Longe de Stonewall,
ativismo por direitos LGBTQIA+ no Brasil tem lista extensa de conquistas e
ícones
Durante
o Mês do Orgulho, é comum haver referências frequentes ao episódio ocorrido no
bar Stonewall Inn, em Nova York, como um dos momentos mais importantes para a
conquista de direitos da população LGBTQIA+ no mundo. Ainda que a relevância
dos acontecimentos seja incontestável, a narrativa do progresso da comunidade
no Brasil é igualmente expressiva e repleta de histórias de resistência.
Com
a ajuda de três especialistas no assunto, e que também são importantes nomes
para o movimento, o Terra elenca alguns dos momentos mais importantes para a
população LGBTQIA+ e traz alguns dos principais nomes que contribuíram para que
a comunidade alcançasse mais direitos no País.
• O que foi Stonewall e sua importância
Antes,
é importante estabelecer o que foi a revolta ocorrida em Stonewall e por que
ela é tão importante. Em 1969, o bar Stonewall Inn, em Nova York, era um dos
locais mais frequentados pela comunidade e que sempre sofria com ações da polícia.
No entanto, no dia 28 de junho, cansadas da repressão policial, pessoas
LGBTQIA+ se revoltaram e fizeram um motim.
A
partir daí, a data começou a ser considerada um marco da liberação da população
LGBTQIA+ e inspirou o ativismo pelos direitos da comunidade em outras
localidades. Por conta da data, cidades ao redor do mundo realizam paradas com
multidões nas ruas trazendo reinvindicações e celebrando o orgulho de pertencer
à comunidade.
• Por que precisamos falar do movimento
brasileiro
Embora
a luta LGBTQIA+ tenha um pouco de relação com eventos internacionais, o
movimento brasileiro teve suas particularidades, desafios e vozes que se
ergueram para combater a discriminação e buscar igualdade de direitos.
Segundo
o autor do livro Stonewall 40 + o que no Brasil? e professor da Universidade
Federal da Bahia (UFBA), Leandro Colling, o Brasil precisou de mais dez anos
depois de Stonewall para assistir à criação de um grupo homossexual organizado.
"Trata-se do grupo Somos, que funcionou de 1978 a 1983. As travestis
passaram a ter um grupo próprio apenas em 1992, com a fundação da Associação de
Travestis e Liberados - ASTRAL, no Rio de Janeiro". O motivo para essa
demora era a grande repressão sofrida pela comunidade LGBTQIA+ durante a
Ditadura Militar (1964 - 1985).
Colling,
que é professor no curso de Especialização em Gênero e Sexualidade na Educação
da UFBA, conta ainda que um episódio no Brasil parecido com o ocorrido em
Stonewall "é atribuído ao que aconteceu no dia 19 de agosto de 1983, no
Ferro’s Bar, em São Paulo, protagonizado por lésbicas. Elas frequentavam o bar
e queriam distribuir o jornal Chana com Chana no local e o proprietário não
queria permitir. Elas resistiram e fizeram uma manifestação que gerou um pedido
de desculpas do dono do bar".
Com
a organização de um movimento por direitos da comunidade LGBTQIA+, uma série de
conquistas foram alcançadas por aqui. Entre ela, é possível destacar:
• A descriminalização da homossexualidade
em 1830;
• o direito à adoção por casais do mesmo
gênero em 2010;
• a legalização do casamento igualitário
em 2013;
• a criminalização da homofobia pelo
Supremo Tribunal Federal em 2019; e
• a possibilidade de pessoas trans
retificarem seu nome sem decisão judicial em 2018.
"Avançamos
sim, mas ainda falta muito a melhorar, em especial no tocante às políticas
públicas. Avançamos em uma imensa expansão da visibilidade e representatividade
de nossa comunidade em vários espaços, em especial na mídia e nas ruas, através
das Paradas e vários outros eventos. Avançamos também nas três grandes vitórias
através das ações que geraram decisões históricas do STF, como a união civil,
que depois foi convertida em casamento civil igualitário, equiparação da
homofobia ao crime de racismo e a mudança de nome e gênero nos documentos das
pessoas trans sem a necessidade de laudo ou ação judicial", pontua
Colling, que também aponta alguns entraves.
"Ainda
faltam políticas públicas efetivas e com recursos em todas as esferas
administrativas para o respeito à diversidade sexual e de gênero. Cadê o Escola
sem homo-lesbo-transfobia, por exemplo? Estamos esperando! Cadê políticas
específicas de segurança para acabar com a matança de pessoas LGBT, em especial
trans, no Brasil? Temos muito a melhorar também na representação de pessoas
LGBT nos parlamentos, que precisam aprovar leis pelos direitos das pessoas
LGBT", completa Colling.
O
doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília, Cleyton Feitosa,
também entende que houve avanços, mas vê obstáculos para aumentar essas
conquistas. Entre eles, está o cenário de grande representatividade nos Poderes
Executivo e Legislativo por parte de setores mais conservadores e que muitas
vezes barram pautas progressistas.
"A
gente vem conquistando diversas importantes iniciativas nessas últimas décadas,
mas, ao mesmo tempo, a gente ainda tem muito a melhorar nas políticias
públicas. O que eu acredito que a gente tem a melhorar tem relação com o fato
da população LGBTQIA+ verem essas políticas chegarem no cotidiano, em suas
vidas. Muitas dessas iniciativas também precisam ser efetivadas", diz
Feitosa, que também é mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de
Pernambuco e autor do livro Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no
Brasil.
"A
gente tem um problema no Brasil que é uma ausência de dados. Seria muito
importante dados oficiais, dados governamentais, para observar números de
violência, por exemplo", conclui Feitosa.
O
fundador do Grupo Gay da Bahia, Luiz Mott, afirma perceber que a sociedade
brasileira aceita melhor a população LGBTQIA+ atualmente. Porém, "o Brasil
é um País contraditório em muitos aspectos. Melhoramos em muitos níveis: a
mídia não usa termos preconceituosos e xulos para se referir (à população
LGBTQIA+). Há uma maior visibilidade na TV. Políticos e personalidades se
assumem com mais frequência. Ao mesmo tempo, famílias ainda discriminam,
expulsam de casa. Os assassinatos continuam", explica.
• Alguns dos nomes mais importantes no
ativismo
O
ativismo LGBTQIA+ no Brasil contou com pessoas que se tornaram ícones na luta
pelos direitos da comunidade. Entre esses nomes estão:
#
João Antonio Mascarenhas: fundador do Movimento Homossexual Brasileiro e do
jornal O Lampião, que circulou durante a repressão da Ditadura Militar e
abordava desde questões políticas a culturais;
#
João Silvério Trevisan: escritor e ativista, é autor de obras importantes que
abordam a temática LGBTQIA+, como Devassos no Paraíso (1986);
#
Luiz Mott: antropólogo, historiador e pesquisador, fundou em 1980 o Grupo Gay
da Bahia, a organização não governamental mais antiga de defesa dos direitos da
população gay ainda em atividade no Brasil;
#
Cassandra Rios: escritora e ativista lésbica, deixou um legado para a
visibilidade das mulheres lésbicas no País e, mesmo perseguida e ameaçada pela
ditadura militar, seguiu escrevendo;
#
Dzi Croquettes: grupo de teatro que revolucionou a cena artística brasileira,
usando o humor e a irreverência para abordar questões LGBTQIA+;
#
Keila Simpson: ativista trans e presidente da Associação Nacional de Travestis
e Transexuais (ANTRA), tem uma voz atuante na luta pelos direitos trans no
Brasil;
#
Paulo Iotti: advogado que atuou nas ações no STF pelas uniões civis entre
pessoas do mesmo sexo, pela criminalização da homofobia e pela mudança de nome
e gênero nos documentos das pessoas trans;
#
Toni Reis: presidente da Alianca Nacional LGBTI+ e diretor executivo do Grupo
Dignidade, que atuam na promoção e defesa dos direitos e cidadania da
comunidade LGBTQIA+;
#
Miriam Martinho: mulher lésbica e ativista, luta pelos direitos das mulheres
lésbicas e produziu o boletim Chanacomchana, cuja proibição de sua distribuição
em um bar paulistano gerou revolta e protestos em 1983;
#
Katia Tapety: ativista travesti, em 1992 foi a primeira travesti eleita na
política no município de Colônia do Piauí;
#
Brenda Lee: considerada "o anjo da guarda das travestis", a cantora e
ativista trans é fundadora da primeira casa de apoio para pessoas portadoras de
HIV;
#
Jorge Lafond: ator e drag queen, destacou-se por sua atuação artística e
visibilidade;
#
Jean Wyllys: gay, ex-deputado federal e ativista, luta pelos direitos da
comunidade e é uma voz importante no cenário político brasileiro;
#
Erika Hilton: primeira vereadora trans da cidade de São Paulo e atualmente
Deputada Federal, atua na defesa dos direitos LGBTQIA+ e na promoção da
igualdade racial.
Os
especialistas ouvidos pelo Terra apontam ainda uma importante participação de
grupos de teatro, como o pernambucado Vivencial Diversiones e o Teatro Oficina,
de São Paulo e artistas como Rogéria, Daniela Mercury, Cássia Eller, Renato
Russo, Cazuza, Pabllo Vittar, Linn da Quebrada e Gloria Groove, por terem se
destacado no mundo artístico e alcançado as massas.
61% dos profissionais LGBT+ não se
assumem no trabalho com medo de perder emprego
Luiz*
tem 29 anos e, desde os 13, se entende como homossexual. Sua orientação sexual,
que há muito tempo é uma “situação resolvida” para si mesmo, parece não ser
para quem divide o expediente com ele.
Morador
de uma cidadezinha de 23 mil habitantes do interior do Espírito Santo, Luiz é
um funcionário público do primeiro escalão que precisa se esconder atrás de uma
norma que não lhe pertence para garantir sua sobrevivência profissional. “É uma
situação muito séria, acabo não falando da minha orientação sexual em nenhum
espaço e em nenhum momento”, conta em entrevista ao Terra.
Ele
fica atento ao que fala, como se veste e até como gesticula. O receio de ter
sua vida íntima exposta e, consequentemente, até perder o emprego mina suas
chances de ser feliz na cidade onde nasceu e foi criado.
“Acho
isso pavoroso, mas é muito dual. Por mais que eu ache a coisa mais pavorosa,
asquerosa e ilógica possível dentro da sociedade, na realidade a gente acaba
vivendo isso para poder ter uma oportunidade profissional”, desabafa.
Esta
é a realidade não só de Luiz, mas de muitos outros brasileiros. Aproximadamente
61% dos profissionais LGBTQIA+ no Brasil optam por não declarar a própria
orientação sexual no trabalho para colegas e gestores, segundo o levantamento
Out in the World: Securing LGBT Rights in the Global Marketplace (No mundo:
garantindo os direitos LGBT no mercado global, em tradução livre), produzido
pela Center for Talent Innovation.
O
estudo também mostrou que 49% dizem que encobrem ou minimizam sua identidade
LGBT+ no ambiente profissional.
• Homofobia no trabalho
O
especialista em liderança e facilitador de treinamento Bruno Moura, de 35 anos,
foi vítima de homofobia dentro do ambiente corporativo em duas empresas. Em uma
delas, ouviu de seu diretor, após uma apresentação, que o sócio pediu para ele
não “desmunhecar muito a mão” na próxima. “De todos os feedbacks, ele poderia
ter falado outras coisas, ou ter poderado”.
Na
segunda, o caso virou denúncia e ocorreu dentro de uma multinacional da
indústria de cigarros onde atuou em 2015. Quatro pessoas estavam envolvidas e
acabaram demitidas: o head do centro de serviços compartilhados; a secretária
dele; um subordinado de Bruno; e uma gerente.
“Nos
primeiros momentos, de forma alguma consegui identificar que se tratava de
homofobia, primeiro que desde criança eu sofria isso e se tornou rotineiro.
Acho que a minha régua era muito comprida para isso”, explica.
Durante
a sua jornada, passava por descredibilização de seu trabalho, era
desautorizado, tinha reuniões desmarcadas com o head minutos antes delas
acontecerem e projetos que eram da sua área sendo passados para outras. Por
vezes, ouviu ‘piadas’ que transformavam em ‘humor’ aquilo que jamais deveria
ser motivo de risada.
“Em
alguns momentos, ele [head] falava coisas do tipo: ‘eu aceito pessoas gays, mas
a minha família não’. Ele nunca chegou a falar abertamente, que não gostava de
mim porque eu era gay”, afirma.
Durante
o período que esteve na empresa, seu corpo começou a avisar que algo estava
errado. Passou por episódios de insônia, depressão e precisou tomar remédios
para se tratar. Só quando foi desligado foi que percebeu as microviolências que
havia sofrido durante meses.
“Eu
fiquei uns dias ruminando, tentando entender o que eu fiz de errado. Foi aí que
decidi denunciar no canal da empresa. Fiz uma carta de seis páginas, mas sempre
com muito medo. Como se prova uma coisa dessa? [...] Não tive qualquer amparo”,
relembra.
Sua
denúncia deu início a uma investigação dentro da empresa. Nesse meio tempo, ele
descobriu que até seu computador foi acessado indevidamente, sob autorização do
head, para verificar se ele havia vazado dados sigilosos.
Após
a conclusão do caso, as pessoas envolvidas no caso foram demitidas. Ele optou
por não processar a multinacional e seguiu a vida.
• Ações trabalhistas
A
maioria dos casos, porém, não encontra resolução dentro das companhias. Só em
2022, foram ajuizadas 28,3 mil ações trabalhistas envolvendo reparação por atos
discriminatórios por questões de racismo e demais violências como homofobia e
transfobia, conforme apontam dados disponibilizados pelo Tribunal Superior do
Trabalho (TST).
Essa
busca pelo amparo na Justiça deve ser a última alternativa, segundo a advogada
Gabriela Augusto, que lidera a Transcendemos, empresa que auxilia outras
empresas a adotarem ações de diversidade e inclusão.
“Eu
sempre ressalto a importância dos canais de denúncia. Geralmente, as empresas
possuem um canal onde você pode colocar a sua situação, o seu descontentamento,
as violências que você sofre para, de alguma maneira, a organização endereçar
esse problema”, afirma Gabriela, que é uma mulher trans negra.
Caso
o trabalhador tenha condições de deixar o emprego onde se sente desconfortável,
a sugestão da advogada é que isso seja feito. Se não, depois de tentar resolver
o caso internamente e ainda assim houver problemas de cunho discriminatório,
então o conselho da especialista é que o empregado busque os meios jurídicos
para resolver a questão.
• Cuidado com microagressões
Nem
sempre o preconceito é explícito. Ele pode surgir em pequenas falas e atitudes,
por meio das chamadas microagressões, segundo explica Gabriela. “Muitas dessas
violências são proferidas de uma maneira tão contínua, é tão normalizado, que a
maior parte das pessoas não percebe. Acham que é só uma brincadeira ou uma
piada”, diz.
Uma
dica de como o profissional pode analisar se aquelas “brincadeiras” estão
passando do limite é notar o seu próprio comportamento com relação a elas. A
advogada alerta que essas violências podem causar algo muito mais profundo a
quem as ouve.
“Presta
atenção em si mesmo, se você anda mal, anda triste, anda ansioso. Será que isso
não tem a ver com a cultura do lugar onde você está? Se você está com medo de
falar sobre o assunto, de se colocar numa reunião ou num evento, será que isso
não tem a ver com a falta da sua empresa?”, questiona.
*Os
nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.
Fonte:
Terra
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