Paulo Kliass: Lula
e o Brasil do futuro
Existe
um razoável consenso no interior das forças progressistas a respeito de algumas
das ausências deixadas pelos governos durante os 14 anos em que o Partido dos
Trabalhadores esteve à frente do Estado brasileiro. É óbvio que são inegáveis
os avanços e as conquistas verificadas ao longo dos 2 mandatos de Lula e dos 6
anos de Dilma, cujo segundo mandato foi abreviado pelo golpeachment patrocinado
pelas forças de direita. Tratou-se de um período em que a sociedade brasileira
conheceu um importante processo de redução de suas desigualdades sociais e
econômicas. O desemprego foi reduzido a níveis nunca antes verificados e o
poder de compra dos salários foi elevado de forma significativa. E a lista
segue.
O
Brasil foi retirado do mapa da fome elaborado pela Organização das Nações
Unidas (ONU) durante o governo Dilma em 2014. Por outro lado, o crescimento
econômico continuado fez com que o País alcançasse a sexta posição dentre os
países de maior Produto Interno Bruto (PIB) em 2011, depois de 8 anos de Lula à
frente do Palácio do Planalto. Além disso, os indicadores de mensuração dos
níveis de desigualdade apontavam uma melhoria contínua no Índice de Gini, por
exemplo, ao longo do período entre 2003 e 2014. Apesar da metodologia da ONU
não operar mais com o conceito de mapa da fome, as informações do órgão a respeito
de qualidade de alimentação pioraram bastante a partir de 2016. E quanto ao
PIB, nosso País caiu drasticamente em seu posicionamento relativo, chegando
mesmo a ocupar o 13º em 2021.
A
grande questão que se coloca para os analistas e também para os formuladores de
políticas públicas se refere à busca de razões para explicar a piora brusca e
persistente em todos os avanços aqui apontados. Por mais de uma vez, o próprio
Lula mencionou o fato de não ter conferido a devida atenção para mudanças mais
efetivas na estrutura de funcionamento do sistema financeiro e na organização
do sistema dos meios de comunicação. No entanto, um traço comum a esses 14 anos
de exercício do poder federal foi a mais completa despreocupação quanto à
aprovação de alterações mais profundas na ordem jurídico e institucional,
inclusive com garantias constitucionais para assegurar a continuidade desse
importante conjunto de novas políticas implementadas em várias dimensões da
ordem social e econômica.
·
Lula critica política monetária e Haddad entrega
política fiscal.
Por
outro lado, a ausência de estímulos à participação direta da população na
defesa de tais políticas contribuiu para a fragilidade política e institucional
das mesmas. A maior prova de tal processo foi a facilidade com que os governos
que se seguiram à deposição ilegal de Dilma Roussef conseguiram promover
retrocessos profundos no modelo que vinha sendo montado desde 2003. Durante os
2 anos de Temer e os 4 do genocida o movimento pela destruição do Estado e pelo
desmonte de políticas públicas conseguiu fazer tabula rasa de
boa parte do que havia sido conquistado a partir da nova Constituição em 1988 e
com as políticas levadas a cabo desde a chegada do PT ao governo federal. De
janeiro até os dias de hoje estamos percebendo o real significado do esforço de
reconstrução de tudo aquilo que foi posto abaixo. Destruir é relativamente
fácil e rápido. Já o processo para recolocar de pé tudo aquilo que foi tornado
pó leva muito mais tempo e está se revelando bastante complexo e custoso.
Um
dos pontos mais nebulosos desse novo desafio, porém, reside na própria
estratégia que tem orientado a ação do Ministério da Fazenda. Ao estabelecer um
suposto antagonismo entre a política monetária e a política fiscal, o governo
tende a jogar toda a responsabilidade do quadro atual pela continuidade da
estagnação relativa das atividades econômicas sobre o Presidente do Banco
Central. Ora, é bem verdade que a sabotagem levada em frente por Roberto Campos
Neto no comando do Comitê de Política Monetária (COPOM) é um crime de lesa
pátria. Manter a SELIC nos estratosféricos 13,75% desde outubro do ano, quando
o resultado das eleições foi tornado público, tem o sentido de manter uma cunha
bolsonarista no interior da política econômica do novo governo.
Porém,
isso não significa isentar de culpa a entrega voluntária da política fiscal,
tal como propôs Fernando Haddad ao elaborar o Novo Arcabouço Fiscal, se
levarmos em consideração a forma como foi desenhada a PEC 93. Ao que tudo
indica, ele teria conseguido convencer Lula a respeito de sua estratégia da PEC
da transição, ainda em dezembro de 2022. Contrariando diversas opiniões de
juristas e analistas políticos, ele argumentava junto ao Presidente eleito que
a revogação do teto de gastos deveria estar condicionada à colocação de alguma
regra também restritiva em seu lugar. E assim, após longa negociação com o
Presidente do BC e com representantes da nata do financismo, Lula assumiu como
sendo sua a proposta de criação de um subteto para os gastos públicos, de inspiração
e consequências inequívocas ainda no campo da austeridade.
·
Futuro do Brasil depende de investimento público hoje.
Assim,
é possível que o legado histórico da participação do Presidente seja lembrado
no futuro por uma contradição fatal. Em um primeiro momento, quando se tratava
de deitar raízes profundas das mudanças progressistas implementadas Lula e
Dilma subestimaram a capacidade de alguma reação conservadora e não colocaram
as travas necessárias para impedir ou dificultar o retrocesso. No período posterior,
agora em seu terceiro mandato, ele parece estar convencido da necessidade de
lançar as bases constitucionais que levarão ao sonho neoliberal de redução do
Estado e da continuidade da transferência da responsabilidade da oferta dos
serviços públicos ao capital privado.
Tudo
aquilo que Lula deixou de fazer para preservar as políticas de orientação
progressista de seus governos, ele agora corre o risco de apoiar no sentido
contrário, ou seja, de introduzir com profundidade em nossa ordem jurídico-constitucional
as amarras de orientação neoliberal. O mais grave é que o Estado ficará
impedido de recuperar o protagonismo necessário no processo de retomada da
economia, em função das limitações presentes no novo arcabouço fiscal. De
acordo com as regras, o crescimento das despesas públicas só poderá ser
efetuado no ritmo de apenas 70% do aumento verificado nas receitas. A
capitalização e o fortalecimento das empresas estatais, inclusive os grandes
bancos federais, ficam limitados pelo mesmo motivo.
Haddad
se recusou a ouvir e negociar com os setores não alinhados com o financismo e o
Brasil continua na contramão daquilo que vem ocorrendo na maioria dos países do
centro do capitalismo. Depois das crises de 2008/9 e a mais recente da COVID,
entrou em cursos uma nova abordagem dos efeitos da política fiscal e foi
consolidada uma abordagem bastante mais flexível das despesas públicas. Mas por
aqui, a elite do nosso sistema financeiro não aceita tais mudanças. O plano da
austeridade de novo tipo incorporada no projeto do governo em tramitação no
poder legislativo segue olhando para o passado. Ele continua orientado pelas
metas de superávit primário e a área econômica não tem aceito nem mesmo emendas
de parlamentares para retirar áreas como saúde, educação ou o fundo
constitucional do Distrito Federal das regras draconianas do fiscalismo.
Os
investimentos e as despesas públicas são fundamentais para retomada do
desenvolvimento social, econômico e ambiental. Mas os dispositivos restritivos
constantes na PEC 93 impedem o acesso a tal trilha. Para fazer “40 anos em 4”,
como foi o mote de sua campanha eleitoral ao longo do ano passado, Lula sabe
que vai precisar de um plano robusto de investimentos, capaz de deixar para as
futuras gerações as marcas de sua nova passagem pela Presidência. O momento
atual e o ciclo futuro exigem medidas de natureza contra cíclica, bem no
sentido oposto das limitações do subteto em debate no Congresso Nacional.
·
Riscos do novo arcabouço fiscal.
A
situação é tão grave e evidente que assessores do Ministro da Fazenda já falam
abertamente da retomada do sonho não realizado de Paulo Guedes: promover em
breve a desconstitucionalização dos mínimos obrigatórios de gastos com saúde e
educação. Além disso, quase como uma jogada de mestre na sequência da colocação
em operação do subteto de Haddad, o discurso do Ministro a respeito da
incapacidade fiscal do Estado encontra a “solução mágica” na multiplicação de
ações por meio do instrumento da “parceria público privada” (PPP).
Talvez
a ficha ainda não tenha totalmente caído para Lula. Afinal, ele continua
repetindo – dia sim, outro também – que só teria aceitado a responsabilidade de
uma terceira oportunidade se tivesse condições de fazer mais e melhor do que
nos dois mandatos anteriores. Ora, ele pode até vencer a queda de braço com o
COPOM e obter alguma redução marginal da SELIC ao longo dos próximos meses. No
entanto, apesar de importante, a recuperação de algum grau de controle sobre a
política monetária nem de longe conseguirá compensar o verdadeiro desastre de
médio e longo prazos que significa a entrega voluntária da política fiscal.
É
com os olhos voltados para esse Brasil do futuro que Lula deveria orientar suas
ações do presente. O verdadeiro balanço de seu legado histórico será muito mais
influenciado negativamente pelas consequências nefastas do subteto de Haddad
para o desenho do País nas próximas décadas do que por alguma vitória parcial
sobre a teimosia neoliberal e conjuntural de Roberto Campos Neto no que se
refere à taxa oficial de juros.
É
óbvio que reduzir a SELIC é uma medida importante. Mas isso não pode ofuscar os
riscos de aniquilamento da capacidade do Estado e das políticas públicas tal
como previstos no PLP 93. Lula precisa urgentemente ser alertado que tal
estratégia certamente contribuirá para apequenar sua contribuição para um
Brasil mais forte, mais justo, mais desigual e capaz de influenciar o mundo com
todo o potencial com que ainda contamos.
Ø
Lula calibra
discurso e acerta no alvo. Pot Aldo Fornazieri
A
viagem de Lula a Roma e a Paris marcou uma calibragem do discurso relativo à
política externa em dois sentidos: num sentido, foi uma retificação de posição;
em outro, um acréscimo, uma nova ênfase. O aspecto da retificação diz respeito
à guerra na Ucrânia e às iniciativas de paz. As posições anteriores que Lula
vinha manifestando foram vistas como filo-russas e expressavam um desequilíbrio
entre o discurso e a realidade. Aquelas posições diminuíam as chances de Lula
de ter um papel relevante nas iniciativas de paz, pois seriam recusadas pela
Ucrânia por serem parciais.
No
contexto do encontro com o papa Francisco e nas entrevistas e discursos em
Paris, Lula calibrou seu discurso: afirmou que a posição do Brasil é a de
condenação da invasão da Ucrânia e ponto. Isto quer dizer: Lula disse que o
Brasil se coloca em linha com o direito internacional e com a Carta da ONU, que
condenam a invasão de países e a ocupação territorial. Ao restringir suas
manifestações a este ponto, Lula assume uma posição de neutralidade. Não emite
juízo de valor em relação ao governo da Ucrânia e nem ao regime de Putin. Não
busca responsabilizar mais um e menos outro ou equiparar as responsabilidades.
A
condição fundamental para ter um papel relevante na busca de um caminho para a
paz consiste exatamente na abstenção da emissão de juízos de valor acerca das
partes em conflito. Consiste também em se abster de dizer o que a Rússia ou a
Ucrânia devem ceder ou ganhar. Não é este o papel de um mediador da paz.
O
mediador da paz é, fundamentalmente, um facilitador da construção de caminhos e
processos de diálogos em busca de soluções dos conflitos e de promoção da paz.
E pelo novo tom do discurso parece que é esse o papel que Lula se atribui. Ao
assumir este papel, ele terá condições de dialogar tanto com Moscou, quanto com
Kiev. Terá condições de atrair outros países para o exercício de uma pressão em
favor do início de um processo de paz. Os mediadores facilitam, mas quem deve
dizer o que aceita ou não aceita são russos e ucranianos.
A
luta contra a desigualdade e pela igualdade parecia ter sido esquecida pelos
deuses e pelos humanos nos fóruns internacionais. No discurso que fez na Cúpula
para um Novo Pacto Financeiro Global, em Paris, Lula foi duro e forte contra
esse esquecimento. Esquecimento de uma luta que é das mais antigas das
sociedades humanas e que teve poucos avanços até hoje e pouco os terá no futuro
se ela não for colocada no centro da ação política e social daqueles que lutam
por mudanças no mundo, no sentido da justiça, da igualdade e da liberdade.
Até
as próprias esquerdas abandonaram o discurso pela igualdade, como constatam
vários pesquisadores e escritores. Parece que essa palavra perdeu o encanto que
tinha no passado. No século XIX a palavra “igualdade” provocava paixões até
mais fortes do que as paixões amorosas, observava o pensador liberal
Tocqueville. A palavra “igualdade” foi o fermento que fez vicejar as
democracias modernas. Foi a luz que mobilizou milhões de pessoas pelas lutas
por direitos. Foi o fogo que fez arder os corações de milhões de trabalhadores
que lutaram pelo socialismo.
Por
que a bandeira da igualdade foi esquecida e abandonada? Este abandono expressa
o mais veemente atestado de derrota mundial das esquerdas. Sim, porque o mais
evidente distintivo da esquerda, o mais claro emblema de sua identidade, é a
luta pela igualdade. A igualdade era o valor interdependente com os valores da
liberdade e da solidariedade na Revolução Francesa. Norberto Bobbio radicou a
distinção entre esquerda e direita no par antinômico igualdade/desigualdade.
Mas
se a igualdade, no sentido geral do termo, foi abandonada pelos discursos dos
partidos políticos de esquerda, parece que ela se refugiou nas demandas de
grupos sociais específicos. Ela aparece como exigência de igualdade de gênero,
de raça, igualdade de direitos de diversos grupos específicos. As lutas pela
igualdade são lutas fragmentadas levadas adiante pelos movimentos da
diversidade. Mas a luta pela igualdade precisa ter um sentido universalizante
que deveria ser conferido pelos partidos políticos.
Foi
isso o que Lula fez em Paris: “Não é possível que, numa reunião com tantos
países, a palavra desigualdade não apareça”. Chamou a atenção para a realidade
de um mundo cada vez mais desigual. Uma desigualdade que aumenta entre ricos e
pobres no interior de cada país e uma desigualdade que aumenta em termos
globais.
A
luta pela igualdade não deve ser colocada ao lado da luta ambiental. As duas
lutas andam entrelaçadas, são inseparáveis. Não há como salvar o planeta sem
que se reduzam as desigualdades e a pobreza. Não há como salvar o planeta sem
uma redistribuição global das rendas e riquezas, sem equacionar o problema da
forma de produzir e da forma de distribuir os alimentos.
Lula
fez uma dura cobrança aos países ricos. Os ricos precisam ser cobrados em suas
responsabilidades quanto ao clima e quanto às desigualdades. Não dá para ser
ambientalista sem combater as desigualdades e o combate às desigualdades
precisa enfrentar a questão do clima.
A
luta interna no combate às desigualdades precisa ter um eixo central na
política tributária. Os programas sociais compensatórios, embora necessários,
não têm a força para reduzir as desigualdades de forma alargada e perene. O
Brasil precisa acabar com o sistema tributário regressivo, substituindo-o por
um progressivo. O Brasil precisa acabar com os privilégios públicos que
saqueiam os recursos. O Brasil precisa democratizar o orçamento para que ele
seja universalizado e não privatizado pelos grupos de interesse que cercam os
parlamentares e o poder Executivo.
Os
governos de esquerda precisam identificar um conjunto de reformas e um conjunto
de políticas públicas orientadas no sentido de menos igualdade para mais
igualdade. Esta deve ser a marca distintiva dos governos de esquerda na América
Latina – a região mais desigual do mundo. Somente reformas e políticas públicas
que tenham este sentido serão capazes de criar uma nova identidade das
esquerdas na América Latina num momento em que as distinções entre esquerda e
centro-esquerda, de um lado, e direita liberal, de outro, estão bastante
diluídas.
Fonte:
Jornal GGN
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