Como a gravidade
era explicada antes de Newton
A
história da maçã caindo sobre a cabeça do físico inglês Isaac Newton
(1643-1727) pode não passar de uma lenda. Mas é consenso que a lei da
gravitação universal, o princípio que explica por que as coisas caem, foi formulado
por ele na obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, em
1687.
Obviamente,
as coisas já caíam antes de Newton. Mas como será que as pessoas encaravam o
fenômeno? Qual era a explicação, até o século 17, para o que hoje chamamos de
gravidade?
Muito
anos depois de Newton, o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) diria que
"a gravidade é a primeira coisa em que não pensamos". Afinal, parece
natural a ideia de que uma pedra arremessada caia, do mesmo jeito que uma fruta
não colhida do pé, ou que um tropeço bobo seja prenúncio de um tombo.
No
livro Por Que as Coisas Caem? Uma História da Gravidade, publicado
pela editora Zahar em 2009, os astrônomos Alexandre Cherman e Bruno Rainho
Mendonça partem da constatação de que a gravidade, sem dúvida, "é especial".
"Se
não fosse, como explicar que os dois maiores gênios das ciências, Isaac Newton
e Albert Einstein, tenham se dedicado a ela? E não só isso: tenham sido alçado
a essa condição genial justamente por terem vislumbrado parte de seus
segredos?", escreve Cherman.
Segundo
ele, a importância da gravidade reside em dois fatores: ela é universal,
"para usar uma palavra cara a Newton", e geral, "usando um termo
querido de Einstein".
Mas
como se explicava antes?
Para
responder essa pergunta, é preciso voltar na história da ciência até
Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.). O sábio grego é considerado um dos mais
influentes pensadores da história ocidental — e muito da própria lógica do
pensamento científico se deve a suas prerrogativas.
"Ele
dividia um pouco os fenômenos a partir dos elementos, e entendia que havia uma
tendência natural do objeto que pertencia a determinado elemento a voltar à
posição desse elemento", explica à BBC News Brasil o físico Rodrigo
Panosso Macedo, pesquisador de pós-doutorado no Instituto Niels Bohr, na
Universidade de Copenhagen, na Dinamarca.
"Assim,
se um objeto era feito de terra, sua tendência natural seria voltar para a
terra, por isso ele cairia. Já um objeto feito de ar gasoso teria a tendência
natural de voltar para o ar, por isso ele subia."
No
livro em que é coautor, Bruno Rainho Mendonça volta um pouco mais no tempo e
cita algumas referências à compreensão do fenômeno por parte de sábios hindus,
antes mesmo de Aristóteles.
Uma
representação pictórica possivelmente do século 8 a.C. indica que esses
filósofos já acreditavam que a gravitação mantinha o Sistema Solar unido — e
que o Sol, por ser o astro com a maior massa, deveria ocupar a posição central
no modelo.
"Outro
registro interessante também realizado na Índia Antiga pode ser encontrado no
trabalho de um sábio hindu chamado Kanada, que viveu no século 6 a.C.",
escreve.
"Foi
ele quem fundou a escola filosófica de Vaisheshika."
Rainho
Mendonça explica que Kanada associava "o peso" à queda, entendendo o
primeiro como o causador do fenômeno.
"A
intuição do sábio hindu estava no caminho certo, mas havia ainda um longo
trajeto a ser percorrido em termos conceituais."
O
astrônomo concorda, no entanto, que o marco zero no conceito de gravidade deve
ser atribuído a Aristóteles, "pois apesar de seu trabalho nessa área não
representar a realidade atual, o conhecimento nele difundido perdurou por
muitos séculos após sua morte".
"Até
a modernidade, com as novas pesquisas e teorias desenvolvidas na renascença
[…], a física aristotélica predominou em muitos centros de estudos da
Antiguidade e Idade Média", diz à BBC News Brasil o físico, filósofo e
historiador José Luiz Goldfarb, professor de história da ciência na PUC-SP.
"[Ele]
explicava a queda dos corpos pela ideia de que a Terra era o centro do
Universo, e os corpos pesados tendiam a ocupar seu lugar natural neste
centro."
Em
outras palavras, "é dizer que as coisas caem quando estão soltas, pois
tendem a ocupar seu lugar natural no centro do Universo, a Terra", analisa
Goldfarb.
Etimologicamente,
é interessante notar que a palavra gravidade deriva do latim gravis —
tem a mesma origem da palavra "grave", portanto. Seu campo semântico
vai do "pesado" ao "importante", passando por sentidos como
"poderoso".
Segundo
o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, do filólogo e
lexicógrafo Antônio Geraldo da Cunha, o termo "gravidade" já aparece
a partir do século 13 — mas as variações "gravitar" e
"gravitação" só surgem no século 18, indicando a repercussão da
física newtoniana sobre as terminologias.
Em
texto assinado por Cherman no livro Por Que as Coisas Caem?, há uma
divagação sobre o termo em sânscrito para a gravidade: gurutvaakarshan.
"Repare
o início da palavra: 'guru'. É justamente o termo usado para designar os
respeitados mestres espirituais e chefes religiosos do hinduísmo", afirma.
"E,
em uma corruptela, também resulta no grego 'barus' (pesado), origem da palavra
‘barítono’ (de voz grave)", acrescenta o astrônomo.
Já
em um capítulo escrito por Rainho Mendonça no mesmo livro, ele explica que o
uso do termo em latim gravis para designar o fenômeno da
gravidade tem início a partir do século 8, com traduções de tratados
científicos do mundo árabe para a Europa.
"E
é assim que surge o termo que é objeto de nosso estudo: gravidade", diz o
pesquisador.
"E
no contexto que nos interessa, pois ao se referir a objetos de grande peso, as
traduções latinas usavam a palavra cuja raiz é o adjetivo gravis,
grave, que significa 'pesado'."
"Não
é possível precisar a primeira vez que esse termo foi empregado", observa
o autor.
Mas,
para ele, o surgimento das primeiras universidades europeias, onde o latim era
a língua oficial, contribuiu para a disseminação da nova nomenclatura. "[…
nas] universidades de Bolonha, Paris, Oxford, entre outras, que utilizaram a
maioria daquelas obras [árabes] traduzidas."
Embora
o pensamento aristotélico tenha predominado, sobretudo no mundo ocidental, e a
Idade Média tenha entrado para a história como a "era das trevas" no
que tange à evolução do conhecimento, é inegável que houve avanços científicos
nos 2.000 anos que separam Aristóteles e Newton.
"Hoje
historiadores da ciência conseguem detectar pensadores da Antiguidade e da
Idade Média que já elaboraram ideias com maior proximidade da teoria newtoniana
do que a física aristotélica, ainda que oficialmente prevalecesse a teoria do
filósofo grego", afirma Goldfarb.
O
livro Por Que as Coisas Caem? oferece um panorama desse
cenário. Rainho Mendonça cita, por exemplo, as pesquisas do filósofo árabe Abu
Yusuf al-Kindi (801-873).
"Em
seu tratado Sobre Raios (Solares), ele declarou que os astros
exerceriam uma força sobre os objetos e sobre as pessoas."
"Essa
força estaria associada à radiação dos astros, que se propagaria em linha reta
pelo espaço e influenciaria as coisas na Terra", diz o astrônomo.
Um
pouco mais tarde, o filósofo de origem judaica Solomon Ibn Gabirol (1021-1058)
também se debruçou sobre o tema, "com um raciocínio simples, mas
incipiente", como pondera Rainho Mendonça.
A
contribuição dele foi para a noção da inércia.
"Segundo
ele, substâncias extensas e pesadas seriam mais imóveis que outras mais
leves", explica.
Já
o filósofo e astrônomo iraniano Abd al-Rahman al-Khazini (1077-1155) apresentou
a ideia de que corpos pesados em queda se moviam sempre em direção ao centro do
planeta.
"Porém,
ainda mais interessante foi sua proposição de que a thiql (termo
em árabe que muitos autores traduzem como 'gravidade') dos corpos dependia de
suas distâncias em relação ao centro da Terra", acrescenta.
Embora
tenham surgido muitas teorias nesse intervalo de tempo, uma ideia predominou —
e, de certa forma, é muito próxima ao conceito da inércia.
Segundo
o físico Fábio Raia, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, "a
teoria mais difundida […] era a teoria do ímpeto […], que dizia que o contínuo
movimento de um corpo se dá pela ação contínua da força".
"Quando
essa cessava, o corpo voltaria ao seu estado de movimento natural", diz
ele à BBC News Brasil.
Rainho
Mendonça ressalta, nesse ponto, o papel fundamental do filósofo alexandrino
Iohannes Philoponus (490-570).
"De
acordo com ele, ao ser arremessado, um corpo recebe uma espécie de força
motriz, que seria transferida do lançador para o projétil, permanecendo nele
mesmo após o fim do contato. Com o passar do tempo, tal 'força' se dissiparia
espontaneamente, fazendo com quer o movimento se encerrasse", explica.
No
caso da queda de objetos, contudo, Philoponus já entendia que essa força era
provocada por algo que hoje é definido como gravidade.
"Segundo
essa ideia, a Terra exercia uma atração sobre os objetos, que os puxava em
direção ao seu centro", explica à BBC News Brasil o filósofo Andrey
Albuquerque Mendonça, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing de
São Paulo (ESPM-SP).
Ele
lembra, no entanto, que havia vozes dissonantes, como a do filósofo e teólogo
francês Jean Buridan (1301-1358), que "propôs uma teoria alternativa para
explicar a queda dos objetos".
"Ele
argumentou que os objetos caíam devido a uma força interna que os impelia para
baixo, mas não conseguiu explicar o que causava essa força."
Vale
lembrar que tanto Leonardo da Vinci (1452-1519) quanto Galileu Galilei
(1564-1642) estudaram a queda dos objetos. De acordo com Albuquerque Mendonça,
o primeiro "propôs que a velocidade da queda dependia da densidade do
objeto e da resistência do ar", enquanto o segundo "determinou que
todos os objetos caíam com a mesma aceleração, independente do seu peso".
Nenhum
dos dois, no entanto, conseguiu chegar a uma lei universal para o fenômeno.
A
sacada de Newton foi genial porque ele conseguiu, certamente com o conhecimento
acumulado por seus antecessores, não só entender uma força universal e
fundamental, como também torná-la um fenômeno explicável.
Foi
uma verdadeira revolução científica.
"Ele
incorporou em suas teorias as novas concepções cosmológicas, afastando-se do
universo aristotélico", resume Goldfarb.
"Assim
não se pensava mais na queda para o lugar natural, mas surgia a concepção da
atração entre os corpos, a lei da gravitação: a matéria atrai matéria na razão
direta das massas e pelo inverso do quadrado da distância entre os
corpos."
Segundo
ele, foi quando deixou-se de "pensar em tendências para ocupar o lugar
natural" e começou-se a "entender os movimentos de queda dos corpos
como o resultado da atuação da força que a Terra exerce sobre os corpos".
"Podemos
concluir que a mecânica introduzida por Newton envolve profundas alterações no
modo como o mundo moderno passou a conceber o cosmos, os corpos e as leis que
regem seus movimentos", diz ele.
"A
teoria de Newton foi um marco importante na história da ciência e é considerada
uma das maiores conquistas intelectuais da humanidade", define Albuquerque
Mendonça.
Fonte:
BBC News Brasil
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