Por que EUA podem
barrar raça como critério em universidades
A
Suprema Corte dos Estados Unidos, mais alta instância da Justiça americana,
deve anunciar nesta semana uma de suas decisões mais esperadas, que pode
definir o futuro do uso de ações afirmativas no ensino superior do país.
Os
nove juízes do tribunal deverão emitir sua opinião final sobre dois casos que
contestam que os programas de admissão da Universidade Harvard e da
Universidade da Carolina do Norte (UNC) levem em conta critério racial na
seleção de alunos.
Os
autores dos processos judiciais argumentam que o sistema de seleção resulta em
discriminação racial e prejudica estudantes asiáticos e brancos, que estariam
perdendo vagas para candidatos que consideram menos qualificados. Caso os
juízes concordem com esse argumento, a prática poderá ser proibida
completamente ou restringida na maioria dos casos.
Defensores
do uso de ações afirmativas alertam que restrições poderiam levar à redução no
número de alunos negros e latinos não apenas nas instituições citadas, mas em
universidades em todo o país. Dependendo dos detalhes da decisão dos juízes, o
impacto poderia até mesmo ir além do ensino superior, afetando a maneira como
empresas contratam seus funcionários.
O
uso de cotas, nas quais um determinado número de vagas era reservado a pessoas
de minorias raciais, foi considerado inconstitucional pela Suprema Corte em
1978. Mas, na mesma decisão, o tribunal permitiu que universidades usassem
ações afirmativas, nas quais a raça dos candidatos é apenas um entre os vários
aspectos analisados, com objetivo de formar um corpo estudantil mais diverso.
Nas
décadas seguintes, vários processos judiciais contestaram a prática, mas a
Suprema Corte sempre reafirmou sua legalidade. No entanto, na atual composição
do tribunal, seis dos nove juízes pertencem à chamada ala conservadora
(indicados por presidentes do Partido Republicano, três deles por Donald
Trump), formando uma "supermaioria" que pode abrir caminho para
reverter 45 anos de precedentes.
Em
2022, essa maioria na Suprema Corte já surpreendeu o país ao abandonar quase 50
anos de precedentes e anular o direito constitucional ao
aborto, que era garantido desde a decisão do caso chamado Roe versus Wade, de
1973.
Se
no caso do aborto a decisão do tribunal contrariou a opinião da maioria dos
americanos, que eram favoráveis à manutenção de Roe versus Wade e
ao direito constitucional ao aborto, pesquisas de opinião mostram um cenário
mais complexo no que se refere às ações afirmativas.
Apesar
de apoiarem a diversidade racial no ensino superior, a maioria dos americanos é
contra o uso do critério racial dos candidatos como fator para admissão.
Segundo pesquisa do Pew Research Center divulgada no início de junho, “metade
dos adultos norte-americanos são contra que universidades levem em consideração
raça e etnia nas decisões de admissão”.
No
mesmo levantamento, 49% dos entrevistados disseram que considerar a raça dos
candidatos torna o processo de admissão menos justo, enquanto apenas 20%
afirmaram que torna o processo mais justo, 17% acreditam que não afeta, e 13%
disseram não ter certeza.
Na
semana passada, uma pesquisa encomendada pelo jornal The Washington Post e pelo
instituto Ipsos revelou que, apesar de 60% dos americanos considerarem
programas para aumentar a diversidade “uma coisa boa”, 56% apoiariam uma
decisão da Suprema Corte que proíba universidades de considerar a raça dos
candidatos em seus programas de admissão.
·
Critérios subjetivos
O
caso contra Harvard, uma das universidades mais prestigiosas e competitivas do
país, é especialmente significativo por argumentar que estudantes pertencentes
a uma minoria racial, os asiáticos, são prejudicados pelo uso de ações
afirmativas.
Em
processos anteriores, a alegação costumava ser a de que alunos brancos, que
formam a maioria da população do país, eram discriminados em favor de
candidatos negros ou latinos. No caso de Harvard, o argumento é o de que
candidatos asiáticos estão perdendo vagas para estudantes brancos, negros e
latinos que consideram menos qualificados.
Para
a Asian American Coalition for Education (Coalizão Asiática-Americana para
Educação), grupo formado em 2014 e que apoia os autores das ações, os sistemas
de admissão em Harvard e outras universidades de elite representam “cotas
raciais, na prática” e causam “danos enormes” a estudantes de origem asiática.
“Muitos
sentem a necessidade de esconder ou minimizar sua identidade racial para serem
admitidos”, diz um porta-voz do grupo.
Segundo
a organização Students for Fair Admissions (Estudantes por Admissões Justas, ou
SFFA, na sigla em inglês), responsável pelas ações na Suprema Corte, como
candidatos de origem asiática costumam ter melhor desempenho acadêmico, Harvard
estaria reduzindo suas notas em critérios subjetivos, para limitar seu número e
manter o percentual de cada raça no campus inalterado.
De
acordo com a SFFA, mesmo com notas mais altas em categorias objetivas, como
desempenho acadêmico ou atividades extracurriculares, os estudantes asiáticos
estariam perdendo vagas para alunos menos qualificados devido a resultados
piores no critério de “avaliação pessoal”, que é subjetivo e inclui aspectos
difíceis de quantificar, como “liderança”, “confiança”, "compaixão"
ou “simpatia”.
Uma
das alegações da SFFA é a de que, se as políticas de admissão fossem neutras em
relação à raça dos candidatos, levando em conta apenas o desempenho acadêmico,
mais da metade dos estudantes admitidos seriam de origem asiática.
Harvard
nega essas alegações e diz usar “uma avaliação individual completa”, na qual a
raça dos candidatos é apenas um entre os critérios analisados e nunca é
considerada de maneira negativa.
“O
comitê de admissão considera o histórico e as experiências únicas de cada
candidato, juntamente com notas e resultados de testes, para encontrar
candidatos com habilidades e caráter excepcionais, que podem ajudar a criar uma
comunidade diversificada em várias dimensões (incluindo interesses acadêmicos e
extracurriculares, raça, histórico e experiências de vida)”, diz a universidade
em nota.
Os
advogados que defendem Harvard na ação lembram que seu sistema de admissões é
considerado modelo no país, tendo sido inclusive elogiado pela Suprema Corte em
sua decisão de 1978. Ressaltam ainda que o número de candidatos qualificados
excede muito o total de vagas, “obrigando a universidade a considerar outros
aspectos além de notas e desempenho em testes”.
O
sistema de admissão em Harvard, assim como em outras universidades de ponta, é
notoriamente envolto em segredo, e menos de 5% dos candidatos conseguem uma
vaga a cada ano. Na turma mais recente, de 56.937 inscritos, somente 1.942
foram aceitos, entre os quais 29,9% são estudantes de origem asiática, 15,3%
são negros, 11,3% latinos e 2,2% indígenas.
Durante
a fase de argumentos orais do caso na Suprema Corte, em outubro do ano passado,
um dos juízes, Samuel Alito, questionou o que leva candidatos de origem
asiática a receber “notas de avaliação pessoal mais baixas do que qualquer
outro grupo”.
“Ou
eles realmente carecem de integridade, coragem, bondade e empatia no mesmo grau
que os alunos de outras raças, ou deve haver algo errado com essa pontuação
pessoal”, disse Alito.
·
Histórico e ações anteriores
As
ações afirmativas nos Estados Unidos são diferentes do que ocorre no Brasil,
onde mais da metade da população é negra. No sistema brasileiro, duas leis, de
2012 e 2014, detalham o uso de cotas raciais em universidades públicas e
concursos públicos federais, com objetivo de corrigir desigualdades históricas
enfrentadas por pessoas negras e indígenas.
Nos
Estados Unidos, onde atualmente pessoas negras representam cerca de 13% da
população, hispânicos são 19%, e asiáticos em torno de 6%, o histórico das
ações afirmativas remonta à década de 1960, quando o movimento de luta pelos
direitos civis estava no auge.
Em
uma ordem executiva de 1961, o então presidente John Kennedy determinou que
fossem tomadas "ações afirmativas" para garantir que trabalhadores
não fossem discriminados por sua raça, crença, cor ou origem nacional. Outras
medidas semelhantes foram adotadas nos anos seguintes por Kennedy e por seu
sucessor, Lyndon Johnson.
O
objetivo era oferecer oportunidades a representantes de minorias raciais e
combater as desigualdades resultantes dos séculos de escravidão e de políticas
de segregação enfrentados pela população negra. Como na época estudantes
brancos formavam a grande maioria no ensino superior, as ações afirmativas
representavam também uma oportunidade de tornar as universidades mais
racialmente integradas.
Desde
o início, no entanto, essas medidas provocaram divisões e foram contestadas,
especialmente por grupos conservadores, e no fim da década de 1970 um desses
casos chegou à Suprema Corte.
Rejeitado
pela faculdade de medicina da Universidade da Califórnia, onde 16 de 100 vagas
eram reservadas para alunos de minorias raciais, um estudante branco chamado
Allan Bakke entrou com um processo alegando que esse sistema de cotas era
inconstitucional e violava a Lei dos Direitos Civis de 1964.
O
tribunal anunciou sua decisão em 1978, concordando com o argumento e tornando o
uso de cotas raciais inconstitucional. Mas os juízes permitiram que, mesmo sem
cotas, as universidades continuassem a usar ações afirmativas em determinadas
circunstâncias e pudessem incluir a raça dos candidatos entre os critérios de
admissão, para promover a diversidade no campus.
Atualmente,
a prática é permitida em instituições de ensino na maioria dos Estados, com
exceção da Califórnia, Flórida, Michigan, Nebraska, Arizona, New Hampshire,
Oklahoma e Idaho, onde o uso de ações afirmativas considerando a raça dos
candidatos é proibido em universidades públicas.
A
Suprema Corte reafirmou sua posição 25 anos depois, no caso Grutter
versus Bollinger, que contestava o uso de ações afirmativas pela Universidade
de Michigan e foi decidido em 2003. Agora, no entanto, as ações diante da
Suprema Corte pedem que os juízes revertam essa decisão.
As
ações contra Harvard e a UNC foram iniciadas em 2014 e são fruto dos esforços
do ativista conservador Edward Blum, que já moveu mais de 20 processos
questionando o uso de preferências raciais em diversos setores e é o fundador
da SFFA.
A
organização diz representar "mais de 20 mil estudantes, pais e outros que
acreditam que preferências raciais em admissões a universidades são injustas,
desnecessárias e inconstitucionais” e defende que “a raça e a etnia de um
estudante não devem ser fatores que prejudicam nem ajudam a ganhar admissão em
uma universidade”.
A
SFFA entrou com os processos em nome de candidatos rejeitados, alegando que as
universidades praticam “discriminação racial injusta e ilegal em suas políticas
de admissão”, o que é negado por ambas.
Juízes
de instâncias inferiores deram decisões favoráveis às duas universidades, mas a
SFFA apelou, e os casos acabaram litigados até chegar à Suprema Corte, no ano
passado.
Além
das alegações contra ambas universidades, a SFFA pede que o tribunal
“anule Grutter versus Bollinger e determine que nenhuma
instituição de ensino superior possa usar classificações e preferências raciais
ou étnicas como fatores nas admissões”.
De
acordo com a SFFA, o uso da raça em processos de seleção viola a garantia
constitucional de igualdade de proteção da lei.
·
Alternativas e dificuldades
Defensores
do uso de ações afirmativas salientam que elas são essenciais para que o
ambiente acadêmico possa refletir a diversidade racial da sociedade americana e
ressaltam que isso é importante para a formação dos alunos e beneficia
estudantes de todas as origens.
Também
afirmam que restrições levariam a aumento da desigualdade, prejudicando
principalmente estudantes negros e latinos.
“Se
Harvard deixasse de levar em consideração a raça como um fator em seu processo
de admissão e adotasse as alternativas racialmente neutras sugeridas pela SFFA,
o resultado seria um corpo estudantil que não conseguiria alcançar a
diversidade e a excelência que buscamos”, diz a universidade em nota.
“Isso
comprometeria severamente a capacidade de alcançar os benefícios educacionais
oriundos de um corpo estudantil diversificado em diversas dimensões, incluindo
raça”, afirma Harvard.
Mesmo
entre a comunidade asiática, não há consenso sobre o tema. Enquanto
organizações como a Asian American Coalition for Education pedem o fim das
ações afirmativas, outros grupos, como o Asian Americans Advancing Justice,
dedicada à defesa dos direitos civis de americanos de origem asiática, são
favoráveis à prática.
Sem
os detalhes sobre a decisão da Suprema Corte, é cedo para saber que
alternativas as universidades poderiam usar com o objetivo de manter a
diversidade. Mas muitos defensores das ações afirmativas apontam para as
dificuldades enfrentadas por instituições que abandonaram a prática e buscaram
outras ferramentas, como considerar as condições socioeconômicas dos
candidatos.
Um
exemplo frequentemente citado é o da Califórnia, onde as ações afirmativas
foram proibidas e, apesar dos esforços das instituições de ensino, a população
estudantil não reflete a diversidade do Estado.
“Apesar
de extensos esforços, a Universidade da Califórnia enfrenta dificuldades em
matricular um corpo discente suficientemente diversificado racialmente”,
disseram representantes da universidade em documento enviado à Suprema Corte
para apoiar as políticas de ações afirmativas.
“Isso
é especialmente aparente nos campi mais seletivos da UC, onde os alunos negros,
indígenas e latinos estão sub-representados e relatam sentimentos de isolamento
racial”, diz o texto.
Fonte:
BBC News Brasil
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