16 ações de
investigação judicial eleitoral (aijes) ajuizadas contra Jair Bolsonaro pelos
atos praticados antes e durante a campanha de 2022.
O
extenso voto foi apresentado ao colegiado com a conclusão de julgar
parcialmente procedente a aije ajuizada pelo PDT, com declaração de
inelegibilidade de 8 anos apenas de Jair Bolsonaro. O general Walter Braga
Netto, vice na chapa bolsonarista, foi poupado porque não se envolveu no
episódio.
Essa
foi a segunda sessão de julgamento dedicada ao caso. A primeira envolveu a
leitura do relatório sobre o
caso e
as sustentações orais
dos advogados Tarcísio Vieira de Carvalho, por Jair
Bolsonaro, e Walber Agra,
que atua pelo PDT junto com a advogada Ezikelly Barros.
O
julgamento foi interrompido sem pedido de vista e será retomado na quinta-feira
(29/6), com voto do ministro Raul Araújo. O relator ainda propôs o envio do
caso para a Procuradoria-Geral de Justiça, para tomada de eventuais
providências na área penal, e para o Tribunal de Contas da União, por conta do
uso de bens e recursos públicos com desvio de finalidade.
·
Esticou demais a corda
Em
resumo, o ministro Benedito Gonçalves concluiu que os atos praticados por
Bolsonaro na condição de presidente da República, chefe de Estado e candidato à
reeleição esgarçaram a normalidade democrática e a isonomia da votação,
situação suficiente para levar à sua punição.
O
longo voto do relator foi resumido para o público de modo a analisar se o ato
pelo qual Bolsonaro foi processado acabou por ofender os bens jurídicos
tutelados pela ação de investigação judicial eleitoral: legitimidade,
normalidade, isonomia e liberdade do eleitor na votação. A resposta foi
positiva.
“Ao
propor uma cruzada contra uma inexistente conspiração para fraudar eleições,
não estava perdido em autoengano. Estava fazendo política e estava fazendo
campanha. A recusa de valor ao conhecimento técnico a respeito das urnas e a
repulsa à autoridade do TSE foram manejadas como ferramentas de engajamento”,
destacou o relator.
Para
Benedito Gonçalves, Bolsonaro foi hábil se impor para parte do eleitorado como
fonte confiável a respeito do sistema de votação e exerceu esse papel com
desprezo às informações técnicas e à verdade dos fatos. Com isso, acirrou
tensões institucionais e instigou a crença de que a adulteração de resultados
era uma ameaça real, apesar de não haver provas.
“A banalização do golpismo — meramente
simbolizada, nestes autos, pela minuta que propunha
intervir no TSE e
dormitava, sem causar desassossego, em uma pasta na residência do ex-Ministro
da Justiça — é um desdobramento grave de ataques infundados ao sistema
eleitoral de votação”, disse.
Se
Bolsonaro não é o único elo que conecta esses fenômenos, é ao menos
pessoalmente responsável pelo evento com os embaixadores, pois se envolveu
ativamente em sua organização, execução e transmissão. Desse desvio de
finalidade, não participou seu candidato a vice em 2022, general Walter Braga
Netto.
·
Uso indevido dos meios de comunicação
O
voto do relator fez uma exauriente análise do discurso de Bolsonaro na reunião
para concluir que a conduta pode ser enquadrada no ilícito, devido à difusão
deliberada e massificada de severa desordem informacional sobre o sistema
eletrônico de votação e sobre a governança eleitoral brasileira em benefício da
própria candidatura.
A
conclusão se baseou em sete pontos:
- Na reunião,
Bolsonaro apontou que houve manipulação de votos nas Eleições de 2018 e
inércia, conivência e interesse do TSE, que prejudicou a investigação de
indícios de fraude eleitoral, em uma espécie de conluio para manter o
sistema vulnerável e manipulável.
- A mensagem
atentou diretamente contra a confiabilidade dos resultados eleitorais e
contra o papel institucional do TSE na preparação e organização das
eleições, na interlocução com embaixadas, na Comissão de Transparência
Eleitoral e nas missões internacionais de observação eleitoral.
- O discurso de
Bolsonaro ignorou informações oficiais sobre o funcionamento do sistema
eletrônico de votação e explicações dadas pelo TSE para o não acatamento
de sugestões das Forças Armadas na Comissão de Transparência.
- As informações
falsas usadas foram usadas por ele ao longo do mandato e durante a
campanha de reeleição para formar bolhas no eleitorado.
- Bolsonaro usou
de conspiracionismo, vitimização e pensamentos intrusivos para passar a
ideia de que as eleições de 2022 estava sob risco e de que ele próprio, em
simbiose com as Forças Armadas, seria o responsável por uma cruzada em
nome da transparência e da democracia.
- A transmissão
do evento e da fala pela TV Brasil e pelas redes sociais de Bolsonaro fez
a mensagem se alastrar rapidamente, efeito que foi potencializado pela
tendência das informações falsas, sobretudo em temas políticos, a circular
com maior velocidade e produzir mais engajamento.
- Quando o
evento ocorreu, Bolsonaro era pré-candidato. Isso permitiu sua a projeção
midiática antecipada de temas que foram explorados continuamente na
campanha, assegurando aos investigados vantagem eleitoral triplamente
indevida: em função do momento, em função do veículo e em função do
conteúdo.
·
Gravidade e consequências
O
voto também apontou a gravidade acentuada das condutas, uma vez que Bolsonaro
violou ostensivamente os deveres do Presidente da República listados no artigo
85 da Constituição Federal, de zelar pelo exercício livre dos Poderes
instituídos e dos direitos políticos e pela segurança interna.
“A
discrepância entre as declarações feitas e a realidade não constituem mera
imprecisão ou equívoco, mas, sim, desabrida manipulação de sentidos, conduzida
com método, para fins de manter suas bases políticas mobilizadas por elementos
passionais a serem explorados para fins eleitorais”, pontuou o ministro
Benedito.
Afirmou
ainda que o conteúdo veiculado por ele não poderia esclarecer pontos obscuros
sobre o processo eleitoral brasileiro, mas apenas incitar um “estado de paranoia
coletiva diante do amontoado de informações falsas ou distorcidas, relativas a
tema de alta complexidade técnica” as quais o próprio Bolsonaro não dominava.
As
consequências foram igualmente graves, uma vez que a reunião contribuiu para o
caos desinformacional a respeito da governança eleitoral e do sistema
eletrônico de votação, permitiu acionar a militância a partir de simples
menções a episódios que se amarram pelo conspiracionismo e permitiu a ele se
firmar como “fonte alternativa” de informação, com descrédito das instituições.
·
Abuso de poder político
Para
o ministro Benedito Gonçalves, a particularidade do abuso de poder político
praticado por Jair Bolsonaro está na utilização do cargo de Presidente da
República para finalidades eleitorais ilícitas.
Não
apenas ele usou a estrutura da residência oficial da Presidência e o cargo para
organizar evento com embaixadores em tempo recorde, como se apropriou da
simbologia do cargo como arma anti-institucional, segundo o relator, de maneira
a levar a atuação da Justiça Eleitoral ao completo descrédito perante a
sociedade e a comunidade internacional.
Na
análise do relator, o uso da máquina pública permitiu a Bolsonaro levar ao
eleitorado uma imagem de grande valor estratégico para sua candidatura:
viram-no lecionar para embaixadores, como se fosse uma autoridade na temática
do sistema de votação e na Justiça Eleitoral.
Como
complemento, Bolsonaro fez diversas menções às Forças Armadas durante o evento,
insinuando que o convite para a Comissão de Transparência do TSE as colocou
como garantes da lisura eleitoral e que poderiam atuar para em medida “fora das
quatro linhas da Constituição” caso fosse necessário.
Ø Para relator no TSE, reunião de Bolsonaro com
embaixadores excedeu paradigmas
Para
o ministro Benedito Gonçalves, do Tribunal Superior Eleitoral, a ação que
aponta abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação por Jair
Bolsonaro na reunião que fez com embaixadores em 2022 não apenas se enquadra em
um precedente paradigmático sobre o tema, como transborda em gravidade e
reprovabilidade.
A
comparação foi feita no voto apresentado ao colegiado na noite de terça-feira
(27/6) em que propôs a procedência da ação de investigação judicial eleitoral
(Aije) ajuizada pelo PDT para declarar o ex-presidente inelegível pelo prazo de
oito anos.
O
caso a que ele se reportou é o do deputado estadual Delegado Francischini
(PSL-PR), o primeiro parlamentar a ter o mandato cassado por
difundir fake news nas redes sociais. A punição foi definida pelo TSE em
outubro de 2021 e representou uma importante guinada jurisprudencial.
A
partir dali, a corte passou a entender
que,
embora o uso indevido dos meios de comunicação social seja tradicionalmente
associado a veículos como televisão, rádio, revistas e jornais, sua menção pela
Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) fornece um conceito aberto
capaz de abarcar redes sociais.
O
próprio Bolsonaro quase foi alvo dessa tendência quando, na mesma semana, escapou da cassação
pelo uso de disparos em massa via WhatsApp nas eleições de 2018. O TSE
entendeu que também esses aplicativos de mensagem podeM ser enquadrados como
"meio de comunicação" e virarem palco para abusos eleitorais.
Faltou comprovar a gravidade dos fatos.
Inclusive
naquela ocasião, o ministro Alexandre de Moraes, que ainda não era o presidente
do TSE, fez o alerta de que esses
precedentes seriam importantíssimos e mandou o recado: se em 2022 houver
repetição do que foi feito em 2018, registros seriam cassados e pessoas seriam
presas.
Bolsonaro
não só sabia do risco de usar lives para atacar a democracia,
o TSE e as eleições como, quando o Supremo Tribunal Federal manteve a cassação
de Francischini,
ironizou o julgamento ao dizer que "o que ele falou eu também falei"
e prometeu que "não viveria como um rato".
Ainda
assim, menos de um ano depois do precedente, ele organizou uma reunião com
embaixadores e usou-a de palco para difundir críticas ao TSE e desconfiança em
relação ao sistema eletrônico de votação, em evento transmitido por suas redes
sociais e também pela TV Brasil, da empresa pública estatal EBC.
·
Transbordou em tudo
Para
o ministro Benedito Gonçalves, dizer que o caso de Bolsonaro se amolda ao precedente
de Francischini é muito pouco. "Quase um eufemismo", alertou. "A
verdade é que os ilícitos comprovados neste feito em tudo transbordam os
critérios que haviam sido aplicados naquele julgamento", acrescentou.
O
relator usou termos contundentes para tratar da gravidade de tudo que envolveu
o episódio com os embaixadores. A ação de Bolsonaro foi mais leviana, por
tratar investigações sobre ataque hacker ao TSE e documentos oficiais com
distorções severas.
Transbordou
também no uso das prerrogativas do cargo público e do comando das Forças
Armadas, ao promover o acirramento de tensões institucionais. Foi ainda mais
virulenta, por atacar três ministros presidentes do TSE — Luis Roberto Barroso,
Luiz Edson Fachin e Alexandre de Moraes.
E
mais covarde, por forjar acusações contra servidores da Justiça Eleitoral.
Assim, degradou mais cadeia de confiança no TSE, o que levou a um cenário de
caos informacional que vem provocando danos graves ao debate democrático. E
manipulou os sentidos, ao transformar desejos de liberdade e transparência em
violência discursiva.
"Transbordam,
enfim, no golpismo, sob a forma de um flerte perigoso com soluções extremas
supostamente motivadas pelo desejo de eleições transparentes e autênticas,
obstinadamente repetido para jamais ser saciável", afirmou o relator da
Aije, que terá seu julgamento retomado na quinta-feira (29/6), pela manhã.
·
Caso Dilma-Temer
O
início do voto do relator ainda tratou de afastar qualquer ligação existente
entre a ação contra Bolsonaro e outro importante precedente do TSE, fixado em
2017, quando a corte se recusou a incluir
elementos novos no
julgamento que propunha a cassação da chapa
Dilma Rousseff-Michel Temer, eleita em 2014.
O
precedente foi usado pela defesa de Bolsonaro para se opor à inclusão da chamada
"minuta do golpe" na Aije do PDT. O documento foi encontrado na
casa do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, em janeiro
de 2023, muito depois da campanha e das eleições, mas foi considerado pelo
relator para
a análise do abuso do poder político.
Na
prática, a questão da delimitação da Aije já estava preclusa porque foi
analisada pelo TSE em fevereiro. Mas como foi repetida como preliminar pela
defesa de Bolsonaro, o ministro Bendito Gonçalves destacou que ela não
confronta, não revoga e não contraria a jurisprudência do TSE firmada no caso
da chapa Dilma-Temer.
Naquele
caso, a causa de pedir da Aije tratava de doações recebidas em 2012 e 2013,
declaradas à Justiça Eleitoral, mas de fonte ilícita, que permitiram a
determinados partidos assumir um poderio econômico desproporcional que refletiu
no resultado da eleição presidencial de 2014.
A
delação da Odebrecht — que fez
barulho, mas rendeu pouca coisa — que se tentou incluir naquele caso
visava ampliar a ação para incluir nela um delito autônomo e com elementos
próprios. À época, a defesa da chapa Dilma-Temer exortou o TSE a não
confundir "fatos
novos" com "provas novas".
"Os
fatos posteriores não foram apresentados como desdobramentos dos primeiros,
tampouco serviam para adensar ou corroborar a narrativa da petição
inicial", destacou o ministro Benedito Gonçalves. Já o caso da minuta do
golpe tem outra relação com a causa de pedir de Aije do PDT.
A
imputação foi de que Bolsonaro teria usado uma estratégia político-eleitoral
assentada em grave desinformação a respeito das urnas eletrônicas e da atuação
para o TSE. O episódio da minuta do golpe, assim, serviria para evidenciar os
efeitos concretos do estado de ânimo coletivo praticado pelo presidente.
"Portanto,
não se alterou a orientação traçada por este Tribunal. O que se tem são duas
situações totalmente distintas", afirmou o ministro Benedito
Gonçalves. "No pleito de 2022, a Corte admitiu que possa ser
discutido nesta Aije um fato posterior ao ajuizamento da ação que foi suscitado
para demonstrar a gravidade da conduta narrada na petição inicial. Se o autor
tem ou não razão, é tema para examinar no mérito", concluiu.
Fonte:
Por Danilo Vital, na Conjur
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