O que está em jogo
na disputa pela reencarnação do Dalai Lama
Um
grupo de ateus chineses – o Partido Comunista da China – determinou há muito
tempo como os grupos religiosos do país devem praticar a sua fé.
Os
cristãos chineses, por exemplo, são instruídos a rejeitar a salvação pela fé e
a ressurreição de Cristo. Suas crenças principais devem ser o patriotismo e o
amor pelo partido.
O
PC chinês também publicou diversos panfletos detalhando crenças e práticas
apropriadas para os budistas e ordenou que eles adaptassem seus pensamentos a
elas.
Mas
as autoridades comunistas estão particularmente preocupadas com um elemento
politicamente sensível do Budismo: a sucessão do atual Dalai Lama, Tenzin
Gyatso.
Sua
linhagem reencarnatória começou no século 16. Ele irá fazer 88 anos de idade em
julho e tem sido noticiado que ele sofre problemas de saúde, embora afirme que
está saudável.
Nos
seus veículos oficiais, como o jornal Global Times, o PC chinês defende que o
governo da China é o único árbitro legítimo para todas as reencarnações de
lamas budistas, independentemente de onde eles nascerem ou das suas regiões
tradicionais de influência.
O
Estado chinês suspeita profundamente dos fiéis religiosos e do seu possível
poder de persuasão sobre ideologias rivais. Por isso, ele insiste em nomear e
educar todas as figuras religiosas importantes.
Eles
aprendem a propaganda do patriotismo chinês e se dedicam a reproduzir a linha
do partido, mas costumam ter pouco conhecimento da sua suposta religião. Os
verdadeiros fiéis reconhecem esta situação.
O
Dalai Lama destacou o absurdo da posição do partido no início de 2023, ao
reconhecer um menino mongol de oito anos como o décimo Jetsun Dampa, a linhagem
reencarnatória mais influente da Mongólia.
A
decisão irritou as autoridades chinesas, por demonstrar que o Dalai Lama mantém
sua autoridade entre os budistas da região. E também demonstrou que, mesmo
depois de décadas de insistentes alegações de que o PC chinês exerce a única
autoridade nestes assuntos, esta é apenas uma invenção oficial.
Em
1995, o Dalai Lama proclamou um menino tibetano chamado Gendün Chökyi Nyima
como Panchen Lama, o segundo lama reencarnado mais importante da sua ordem
Geluk.
O
partido reagiu com a prisão do menino, que tinha então seis anos de idade,
junto com sua família. Eles nunca mais foram vistos.
• A Urna Dourada
Os
budistas tibetanos acreditam que, após a morte, a consciência da pessoa migra
para um novo corpo.
Para
a maioria das pessoas, isso acontece involuntariamente, mas os mestres
avançados podem escolher suas situações de vida. Eles são chamados de
"tulkus" ("corpos de emanação").
Tradicionalmente,
os tulkus exerceram a autoridade suprema sobre suas próprias sucessões. Muitos
lamas publicam previsões indicando as circunstâncias do seu renascimento,
incluindo o local e a época.
Na
esperança de combater os planos do Partido Comunista Chinês de indicar seu
sucessor, o Dalai Lama declarou que não irá renascer em nenhuma região sob o controle
da China. Ele afirma que a principal tarefa do novo tulku será realizar o
trabalho inacabado do seu predecessor, o que seria impossível no Tibet ocupado.
O
PC chinês menciona precedentes, a maioria deles inventados ou exagerados, que,
segundo eles, concedem ao partido o direito historicamente determinado de
decidir todas as questões sobre a sucessão dos tulkus.
Muitos
desses precedentes referem-se à “Urna Dourada”, enviada para o Tibet em 1792
pelo imperador chinês Qianlong, com suas instruções de uso. Os nomes dos
possíveis tulkus devem ser inscritos para sorteio e colocados na urna. O lama
em exercício escolheria um deles aleatoriamente como o tulku sucessor.
Apesar
das alegações das autoridades do partido de que a urna foi usada em todas as
seleções de tulkus desde que foi enviada para o Tibet, fontes históricas
indicam que ela foi usada apenas esporadicamente.
Além
disso, não vi nenhum documento do Tibet que apresente a urna como o único fator
determinante para a sucessão dos tulkus. Em todos os casos que examinei, foram
realizados exames tradicionais em primeiro lugar.
Uma
criança candidata, por exemplo, recebeu dois conjuntos de objetos – um
pertencente ao predecessor e outro similar. O sucessor real deveria ser capaz
de identificar corretamente os objetos de propriedade do seu predecessor.
Os
sorteios da Urna Dourada foram realizados como uma dentre uma série de medidas
para garantir que fosse selecionado o candidato correto – ou para apaziguar as
autoridades chinesas.
O
Dalai Lama declarou que está aberto a um processo que inclua sorteios retirados
da urna, mas insiste também nos métodos de sucessão padrão desenvolvidos pelo
Budismo Tibetano.
• Conflitos filosóficos
A
maioria das discussões públicas sobre a sucessão concentra-se em afirmações e argumentações
com bases históricas, mas a lógica subjacente dos dois lados raramente é
mencionada.
O
Budismo Tibetano defende que, à medida que a morte se aproxima, os níveis de
consciência mais grosseiros se dissipam. No momento da morte, manifesta-se a consciência
mais sutil, a “Clara Luz”. Em seguida, a pessoa entra no “estado intermediário”
(bardo) e renasce em outro corpo.
A
principal base do renascimento é a consciência. Ela é comparada com um rio, que
flui de um momento para outro e cada momento é condicionado pelos momentos que
o precederam. Não é como uma alma porque é impermanente, está em mutação.
A
maioria dos budistas acredita que o renascimento é determinado pelo seu carma
do passado, mas os tulkus podem escolher conscientemente sua situação na
próxima vida.
Um
dos principais absurdos das alegações do Partido Comunista chinês sobre sua
autoridade sobre este processo é o fato de que seus membros seguem a filosofia
marxista do materialismo dialético, que rejeita a ideia de renascimento e a
transferência de consciência entre os corpos.
Por
isso, quando o partido designar alguém como “Dalai Lama”, será como nomear um
agente dos correios – um cargo supervisionado pelo governo, que pode ser
conferido a qualquer pessoa.
Mas
os budistas tibetanos acreditam que o reconhecimento de um Dalai Lama é muito
mais do que isso. É o resultado de uma série de exames rigorosos, elaborados
para determinar uma pessoa única, cuja consciência é a continuação do seu
predecessor.
• O que está em jogo para o Budismo
Tibetano?
Depois
do desaparecimento de Gendün Chökyi Nyima, em 1995, o governo promoveu uma
cerimônia para nomear outro menino como Panchen Lama.
Os
Panchen Lamas desempenharam, muitas vezes, papéis importantes no reconhecimento
dos Dalai Lamas. O PC chinês declarou seus planos de usar seu Panchen Lama para
escolher o Dalai Lama que ficará sob seu controle.
O
Dalai Lama declarou em diversas ocasiões que o povo tibetano irá rejeitar a
escolha da China. E os tibetanos exilados planejam empregar métodos
tradicionais para identificar o sucessor de Tenzin Gyatso.
Inevitavelmente,
outros países serão arrastados para este misterioso conflito, baseado em
precedentes religiosos de séculos atrás que poucos irão compreender.
Depois
que cada lado anunciar seu respectivo Dalai Lama, qual será o efeito sobre os
budistas tibetanos no Tibet e suas práticas religiosas? Provavelmente, será
muito pequeno.
O
Panchen Lama do Partido Comunista Chinês é considerado pelos tibetanos uma alta
autoridade do governo e é tratado com o devido respeito. Mas ele não tem
autoridade como mestre religioso.
E,
apesar das tentativas do governo de promovê-lo, ele não tem a formação, o
conhecimento e o carisma necessários para sua função de tulku. Ele raramente
visita o Tibet e não demonstrou aptidão para os aspectos religiosos do seu
cargo.
O
futuro Dalai Lama nascido no exílio irá receber a formação tradicional das mais
estimadas figuras do Budismo Tibetano. Já o seu rival do PC chinês irá se
formar em uma escola do governo e se tornará um porta-voz do partido.
O
primeiro provavelmente irá seguir as pegadas de Tenzin Gyatso, tornando-se um
porta-voz do Budismo reconhecido internacionalmente. Enquanto isso, o último
irá imitar o Panchen Lama do partido, repetindo qualquer mensagem que seus
senhores ordenarem que ele ofereça aos budistas tibetanos.
A
sobrevivência futura do Budismo Tibetano não está garantida. Os tibetanos se
identificam esmagadoramente como budistas e a maioria reverencia profundamente
o Dalai Lama, apesar das décadas de propaganda tentando demonizá-lo.
O
governo vem impondo cada vez mais restrições às práticas religiosas. Existem
também obstáculos econômicos para as pessoas que quiserem manter seus
compromissos religiosos tradicionais.
Esta
luta entre a tradição e o controle do Partido Comunista provavelmente irá se
desenvolver pelas próximas décadas e o futuro parece cada vez mais sinistro
para quem desejar resistir.
Fonte: John Powers,
para The Conversation
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