segunda-feira, 20 de agosto de 2018

“Autocrítica e a política brasileira”. Por Ted Goertzel


Um dos provérbios maoísta é: “com a arma da crítica e da autocrítica, podemos nos livrar de um estilo ruim e manter o bem”. Embora o maoísmo não seja forte entre a esquerda brasileira hoje, há uma certa consciência da necessidade de autocrítica em todo o espectro. Guilherme Boulos, candidato do PSOL, falou: “O sistema político precisa de autocrítica, reconhecer o quanto se afastou das pessoas. No caso da esquerda brasileira também. Reconhecer erros não é demérito para ninguém. Deixar de reconhecer é um problema, porque voltam.” Marina Silva, da Rede, disse: “Para que a gente não esteja colocando vinho novo em odre velho é preciso que se faça uma profunda autocrítica, coisa que eu não vejo na maioria desses partidos.”
O reconhecimento da necessidade de autocrítica é bem-vindo, mas, até onde sei, nenhum desses líderes ainda o empreendeu, pelo menos publicamente. Tampouco os líderes do PT ou dos partidos do centro ou direita. O PT ocupou a presidência por treze anos que terminaram em 2016, que dá uma responsabilidade especial para autocriticar seu desempenho no cargo. Neste artigo, faço algumas sugestões sobre esse processo.
Quando o PT foi fundado, em 1980, era uma rara exceção à rigidez ideológica e à esclerose organizacional da esquerda global. Foi progressista, pluralista e humanista em ideologia e democrático em organização. Realizou eleições internas honestas contestadas por facções bem definidas. Seu líder carismático havia se levantado da pobreza abjeta para se tornar um habilidoso sindicalista que superou a ditadura militar na década de 1970. Quando Lula foi eleito presidente do Brasil em 2003, o futuro parecia brilhante. Parecia ainda mais brilhante quando ele passou a faixa presidencial para sua chefe de equipe em 2011. Barack Obama observou: “Eu amo esse cara. Ele é o político mais popular da terra.” O fracasso do partido em cumprir muitas dessas promessas tem sido uma grande decepção, não apenas para os brasileiros, mas para esquerdistas progressistas em todo o mundo.
Desde 2014 tem sido um desastre após o outro. A economia está em frangalhos, Dilma Rousseff foi afastada e Lula foi condenado à prisão por corrupção. O partido está em profunda oposição, denunciando o impeachment como um golpe de Estado e a condenação de Lula como perseguição política. É verdade que as denúncias usadas como base legal para o impeachment foram modestas, mas foram feitas constitucionalmente e foram fortemente apoiadas pelo público. É preciso admitir que condenação de Lula foi rigorosamente revisada por quatro juízes bastante profissionais e suas denúncias foram comprovadas por muitos funcionários responsáveis. Como disse Marina Silva, “Os autos foram devidamente trabalhados, com todo rigor que é necessário para um julgamento dessa magnitude. Os advogados do presidente Lula com certeza são muito bem pagos e competentes, todas as instâncias foram acionadas para assegurar a ele o mais amplo direito de defesa”.
Não é preciso ser psicanalista, como Guilherme Boulos, para reconhecer a negação como mecanismo de defesa. É hora de desistir da negação e fazer uma autocrítica honesta. Os partidários de Lula retratam sua prisão como a repressão de um herói da classe trabalhadora por uma elite voraz e exploradora. Mas qualquer autocrítica teria que reconhecer que o PT está intimamente envolvido com essa mesma elite há anos. E os promotores da Lava Jato têm processado muitos poderosos políticos conservadores e oligarcas de negócios afiliados a outros partidos, incluindo o magnata mais rico do Brasil, Eike Batista, e o ex-governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Eduardo Cunha foi preso pela Polícia Federal. Aécio Neves está sob investigação por corrupção. É falso retratar as rigorosas investigações e processos anticorrupção como uma campanha contra o PT ou a esquerda. Eles são um corretivo muito necessário para a corrupção generalizada que é uma tradição brasileira que se tornou ainda mais flagrante e difundida nos governos do Partido dos Trabalhadores.
Uma autocrítica honesta teria que reconhecer que o fracasso do projeto socialista democrático do partido estava atolado em pensamentos ilusórios (wishful thinking), soberba (hubris), oportunismo e cinismo. Talvez uma vez terminada a eleição, Guilherme Boulos possa nos dar mais informações sobre esses e outros mecanismos de defesa. Na minha opinião, os pensamentos ilusórios (wishful thinking) incluía acreditar que os brasileiros estavam prontos para substituir a economia de mercado e a democracia eleitoral pela democracia participativa e por um projeto econômico alternativo mal definido. Os líderes mais realistas do partido aprenderam esta lição assim que começaram a assumir responsabilidades no nível estadual e local. Quando o partido, surpreendentemente, venceu a prefeitura de São Paulo em 1988, os líderes descobriram que não podiam administrar a enorme metrópole sem incluir todos os interessados, especialmente a comunidade empresarial. Os políticos profissionais do partido aceitaram isso e muitos passaram a ser líderes urbanos e estatais eficazes. Mas a retórica não mudou. O partido pregou a transformação revolucionária e praticou o pragmatismo liberal. Como resultado, o partido perdeu o apoio entusiástico de muitos dos idealistas que o tornaram tão distinto, alguns dos quais levaram seus pensamentos ilusórios (wishful thinking) a partidos como o PSOL.
Como presidente, a soberba de Lula incluiu o orgulho de ter transformado dramaticamente a economia brasileira quando o que ele realmente fez foi reforçar o modelo econômico “neoliberal” de seu antecessor. A soberba de Dilma Rousseff era acreditar que o sucesso do Brasil em administrar a crise global de 2008 com gastos pesados de estímulo significava que ela havia revogado as leis da economia e poderia gastar com o abandono. O oportunismo do partido significava expandir o já inchado serviço público para fornecer empregos bem remunerados aos militantes do partido. Oportunismo significava aliar-se a partidos conservadores e clientelistas para compartilhar o patrocínio em vez de se unir ao melhor dos social-democratas para realizar as reformas necessárias. Oportunismo significava culpar os “neoliberais” pelos fracassos, em vez de assumir a responsabilidade de não implementar políticas realistas. O grupo de liderança de Lula acreditava cinicamente que o Congresso brasileiro era tão desesperado que a única maneira de aprovar a legislação necessária era simplesmente comprar votos.
Uma autocrítica honesta admitiria que, em vez de manter sua promessa de acabar com a corrupção, o PT a institucionalizou como uma ferramenta fundamental de sua máquina política. Em um país com legislatura e população menos cínicos, Lula teria sofrido impeachment quando o mensalão foi descoberto durante seu primeiro mandato. Se ele tivesse aceitado o slogan de Harry Truman “the buck stops here”, ele teria aceitado a responsabilidade pelas ações de seus representantes. Mas ele passou a culpa para José Dirceu. Uma autocrítica honesta significaria parar de fingir que Lula não sabia o que estava acontecendo com o mensalão.
Se o Partido dos Trabalhadores, que sempre afirmou ser honesto e transparente, era sistematicamente corrupto com impunidade, quem se surpreende com o fato de seus aliados e parceiros terem roubado alguns milhões de reais aqui e ali? Lula se gabou da honestidade de seu governo e afirmou que o aumento dos escândalos acabou provando que eles estavam cavando a sujeira. O PT merece crédito por continuar fortalecendo e profissionalizando a polícia federal e o judiciário, processo iniciado por Fernando Henrique. Imagine o choque deles quando foram investigados, indiciados e condenados pela polícia, promotores e juízes, muitos dos quais haviam colocado no poder.
Autocrítica significa reconhecer o fracasso do partido em fazer as alianças políticas necessárias para aprovar as reformas necessárias para romper as persistentes restrições econômicas do Brasil. Essas reformas incluem a reforma previdenciária e cortes de gastos que são especialmente difíceis para o PT, com sua forte base entre funcionários públicos. O fracasso persistente da maioria dessas reformas, tanto de Cardoso quanto de Lula e Dilma, mostra que elas não podem ser feitas apenas por um lado. Em vez de culpar um ao outro pelo fracasso, o PT e o PSDB precisam trabalhar juntos, junto com o maior número possível de aliados. Lula e o PT não parece prontos para isso, mesmo que ele seja capaz de concorrer às eleições. Em vez de usar seu grande prestígio e credibilidade para ajudar o país a enfrentar realidades dolorosas, Lula está se entregando a teorias conspiratórias, como culpar os americanos pela corrupção na Petrobras, sem qualquer evidência. O papel de Lula como ex-presidente contrasta desfavoravelmente com o de Fernando Henrique Cardoso. Como nota Marina Silva, Cardoso é excepcional entre os políticos brasileiros por fazer um sério esforço de crítica ao seu próprio partido. Infelizmente, porém, seus esforços não foram levados a sério por outros líderes do PSDB.
Se Lula e FHC se unissem para liderar seus partidos na autocrítica, isso poderia levar a uma mudança real na cultura política brasileira. Eles trabalharam juntos contra o regime militar: é um desejo ilusório esperar que eles poderiam trabalhar juntos contra a ameaça de Bolsonaro? Se Lula fosse visto como fazendo um esforço honesto para enfrentar os defeitos da cultura política brasileira, incluindo o PT como um dos principais participantes, seria um passo real rumo a um novo começo para o Brasil. Os brasileiros de todos os partidos precisam lutar contra os pensamentos ilusórios (wishful thinking), a soberba, o cinismo e o oportunismo.

Ted Goertzel, professor emérito de Sociologia na Universidade Rutgers, em New Jersey, Estados Unidos, e autor de biografias de FHC e Lula, em artigo publicado por Revista Espaço Acadêmico