Acesso a
medicamentos e esqueletos no armário
No
Brasil, as despesas com saúde são o principal item nos gastos para as famílias
de baixa renda. Destacam-se nesses gastos aqueles destinados à compra de
medicamentos e daí resulta que a ampliação do acesso a esses produtos deve ser
uma tarefa central do Sistema Único de Saúde. O principal programa com esse
objetivo, existente desde o primeiro governo do presidente Lula, é o Farmácia
Popular (FP), em suas três versões (Farmácia Popular do Brasil, Aqui Tem Farmácia
Popular e Saúde Não Tem Preço). Recentemente, a ministra Nísia Trindade
relançou o programa, que havia sido bastante negligenciado nos últimos anos.
Esse
relançamento aperfeiçoou e ampliou o programa, sendo as mudanças mais
importantes o aumento do número de produtos incluídos e um maior direcionamento
da FP aos segmentos populacionais onde tais gastos pesam mais. Isto se deu
mediante um critério socialmente orientado, tanto na adesão de novas farmácias
ao programa quanto na inclusão automática dos participantes do Bolsa Família –
22 milhões de famílias – na modalidade de gratuidade completa.
O
novo critério de adesão de farmácias privadas passa a obedecer a necessidades
de saúde em cada território e não mais em critérios de mercado estabelecidos
pelas redes de farmácias. Certamente, um passo muito relevante que deverá ter
impacto sensível nos gastos das famílias bem como nos indicadores de doença e
morte para algumas enfermidades.
Mas
nem tudo são flores nas políticas de acesso a medicamentos, pois ao longo da
conjuntura dos últimos seis anos foram realizadas movimentações e apresentadas
propostas que vão no sentido oposto. São algumas ideias fora do lugar que,
neste momento, aparecem como “esqueletos no armário” e, caso sejam
implementadas, podem impactar negativamente a ampliação do acesso a
medicamentos.
Vejamos:
1.
A Lei de propriedade intelectual brasileira foi promulgada em 1996, apenas dois
anos após a assinatura dos acordos TRIPS na Organização Mundial do Comércio
(OMC). Esses acordos, datados do período de euforia neoliberal, promoveram uma
radicalização do regime internacional de patentes em benefício dos países
detentores da maior parte das patentes no mundo. Dentre as suas cláusulas havia
a previsão de um período de até dez anos para que os países pudessem ajustar
seus interesses às novas regras. O Brasil não apenas promulgou logo a sua lei
como incluiu nela dispositivos ainda mais radicais, denominados TRIPS-plus. O
mais relevante foi o parágrafo único do artigo 40 da lei, que estabelecia a extensão
do prazo de proteção patentária além dos 20 anos previstos nos acordos da OMC
por até 10 anos a partir da data da concessão da patente.
Pesquisa
realizada em 2016 estimou que esse dispositivo implicou em um custo adicional
para o SUS de R$ 2,1 bilhões relacionados a nove medicamentos selecionados.
Outra estimativa indicou perdas de R$ 288,4 milhões para três medicamentos
antirretrovirais (1). Em 6/5/2021, o STF declarou inconstitucional esse
dispositivo (Ação Direta de Inconstitucionalidade 5529). Inconformada, através
de seus representantes sindicais e de escritórios de advocacia, a indústria
farmacêutica multinacional vem procurando encontrar brechas nessa decisão,
sugerindo atalhos legais capazes de manter a extensão do período de proteção.
Até agora não conseguiu, mas é essencial ficar atento. Essa é, talvez, a
principal ideia fora do lugar e o esqueleto mais robusto a ser sepultado.
2.
Somos todos a favor de políticas que estimulem a inovação. Mas em 2019 foi
lançada proposta para estabelecer um regime próprio na precificação de
medicamentos que apresentassem inovações em seu desenvolvimento e produção. A
proposta, que foi objeto de estudos por uma comissão coordenada pela Anvisa e
na qual participaram os ministérios da Economia (hoje Fazenda), Saúde e
Justiça, prevê que medicamentos com inovações incrementais tenham seu preço
definido pela empresa fabricante. O racional da proposta é que possam concorrer
entre si nas farmácias, hospitais e nas compras governamentais medicamentos
para indicações similares com e sem as inovações. O comprador poderá escolher
entre o mais caro (com inovação) e o mais barato (sem inovação).
Conceitualmente,
essa expectativa se sustenta na suposição neoclássica de que o mercado vai
regular a decisão na aquisição de um produto quando uma empresa lançar um
produto “incrementado” já tendo outro(s) “velho(s)” – sem a inovação – no
mercado. Ora, todo o marketing sobre os prescritores nas farmácias,
consultórios e hospitais será, naturalmente, focado no “incrementado” mais caro
e a tendência será o fim-de-carreira do “velho”. Tendencialmente, teremos um
mercado onde cada vez mais haverá produtos com essa precificação especial, haja
vista a imensa flexibilidade daquilo que pode ser considerado uma inovação
incremental.
O
conceito mais disseminado dessa modalidade foi elaborado pela OCDE e apareceu
em 1990. Uma das características da sua utilização são as grandes
indeterminação e elasticidade de suas fronteiras. Podem ser focadas em
produtos, processos, marketing, design, mudanças organizacionais etc. Por
exemplo, mudanças de embalagem são também consideradas inovações incrementais,
nesse caso uma inovação de marketing. Preços mais elevados significam restrição
de acesso. Pergunto: o que terá acontecido com essa iniciativa que parece ser
mais uma ideia fora do lugar e mais um esqueleto a ser concedido o merecido
descanso?
3.
Em 2021, através da Consulta Pública SEAE nº 02/2021, foi lançada proposta que
enfraquece a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), transferindo
da Anvisa para o então ministério da Economia (atualmente Fazenda) a sua
Secretaria Executiva. No Brasil, por razões sanitárias e de proteção da
economia popular e do SUS, os preços de medicamentos são controlados. Portanto,
não há qualquer razão para que a Secretaria Executiva da CMED saia da esfera de
competência da saúde (Anvisa), que desenvolve um trabalho técnico altamente
especializado, para o ministério da Fazenda.
O
sucesso da regulação sanitária e econômica de preços no Brasil deve-se ao seu
caráter intersetorial, com diferentes ministérios atuando dentro de sua esfera
de competência. O grande prejuízo da implementação dessa proposta seria o
esvaziamento da Anvisa, com o deslocamento de um tema da ordem sanitária para a
órbita econômica. É fundamental recuperar a capacidade técnica da Secretaria
Executiva da CMED na Anvisa para que continue desempenhando seu papel de
suporte à regulação de preços.
Devemos
sempre lembrar que desde 2003 os preços no Brasil apresentam trajetória oposta
à tendência mundial de inflação nos preços de medicamentos e isso deve ser
creditado à CMED. É certo que sempre haverá espaço para aperfeiçoamentos no
algoritmo que governa a precificação. Mas nunca no sentido de deslocar a
política de controle da esfera sanitária para a esfera econômica. Por fim, vale
notar que essa consulta pública, caso venha a produzir efeitos, poderá ser
implementada mediante um decreto. Essa é mais uma ideia fora do lugar e mais um
esqueleto dentro do armário.
Fonte:
Por Reinaldo Guimarães, em Outra Saúde
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