quarta-feira, 28 de junho de 2023

'Cocaína dos pobres': as ligações do tráfico com membros do governo sírio

Novas ligações diretas entre um esquema multibilionário de tráfico de drogas e os principais membros das Forças Armadas da Síria e a família do presidente Bashar al-Assad foram reveladas em investigação conjunta da BBC News Arabic e da rede de jornalismo investigativo OCCRP.

As transações envolvem o captagon, uma droga semelhante à anfetamina, altamente viciante, que tem atormentado o Oriente Médio nos últimos anos.

Apelidada de "cocaína dos pobres", ela é conhecida por ser mais barata que outras drogas e dar sensação de aumento de produtividade, suprimir a fome e o sono, e aumentar a energia.

No ano passado, a BBC acompanhou os esforços dos exércitos jordaniano e libanês para impedir que o captagon fosse contrabandeado da Síria para seus países. Agora, no entanto, a droga já é encontrada na Europa, África e Ásia.

Em março, a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a União Europeia impuseram sanções a uma lista de pessoas, incluindo dois primos do presidente Assad, suspeitas de envolvimento no comércio de captagon.

Mas a investigação da BBC, que mergulhou nas profundezas do narcoestado da Síria, encontrou evidências que apontam para o envolvimento de outros importantes funcionários sírios, além daqueles já incluídos nessa lista.

O governo da Síria não respondeu ao pedido de comentário da BBC. No entanto, negou anteriormente qualquer envolvimento com o tráfico de drogas.

Em julho de 2022, na cidade de Suweida, no sul da Síria, o quartel-general de Raji Falhout, líder de uma milícia aliada ao regime, foi invadido por um grupo rival.

Eles encontraram sacos do que pareciam ser pílulas de captagon preparadas para distribuição e uma máquina que poderia ser usada para prensar pílulas, bem como a carteira de identidade militar síria de Falhout e um telefone celular desbloqueado.

A BBC obteve acesso exclusivo ao telefone e encontrou trocas de mensagens entre Falhout e um contato libanês que ele chamou de "Abu Hamza". Nas conversas, eles discutiam a compra de uma máquina de prensar comprimidos.

A troca de mensagens, de agosto de 2021, mostrava Falhout e Abu Hamza falando sobre a transferência do maquinário do Líbano para a Síria.

Usando o número de telefone, a BBC estabeleceu a verdadeira identidade de Abu Hamza: Hussein Riad al-Faytrouni. Fomos informados por jornalistas locais que ele está ligado ao Hezbollah, o partido político libanês e grupo militante intimamente afiliado ao governo sírio.

Os combatentes do Hezbollah têm desempenhado um papel fundamental em ajudar o governo sírio a mudar a trajetória da guerra civil no país e estão presentes em toda a Síria. Há muito tempo são acusados de envolvimento com o narcotráfico, mas sempre negaram.

Falando conosco do exílio, um jornalista sírio da área de Suweida explicou: "O Hezbollah está envolvido, mas é muito cuidadoso para que seus membros não desempenhem papéis importantes no transporte e contrabando da mercadoria."

O Hezbollah não respondeu ao pedido da BBC para comentar sobre Faytrouni. Eles já negaram qualquer papel na produção e contrabando de captagon. Não foi possível contatar Falhout ou Faytrouni para prestar esclarecimentos.

Essa não foi a única vez que o Hezbollah apareceu em nossas investigações.

Após meses de preparação de segurança, a BBC conseguiu raro acesso às Forças Armadas da Síria na cidade de Aleppo, controlada pelo governo.

Um soldado, que falou conosco sob condição de anonimato, disse que o salário mensal de seus colegas soldados era inferior a 150 mil libras sírias (R$ 250).

Ele disse que muitos deles se tornaram traficantes de drogas para complementar sua renda e que isso se tornou uma rotina para eles.

Pedimos a ele que descrevesse o papel de sua unidade no comércio local de captagon.

"Não tínhamos permissão para ir à fábrica", disse. "Eles escolhiam um ponto de encontro e nós comprávamos do Hezbollah. Recebíamos as mercadorias e nos coordenamos com a Quarta Divisão para facilitar nosso movimento."

A Quarta Divisão é uma unidade de elite do exército sírio encarregada de proteger o governo de ameaças internas e externas. Desde 2018, é formalmente liderado por Maher al-Assad, o irmão mais novo do presidente Assad.

Maher al-Assad está sujeito a sanções ocidentais por realizar repressões brutais contra manifestantes durante a guerra civil da Síria. Ele também foi associado ao suposto uso de armas químicas.

Ele também teria supervisionado a transformação da Quarta Divisão em um importante ator econômico.

Conversamos com um ex-oficial que desertou do Exército sírio. "Por causa das difíceis condições financeiras pelas quais os soldados estão passando durante a guerra na Síria, muitos membros da Quarta Divisão recorreram ao contrabando", disse ele.

“Assim, os carros dos oficiais da Quarta Divisão começaram a ser usados para transportar extremistas, armas e drogas, já que esse era o único corpo capaz de passar pelos postos de controle na Síria.”

A economia da Síria, prejudicada por sanções e guerra, está agora perto do colapso. Segundo especialistas, ela se tornou cada vez mais dependente do lucrativo captagon.

"A escala das receitas... supera o orçamento do Estado sírio", disse Joel Rayburn, ex-enviado especial dos EUA à Síria, à BBC. "Se as receitas do captagon parassem de entrar ou fossem seriamente interrompidas, não acho que o regime de Assad sobreviveria."

A BBC encontrou mais evidências do envolvimento da família Assad no esquema.

Em 2021, começou no Líbano um julgamento contra um notório empresário sírio-libanês chamado Hassan Daqqou, apelidado de "Rei do captagon" pela imprensa libanesa. Ele foi considerado culpado por tráfico de captagon depois que um grande carregamento da droga foi apreendido na Malásia.

A carga, contendo quase 100 milhões de comprimidos, tinha como destino a Arábia Saudita, onde seu valor de mercado foi estimado entre US$ 1 bilhão e US$ 2 bilhões (R$ 4,7 e R$ 9,5 bilhões), tornando-se uma das maiores apreensões de drogas da história.

O caso foi julgado a portas fechadas, mas nossa equipe se reuniu com o juiz responsável, que nos disse que a maior parte das evidências foi obtida por meio da interceptação de ligações telefônicas entre Daqqou e vários traficantes de drogas.

No julgamento, Daqqou disse que estava colaborando com a Quarta Divisão do Exército sírio para combater os traficantes de captagon e apresentou uma carteira de identidade da Quarta Divisão como prova.

Daqqou disse à BBC que é inocente e que nenhuma evidência foi encontrada pelo tribunal para envolvê-lo no tráfico de captagon.

Enquanto Daqqou foi considerado culpado de tráfico, o juiz disse à BBC que nenhuma evidência foi encontrada para provar o envolvimento de autoridades sírias no esquema.

Nossa investigação, no entanto, encontrou indícios no documento judicial de 600 páginas que contam uma história diferente – uma série de prints de mensagens do WhatsApp que Daqqou enviou para alguém que ele salvou em seus contatos como “O Chefe”.

A BBC conversou com várias fontes de alto nível na Síria que confirmaram que o número pertencia ao major-general Ghassan Bilal. Ligamos para o número várias vezes, mas não obtivemos resposta.

O general Bilal é o número dois de Maher al-Assad na Quarta Divisão e é conhecido por dirigir seu poderoso escritório de segurança.

Nas mensagens de WhatsApp, Daqqou discutiu com “O Chefe” o transporte de "mercadorias" (que acreditamos ser captagon) para uma cidade síria chamada Saboora, onde a Quarta Divisão tem uma grande base, bem como a renovação das autorizações de segurança.

Se “O Chefe” realmente é o general Bilal, a conversa sugere que um dos oficiais mais graduados do Exército da Síria está ligado ao comércio ilegal de captagon, no valor de bilhões de dólares. Bilal não retornou nossa tentativa de contato para prestar esclarecimentos.

Em maio, a Síria foi reintroduzida na Liga Árabe e o presidente Assad participou de uma reunião do grupo regional pela primeira vez em mais de uma década. Ele também foi convidado para os Emirados Árabes Unidos para participar da COP28 em novembro.

A grande questão continua sendo até que ponto a comunidade internacional tentará pressionar o regime a combater o tráfico de captagon na Síria.

 

Ø  Como o captagon, a ‘cocaína dos pobres', se transformou em negócio multimilionário no Oriente Médio

 

Uma velha droga está de volta no mundo árabe: o captagon.

Por anos, ela foi utilizada como antidepressivo vendido sob prescrição médica no Ocidente, embora mais tarde tenha sido proibida quando seu alto potencial viciante foi demonstrado.

Até pouco tempo atrás, dizia-se que sua produção era uma das fontes de receita do autodenominado Estado Islâmico — e por isso ela foi apelidada de "droga dos terroristas".

Agora, investigações garantem que sua produção e distribuição em larga escala no Golfo Pérsico e no Oriente Médio é uma questão de Estado.

"Nosso estudo mostrou que o captagon se tornou a principal fonte de receita do governo sírio", disse à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) Caroline Rose, pesquisadora do Newlines Institute for Policy and Strategy, um centro de estudos com sede em Washington que publicou recentemente um relatório sobre a produção de drogas na Síria.

"Tudo sugere que pessoas próximas ao [presidente sírio] Bashar Al-Assad, incluindo seu irmão mais novo Maher al-Assad, comandante da Quarta Divisão Blindada do Exército [uma unidade de elite], estão por trás desse negócio, que se tornou o principal produto de exportação da Síria."

O governo sírio negou diversas vezes estar envolvido na produção do captagon. As autoridades sírias afirmam que os diversos relatórios e estudos sobre o assunto são falsos.

"A Síria desempenha um papel importante no apoio aos esforços da comunidade internacional para combater o crime em geral e o tráfico de drogas, em particular", escreveu o Ministério do Interior do país no Facebook em dezembro passado.

O ministro do Interior sírio, Muhammad al-Rahmoun, disse à agência de notícias estatal Athr Press em outubro de 2021 que "a Síria é um país livre de drogas", mas que sua localização geográfica "a torna um país de trânsito".

No entanto, o estudo do Newlines Institute for Policy and Strategy não é o único que aponta o dedo para o governo sírio.

Diversas fontes diferentes acusam o governo: relatórios da guarda costeira de vários países, incluindo Itália e Jordânia, investigações dos jornais The New York Times e The Guardian, o Projeto de Reportagem de Crime Organizado e Corrupção (OCCRP, na sigla em ingês) e o Centro de Análise e Pesquisa Operacional (COAR).

"A falta de atividades econômicas convencionais aumentou a atratividade relativa da especulação de drogas em escala industrial, que foi amplamente capturada e controlada por empresários ligados ao regime do presidente sírio Bashar al-Assad e aliados estrangeiros do regime", indicou o COAR no ano passado.

Com a economia síria em frangalhos após uma década de guerra e incapaz de se recuperar de sanções internacionais, o captagon se tornou uma indústria multibilionária, segundo pesquisas.

"As áreas onde a produção de captagon é mais pronunciada são aquelas controladas pelo regime de al-Assad e seus parentes próximos", diz o analista do COAR Ian Larson. "É uma conexão circunstancial, mas indicativa."

·         Os lucros

Segundo pesquisa do Newlines Institute, somente em 2021, o mercado ilegal de captagon gerou lucros estimados em US$ 5,7 bilhões (R$ 28 bilhões).

"Não podemos ter certeza de quanto desse dinheiro está indo para as mãos do governo sírio, mas pode-se argumentar que uma parcela significativa dessa receita provavelmente está indo para os bolsos dessas pessoas", diz Rose.

Ela diz que, após a guerra civil de mais de dez anos e as sanções contra a economia síria, o captagon tornou-se "uma fonte alternativa de receitas para o Estado", mas também para atores não-estatais.

"Muitos empresários e membros do setor agrícola e de desenvolvimento sírio também parecem estar envolvidos, o que é uma forma alternativa de lucro em uma economia devastada", diz.

·         De medicamento a droga proibida

O captagon foi sintetizado pela primeira vez na década de 1960 e usado em todo o mundo como um antidepressivo que também foi prescrito para outras condições, como transtorno de déficit de atenção e narcolepsia.

"Ele deixou de ser uma droga de prescrição, para ser proibida, e logo tornou-se uma substância ilícita amplamente difundida no Oriente Médio. Agora, passou a ser um dos produtos comercializados de forma ilegal mais definidores e dominantes naquela região, particularmente no Oriente Médio e no Golfo Pérsico", diz Rose.

Segundo a pesquisadora, sua popularidade nessa região do mundo se deve principalmente a dois elementos:

"No mundo árabe, os tabus que existem sobre as drogas são maiores do que no Ocidente. Como o captagon foi um medicamento legal e conhecido por muito tempo, isso fez com que sua popularidade não diminuísse", afirma a pesquisadora.

"É preciso ter em mente que em muitos dos países onde ele é consumido, as condições econômicas e políticas dificultam muito a vida, e o captagon é muito atraente para quem precisa trabalhar o dia todo, fugir de traumas ou fome, por causa de seus efeitos e por ser muito barato", diz Rose.

Isso levou a substância a ser também conhecida como "cocaína dos pobres".

O captagon faz com que a pessoa que o consome se sinta produtiva. Além disso, a droga suprime a fome e o sono e aumenta a energia, o que a tornou popular entre os jovens como droga recreativa.

"É preciso ter em mente que o captagon também evoluiu de sua fórmula original para incluir doses maiores de anfetaminas e, em muitos casos, outros agentes nocivos também são adicionados, como cobre, zinco, quinina, pseudoefedrina e outras substâncias", explica a pesquisadora.

Os estudos que levaram à sua proibição também mostraram que a droga pode ser viciante, e algumas pesquisas sugeriram que ela pode levar a comportamento violento, pressão alta e problemas cardiovasculares.

"O captagon tem usos diversos, e por isso se tornou uma substância muito interessante e fascinante, que possui múltiplos e distintos perfis de usuários", diz Rose.

·         O mercado sírio

Embora o captagon tenha sido consumido no mundo árabe muito antes da chegada do Estado Islâmico ou da guerra na Síria, sua produção nos últimos anos atingiu níveis recordes.

Uma investigação no final de 2021 do jornal americano The New York Times mostrou que mais de 250 milhões de pílulas de captagon foram apreendidas no mundo naquele ano, uma quantidade 18 vezes maior do que a apreendida há quatro anos.

Segundo Rose, as estatísticas de 2022 até agora sugerem que o contrabando de captagon será ainda maior.

"Há uma grande produção da droga, que envolve não só o governo sírio, mas também latifundiários, pecuaristas e empresários do mundo árabe que atendem à demanda de um mercado crescente", diz o especialista.

"Mas, logicamente, fazer isso por métodos individuais ou de pequenos grupos não é o mesmo que quando você é um Estado e coloca parte de suas forças a serviço da produção e distribuição dessa substância, o que basicamente a coloca em nível industrial", ela acrescenta.

Rose afirma que sua pesquisa, realizada em conjunto com o analista Alexander Söderholm, mostrou que nos últimos anos as formas como o governo al-Assad e o exército sírio se envolveram na produção e distribuição do captagon se tornaram mais sofisticadas.

O relatório do Newline Institute indica que o governo sírio atua desde a produção até a distribuição da substância.

"Descobrimos que existem vários lugares onde ela é produzida que estão associados ao exército sírio, mas as autoridades sírias também facilitaram a produção de captagon com laboratórios e fábricas de pequeno, médio e às vezes grande escala."

"E, claro, com o transporte dessas drogas para os principais portos estatais ou às vezes portos não oficiais ao longo da costa síria ou libanesa e ao longo dos pontos de fronteira. É uma rede tão complexa e tão dinâmica que torna a Síria provavelmente o mais moderno dos narcoestados."

Um carregamento de captagon avaliado em US$ 100 milhões (R$ 497 milhões) foi apreendido em um porto grego em 2020.

O navio havia iniciado sua viagem no porto de Latakia, sob controle do governo sírio, e a droga estava escondida sob café, especiarias e serragem.

Uma investigação do OCCRP (sigla em inglês para Projeto de Denúncia de Crime Organizado e Corrupção) indicou que o proprietário do navio era Taher Al-Kayali, alvo de sanções pelas autoridades italianas e supostamente relacionado a Mudar al-Assad, primo do presidente sírio.

O Ministério do Interior sírio, por sua vez, afirmou que "está se esforçando ao máximo para enfrentar os traficantes de drogas, e para reprimir esse fenômeno, perseguindo as redes de contrabando e tráfico de drogas e apreendendo substâncias entorpecentes".

·         Uma nova fonte de renda

O relatório do Newsline Institute aponta que a droga tem sido uma brecha para obter dinheiro na grande muralha de sanções que cerca a Síria, como resultado da guerra de mais de dez anos.

"O regime sírio encontrou no captagon uma oportunidade para neutralizar e minar os efeitos dessas sanções e da crise, principalmente aquelas sanções que afetam membros individuais do governo, seus afiliados e aliados", diz.

Dado que o captagon se tornou uma substância altamente lucrativa e popular tanto no Oriente, quanto no Golfo Pérsico, e com a capacidade de atingir novos mercados, a pesquisa indica que mesmo com o término da guerra na Síria dificilmente vai pôr fim à sua produção em larga escala.

Pelo menos não enquanto al-Assad e sua família permanecerem no poder.

"Projetamos que esse comércio continuará a se expandir ao longo do tempo. Claro, isso representa não apenas um desafio regional de aplicação da lei, mas também um desafio à segurança humana, já que muitas pessoas continuarão a usar essa droga sem regulamentação ou supervisão, e mais ainda quando vemos que sua fórmula está sendo alterada", diz Rose.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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