OS PERIGOS DE
ENTREGAR O MINISTÉRIO DA SAÚDE AO CENTRÃO
O DESEJO DO CENTRÃO pelo controle do Ministério da Saúde não tem a ver
apenas com orçamento da pasta, embora os R$ 162 bilhões previstos para 2023 sejam motivo
suficiente. De acordo Sonia Fleury, doutora em ciência política e pesquisadora
do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz, também há
interesses sobre a saúde digital e a transição tecnológica do SUS. Tudo isso
está em disputa para a turma liderada pelo presidente da Câmara dos Deputados,
Arthur Lira, do Progressistas.
Em
entrevista ao Intercept,
Fleury chama atenção para o valioso banco de dados do Ministério da Saúde sobre
a população brasileira, algo que pode representar uma ameaça nas mãos de
grandes corporações, já que a venda de dados sobre a vida e a morte das pessoas
é um mercado em potencial. “Em que medida isso vai ser passado para o setor
privado?”, refletiu.
A
cientista também destacou o projeto do Centrão de enfraquecer o governo Lula
por dentro. Assumindo o comando de um ministério essencial para a população e
de grande capilaridade em todo o país, seria possível direcionar recursos para
adversários, atrapalhar o desenvolvimento de políticas públicas e,
consequentemente, impedir o cumprimento de promessas feitas pelo presidente. “A
memória do sofrimento da pandemia ainda está muito recente. Se Lula errar na
saúde, corre o risco de chegar extremamente enfraquecido nas próximas
eleições”.
Fleury
ainda falou sobre a gestão da ministra da Saúde Nísia Trindade e sugeriu
estratégias para o governo Lula driblar a pressão do Centrão por cargos na
pasta. “Os empresários têm as suas formas de lobby no Congresso e nos ministérios.
E a população também precisa ter os canais para incluir suas demandas na arena
pública”.
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Confira a entrevista.
·
O que está por trás do interesse do Centrão pelo
controle do Ministério da Saúde, para além do grande orçamento da pasta?
Sonia Fleury – A questão mais ampla é a disputa
presidencial. Querem o enfraquecimento do governo. A memória do sofrimento da
pandemia, das mortes das pessoas, ainda está muito recente. Se Lula não cumprir
suas promessas na área da saúde, isso o enfraquece enormemente. Eles tentam
segurá-lo, por um lado, com o arcabouço fiscal, que já é uma
forma de atender grande parte dos interesses do mercado, para não haver
mudanças tão radicais na área econômica. Agora, partiram muito fortemente para
a área social, onde o principal ministério é o da Saúde, que atende todas as
faixas da população. Se o governo erra nessa área, isso representa a
possibilidade de eleger um candidato de direita que explore as promessas não
cumpridas. A direita está felicíssima que o Bolsonaro deve ser impedido de
concorrer,
porque assim ela vem com um candidato mais palatável, como Tarcísio de Freitas
[atual governador de São Paulo].
Há
outros interesses relativos ao controle das emendas parlamentares. O Ministério
da Saúde deu uma orientação geral sobre os
critérios e restrições para a liberação. É inadmissível para os parlamentares
que as emendas sejam barradas por não atenderem a critérios técnicos. Mas essa
é uma forma de resgatar a inteligência e a capacidade de planejamento do
estado.
·
E tem a eleição para prefeitura vindo aí…
Sim,
a liberação de emendas permite que os políticos favoreçam seu curral eleitoral
– isso não é ruim. Ruim é fazer isso fora de um planejamento do estado
brasileiro. E, quando se pode fazer o que bem entende, também se pode roubar o
que quer, porque não tem transparência, controle ou critério.
Tem
interesses também sobre a saúde digital e toda a questão que vem da
incorporação de tecnologias de informação. Em que medida isso vai ser passado
para o setor privado? Tudo está em disputa.
·
De que forma as corporações privadas podem se
aproveitar de práticas como as teleconsultas e o uso da inteligência artificial
no SUS?
O
Ministério da Saúde tem um invejável banco de dados sobre a população
brasileira. Isso interessa não só às empresas da saúde, mas ao mercado em
geral. A venda de dados pessoais é um mercado em potencial. Isso tem que ser
visto com muito cuidado, para proteção dos dados sobre a vida e a morte das
pessoas e para impedir qualquer possibilidade de uso privado deles.
Quanto
à incorporação tecnológica, ela pode ser benéfica para superar vários gargalos
assistenciais que existem no SUS e que o Programa Mais Médicos não consegue
superar, porque vão além da atenção primária. As questões mais complexas de
atenção secundária e até terciária podem ser beneficiadas pela telemedicina.
Mas isso também pode se dar em proveito da área privada. Contratar empresas
para esse tipo de serviço tem o risco do uso de dados, porque eles ficam sem
proteção e sem regulação suficiente. Além disso, o SUS fica sempre dependente
do setor privado. A incorporação tecnológica não pode representar uma maior
dependência do SUS.
·
Seria o caso de evitar contratos com empresas
privadas?
Deve-se
buscar maior articulação com o próprio setor público, com os hospitais
universitários, centros de pesquisa e as áreas científica e tecnológica das
universidades.
·
Você mencionou em um
artigo o desenvolvimento de um complexo
econômico-industrial do setor de saúde. O que é esse complexo e como ele pode
afetar interesses multinacionais?
Durante
a ditadura militar, o Brasil criou a Central de Medicamentos, uma produtora de
remédios nacionais. Os militares eram autoritários, mas tinham essa ideia do
desenvolvimento nacional. Dos anos 1980 para cá, houve a involução dessa área,
e não produzimos mais os insumos de que precisamos. Somos completamente dependentes
dos insumos mais banais. Na pandemia ficou claro, isso. Não tínhamos
respiradores, nem máscaras – comprávamos da China.
O
Ministério da Saúde tem uma proposta que foi muito aceita pela Organização
Mundial de Saúde, que é o fortalecimento do complexo econômico-industrial do setor. O
projeto visa retomar a produção de insumos e direcioná-los para o SUS. Hoje,
temos o Butantan e a Fiocruz ilhados, mas precisamos ter parques industriais
espalhados pelo país inteiro.
Isso
quer dizer emprego e desenvolvimento de ciência e tecnologia. Significa que
vamos comprar menos de empresas das quais compramos – e há interesse de evitar
isso. Se nós não produzimos insulina, por exemplo, continuamos dependentes de
três empresas no mundo que produzem e que põem o preço que querem. As grandes
empresas produtoras de fármacos, com patentes internacionais, querem minar o
complexo econômico-industrial da saúde, porque é uma ideia de soberania
nacional.
·
Como o Centrão, dentro do Ministério da Saúde,
poderia atrapalhar esse projeto?
O
governo Bolsonaro mostrou que a aliança entre conservadorismo na área política
e os interesses privados é absolutamente viável, porque ambos são contra o
estado. O setor privado quer demolir a inteligência, a capacidade de
investimento e a capacidade de produção do estado por questões de
lucratividade. O conservadorismo quer o mesmo, para continuar mandando nos seus
currais eleitorais.
O
setor de saúde tem influência enorme não só na assistência e na produção de
medicamentos. Passa pela Anvisa tudo que a gente consome, todos os produtos que
usamos. Há muitos interesses. Essa ideia da desregulação do Ministério da Saúde
interessa aos políticos conservadores, ao capitalismo moderno e também aos
planos de saúde, porque uma menor regulação ajuda na sua lucratividade.
·
Lula já avisou ao
Centrão que não abre mão da ministra Nísia Trindade.
Você acredita que ele vá conseguir manter essa firmeza a longo prazo?
Ele
deveria. O Lula assumiu compromissos muito fortes com o setor organizado da
saúde. Houve uma rearticulação do movimento da reforma sanitária por meio da
criação da Frente Pela Vida, que articulou
setores de dentro e de fora da área de saúde, que fez inúmeras manifestações –
não só políticas, de contestação durante o Bolsonaro, mas propostas e estudos
concretos de como fazer políticas públicas mais efetivas. O Lula se comprometeu
com a carta de princípios de defesa do SUS público,
universal e democrático.
[Abrir
mão de Trindade] Seria como trair seus eleitores e as forças sociais que podem
apoiá-lo. Tem a questão da governança, a relação com o Congresso, o
presidencialismo de coalizão, mas tem uma questão mais importante, que é a
governabilidade. Quais são as forças sociais que o sustentam? Uma das grandes
forças é o movimento da área de saúde.
·
O que o governo tem a perder se ceder às pressões
pela troca no Ministério da Saúde?
Primeiro,
quem perderia seria o Brasil, porque o Ministério da Saúde estaria entregue de
novo a um jogo político que não considera as necessidades de saúde da
população. Não considera as orientações científicas, a necessidade de ter um
estado inteligente, forte e capaz. Perderia também a área econômica, porque
afetaria o projeto do complexo econômico-industrial. Ceder às pressões seria
uma perda incomensurável, porque afetaria a governabilidade e retomaria o
processo de privatização e de interesses clientelistas.
·
Como você disse antes, a médio prazo, Lula perderia
também o poder…
Sim.
Correria o risco de chegar extremamente enfraquecido em um processo eleitoral.
Há toda uma aceitação [da gestão de Trindade] na sociedade, fora os militantes
que estão organizados no movimento sanitário e na Frente Pela Vida. A opinião
pública entende que Nísia é uma cientista, que não está lá para defender
interesses particularistas, mas os interesses do país. É um ministério que tem
se destacado pela sua capacidade, pela seriedade com que está sendo tratada a
questão da Saúde.
·
Interessa ao Centrão ocupar também secretarias do
Ministério da Saúde, e articuladores políticos do governo já admitem que
isso pode ser entregue. Que secretarias serviriam a
esse grupo?
Siga
o dinheiro. Provavelmente gostariam de ter a área de atenção especializada,
porque os gastos são muito altos e tem uma capacidade de mobilização de
recursos financeiros para compras hospitalares. É o filé mignon. Há ainda a
Funasa [Fundação Nacional de Saúde], que atua em áreas que são geralmente
dominadas por elites políticas tradicionais.
·
Você diz que a discussão sobre a Reforma Tributária
deve aumentar as pressões dos partidos pela ocupação de ministérios e estatais
com altos recursos, em especial a Saúde. Qual a relação entre uma coisa e
outra?
Não
será fácil aprovar uma reforma tributária, como nunca foi, porque afeta os
interesses das pessoas que têm mais poder de lobby e de representação no
Congresso. Essa discussão sobre se vai tributar herança ou jatinho e isentar a
população mais pobre implica em tensões muito grandes. E aí, vão vir novas
exigências para liberar emendas, para ocupar estatais. Mas, hoje, um acordo
feito com um líder não quer dizer nada, porque o controle das lideranças dos
partidos sobre suas bancadas diminuiu enormemente. Não é que não vamos ter
presidencialismo de coalizão. Desde que o governo seja minoritário no
Congresso, ele vai ter que criar uma coalizão, vai ter que negociar. Mas,
antes, a negociação garantia uma certa fidelidade.
·
Era menos gente para negociar?
Não
era tão fragmentado e havia um controle sobre as bancadas. Os líderes faziam um
acordo para ganhar um ministério e isso queria dizer que o partido ia votar com
o governo. Isso não ocorre mais. Tem que pensar em outros mecanismos.
·
Já que a liberação de emendas e entrega de
ministérios não é mais eficaz para a construção dos apoios políticos, que
outras estratégias seriam?
Incluir
a sociedade civil organizada nessa disputa e mostrar que o presidente tem força
popular é importante. O governo também deveria envolver os governadores. Embora
os estados mais ricos estejam na mão da oposição, os governadores sempre
tiveram muito controle sobre as bancadas regionais, porque elas dependem disso
para as eleições municipais.
·
As cobranças da sociedade pelo cumprimento das
promessas feitas por Lula também poderiam servir para justificar medidas que
desagradariam o Centrão?
Com
certeza é por aí. Existem hoje canais de participação mais direta da população.
As conferências são um mecanismo extremamente importante. Essa mobilização da
sociedade traz um reforço muito grande de apoio ao governo por um lado, mas
também de cobrança de várias questões que estão ainda por serem resolvidas,
seja por impasses financeiros, seja por impasses políticos.
Os
empresários têm as suas formas de lobby no Congresso e nos ministérios. E a
população precisa também ter os canais para incluir suas demandas na arena
pública. A sociedade precisa cobrar mais também dos parlamentares. Há pouca
mobilização nesse sentido.
Fonte:
Por Nayara Felizardo, em The Intercept
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