Nota sobre o
sistema de cotas no Brasil
Nem
adianta insistir no tema do racismo estrutural, explicitando, inclusive, que a
questão do racismo no Brasil tem raízes históricas e está até hoje presente
como elemento estruturante de um modelo de sociedade integrado ao contexto de
capitalismo dependente.
Nem
mesmo cabe falar do quanto o convívio histórico com a escravização nos legou
uma forma de naturalizar as violências raciais, sendo a mais proeminente delas
a da negação, isto é, a de negar haver uma questão racial em determinados atos
e palavras.
Muito
menos valeria trazer à tona o pacto narcísico da branquidade, como diria Cida
Bento, que se estabelece entre as pessoas brancas, negando a questão racial ou
mesmo impedindo práticas de correção, para, assim, conseguirem manter intactos
os seus privilégios.
Vou
falar apenas de uma situação concreta, sem interpretações sociológicas ou
maiores digressões de cunho cultural. O fato concreto é que, em 2014, por meio
da aprovação da Lei n. 12.990, negros e negras conquistaram o direito a cotas
de 20% nos concursos públicos federais.
Nos
termos da lei em questão, 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para
provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da Administração
Pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas
e das sociedades de economia mista controladas pela União, ficam reservadas às
negras e negros.
É
importante perceber que o número de negras e negros aprovados não
corresponderá, restritamente, a 20% total de não cotistas, pois o que se prevê,
na lei, é que as candidatas negras e os candidatos negros também concorrem, de
forma concomitante, às vagas de “ampla concorrência” (art. 3º), sendo que a
aprovação de negras e negros na ampla concorrência não será computada “para
efeito do preenchimento das vagas reservadas” (§ 1º, do art. 3º).
Assim,
de forma bem objetiva, que ao se preencherem as vagas que foram “oferecidas”,
20% delas, no mínimo, devem ser ocupadas por negras e negros. Simples, não?
Deveria
ser, não fosse o fato de que se está falando de uma política de inserção de
negras e negros em um país marcado pela escravização. Superando a lógica de
reparação histórica integrada à lei em questão, os editais dos concursos têm se
pautado pelo critério meritório, o que só serve para reproduzir toda lógica de
exclusão até hoje experimentada pelo povo negro.
Ao
fixarem uma “nota de corte” aplicável a todos os inscritos no concurso o
critério da “reserva das vagas” é quebrado, fazendo prevalecer os privilégios
da população branca. E vale reparar que qualquer nota, dita como mínima, ainda
é uma “nota de corte” e ainda que se a entenda necessária para por algum
aspecto, não poderá esta ser a mesma para “cotistas” e “não cotistas”, sob pena
de se eliminar, em concreto, a reserva de vagas.
No
II Concurso Nacional para Ingresso na Magistratura do Trabalho foi exatamente
isto o que se verificou. Nos termos do item 10.21.3 do Edital do concurso,
restou previsto que seriam “classificados” para a segunda fase os(as) 1.500
(mil e quinhentos) candidatos(as) que obtivessem “as maiores notas e todos(as)
os(as) empatados(as) na última posição de classificação”.
E
a mesma cláusula previa que: “Além desses, serão convocados(as) os(as)
candidatos(as) que concorrem às vagas destinadas às pessoas com deficiência e
às pessoas negras, desde que tenham obtido a nota mínima exigida para todos(as)
os(as) outros(as) candidatos(as).” O Edital, portanto, não fixou qualquer cota
para pessoas negras e negros. Apenas disse que todas as pessoas autodeclaradas
negras passariam à segunda fase caso atingissem as exigências mínimas
meritórias, não estando submetidas, portanto, ao patamar de uma eventual nota
de corte superior na “ampla concorrência”.
O
requisito meritório restou assim consignado no Edital: “10.21.3 Será
considerado(a) habilitado(a) na Prova Objetiva Seletiva o(a) candidato(a) que
obtiver o mínimo de 12 (doze) acertos no primeiro bloco de questões, 9 (nove)
acertos no segundo bloco de questões e 9 (nove) acertos no terceiro bloco de
questões e, satisfeita essa condição, alcançar, também, no mínimo, 60
(sessenta) acertos do total das questões dos 3 (três) blocos.”
A
fórmula trazida para a quantificação dos aprovados pode parecer uma vantagem,
pois os candidatos negros e negras não estariam submetidos sequer ao número
máximo de 1.500 para aprovação na primeira fase ou a qualquer outro limite,
pois “todas” que atingisse a nota mínima seriam chamadas.
No
entanto, a correção da desigualdade histórica requer concretude, ou seja, não
se satisfaz com preceitos abstratos que, na aparência, satisfazem as “exigências”
da lei. De fato, não se pode conceber o sistema de cotas como um obstáculo a
ser ultrapassado, como um incômodo a que se submetem os organizadores de um
certame público. Há de se ter a vontade de que, por este sistema, se promova
uma forma, ainda que singela da correção das violências sofridas pelo povo
negro.
Sendo
assim, a fórmula criada não pode, em hipótese alguma, se satisfazer em si mesma
a partir de uma lógica formal e que ainda se apoia no critério de mérito, que é
um dos mecanismos de maior violência e de opressão imposto ao povo negro, desde
a Lei de Terras, de 1850, até os nossos dias.
No
caso concreto, considerando a dificuldade da prova, sequer o número máximo de
1.500 aprovados na concorrência ampla foi atingido – o que há havia ocorrido no
I Concurso, vale destacar, sendo, portanto, ao menos, presumível.
Considerando
os termos da lei de cotas, se eram 1.500 vagas para a Ampla Concorrência,
deveriam ser fixadas 300 vagas para as cotas raciais e 90 para Pessoas com
Deficiência, sem considerar aqueles, dentre estes, que fossem aprovados na
Ampla Concorrência. Lembre-se que nos termos do próprio Edital o número de
aprovação para candidatos negros e negras, além de PCDs, seria ilimitado e
considerado para além do limite de 1.500. No entanto, nenhuma pessoa negra e
nenhuma PCD foram aprovadas pelo critério de cotas.
Foram
aprovados, no total, 1430 candidatos, todos na ampla concorrência, estando
entre estes 191 candidatos autodeclarados negras e negros (12,8% do total de
aprovados), 45 pessoas com deficiência e uma negra com deficiência (3,14 do
total de aprovados).
Ocorre
que as negras e negros e PCDs foram aprovados pela aplicação das mesmas
condições a que foram submetidos todos os demais candidatos; ou seja, foram
aprovados dentro do contexto da “ampla concorrência”. O critério de sua
aprovação foi apenas o meritório.
Isto
quer dizer que, concretamente, as cotas não foram aplicadas. Matematicamente, a
aprovação por cotas foi de 0%, mas a lei prevê que seja, no mínimo, 20%, para
negros e negras e de 5%, para PCDs. Mesmo que não se queira levar a análise
para o campo da tradição escravista, não se pode deixar de pensar a respeito
quando se depara com algum argumento que tenta justificar que 0% de aprovados
por cota foi a devida aplicação de uma lei que fixa um percentual de, no
mínimo, 20%.
Bem
verdade que o CNJ, em decisão de 2022, aprovou Resolução que assegura a
candidatos negros o direito de passarem para a 2º fase bastando atingir a nota
6,0, não lhes podendo ser imposta cláusula de barreira e nota de corte. Então,
se poderá dizer, em defesa da higidez do Concurso, que as negras e negros que
não foram aprovados não atingiram a nota mínima 6,0.
Mas
a normativa do CNJ é, obviamente, uma proteção para os cotistas, dentro de um
contexto em que seu direito à cota de 20% foi negado por lhes ter sido imposta
nota de corte superior à nota mínima 6,0. Assim, ao se eliminar a nota de corte
ou cláusula de barreira, a intenção foi a de garantir que a Lei de Cotas
atingisse o seu objetivo concreto de uma promoção assertiva de inclusão.
Portanto, dito de outro modo, o que se deve extrair da Resolução do CNJ é a
fixação de uma disparidade na nota de corte entre cotistas e não cotistas, como
forma de garantir o respeito ao percentual previsto em lei.
No
caso do II Concurso Nacional para a Magistratura do Trabalho (e que também se
deu no I Concurso), a dificuldade de resolução da prova impediu que a nota
mínima 6,0 e os demais critérios meritórios fossem atingidos por um total de
pessoas correspondente ao número de vagas oferecidas (1.500), devendo ficar bem
nítido que número máximo para aprovação em cada fase do concurso segue o mesmo
critério de vagas oferecidas.
Como
consequência, o que se estabeleceu foi uma nota de corte, equivalente à nota
mínima, aplicável a todos candidatos, independente de serem cotistas ou não. Em
suma, deixando-se todos submetidos ao mesmo patamar, foi eliminada a “correção”
da desigualdade pretendida pela lei.
Concretamente,
só foram aprovados os negros e negras que seriam aprovados na ampla
concorrência. E o mesmo se deu com as pessoas com deficiência, a quem, também
direitos conquistados foram negados. Mas o que se pretende pelo sistema de
cotas é que sejam aprovadas, em um percentual mínimo, pessoas que, pelo
critério meritocrático, dadas as próprias razões históricas da exclusão, não
seriam aprovadas.
Dadas
as características do concurso, as vagas reservadas a negras e negros deveriam
ser submetidas a critérios distintos, incluindo a nota mínima, para se
preservar, inclusive, o direito à ampla concorrência. Isto é o óbvio e o
necessário. Do contrário, como, inclusive foi possível verificar, a reserva de
vagas se deu apenas formalmente, pois, dada a dificuldade a todos imposta, a
nota de mínima pode ser transformada em nota de corte, atraindo todos,
independe de condição especial, para a mesma concorrência.
Veja-se
que no Enem, por exemplo, há uma reserva percentual de vagas para cotas e estas
vagas atendem a critérios específicos, de modo a serem, concretamente,
preenchidas.
No
caso do concurso público, pode-se até vislumbrar a necessidade de uma nota
mínima, mas se a nota de corte corresponder à nota mínima, isto deve repercutir
no certame específico das vagas por cotas, para o efeito de garantir a
proporcionalidade mínima de aprovação, podendo-se, inclusive, caso necessário,
como no caso de provas que se apresentam em um nível de dificuldade artificial
e propositalmente bastante elevado, até mesmo eliminar a nota mínima, para que
se efetive, em concreto, o processo de inclusão. No sistema de cotas, a
política de inclusão se sobrepõe ao critério de mérito, até porque, as notas em
provas não avaliam a competência para o cargo, sendo, meramente, a reprodução
da lógica produtivista e meritória, notoriamente excludente.
O
sistema de cotas veio para quebrar esta lógica e constituir em real via de
ingresso de negras e negros e PCDs em postos dos quais foram historicamente
excluídos. Não à toa, apenas 15,9% dos magistrados(as) trabalhistas no Brasil
são negros e negras. E olha que este percentual é o maior dentre todos os
demais ramos do Judiciário.
Seguindo-se
os critérios em questão, fixados no Edital, foram aprovados(as) 19
candidatos(as) negros(as) e 3 PCDs, correspondendo, respectivamente, a 8,5% e
1,3% do total dos 223 aprovados(as). E esta aprovação, é bom que se diga, não
foi pelo sistema de cotas, pois os 19 negros e negras e os 3 PCDs obtiveram
notas que lhes permitiram integrar a lista da Ampla Concorrência. Ou seja, a
aprovação por cotas foi de 0%.
E,
do ponto de vista concreto, se considerarmos que o percentual de negros e
negras na magistratura do trabalho é de 19% e que, já sob o império da lei de
cotas, a aprovação no concurso referido foi de 8,5% (sendo 0% pelo sistema de
cotas), em vez de se ter avançado na política de inclusão e no projeto de
correção das desigualdades, o que se efetivou foi um autêntico retrocesso,
malgrado o “Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, apresentado pela
presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal
(STF), ministra Rosa Weber”, no dia 25/11/22, com o propósito de se estabelecer
o engajamento formal e solidário dos Tribunais com a transformação do cenário
de desigualdade racial, com a promoção de ações de equidade, inclusão, combate
e prevenção ao racismo.
O
fato é que, mesmo diante dos termos inequívocos da lei, não se está cumprindo o
mínimo necessário para a correção dessa realidade. A realidade de uma sociedade
em que negras e negros são: 54% da população; 19% entre juízes e juízas do
trabalho; e 84% das pessoas resgatadas em condições análogas à escravidão.
Nos
tempos em que se luta contra o racismo e se promovem eventos para denunciar e
enfrentar as violências raciais, inclusive no âmbito da própria Justiça do
Trabalho, não se pode negar a negras e negros a concretude de seu direito à
reparação histórica.
Um
ato vale mais do que mil palavras. E o que nós, população branca e
privilegiada, devemos à população negra não é uma romantização de seu
sofrimento, e sim, ao menos, respeito às suas lutas e às suas conquistas. No
caso: a reserva de, no mínimo, 20% de vagas oferecidas em um concurso público.
Fonte:
Por Jorge Luiz Souto Maior, em A Terra é Redonda
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