MULHERES NEGRAS E
DIREITOS HUMANOS: Dos tratados aos traçantes
Falar
sobre mulheres negras e direitos humanos requer uma localização geográfica. Falo
com os pés fincados no Brasil e olhos voltados para uma nação escravocrata,
que, para usar as categorias de Grada Kilomba em relação ao processo de
conscientização coletiva, vive ainda hoje um intenso momento de negação
(KILOMBA, 2020, p.11), vide recentes episódios racistas presenciados no país.
Porém,
em diálogo com a importante produção da autora, reconheço que inúmeras
iniciativas dos movimentos sociais apontam para um setor, cada vez mais forte e
organizado da população brasileira, atuando no reconhecimento e reparação do
racismo estrutural em nosso país. E é olhando para esses setores que pretendo
refletir sobre mulheres negras e direitos humanos no Brasil.
Começo
então com os versos do samba campeão do Carnaval de 2019, no qual a Mangueira
afirma “Brasil, chegou a vez, de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”.
E
foi assim, ouvindo, apreendendo com as mais velhas, que pude somar minhas
leituras como historiadora, professora, pesquisadora e as vivências de mulheres
negras na luta por direitos neste país.
• Dos tratados aos traçantes: de que
direitos humanos estamos falando?
Ao
falar de direitos humanos em espaços formativos é comum ter como marco a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Um importante tratado para
humanidade assinado no período pós Segunda Guerra Mundial quando o mundo ainda
estava perplexo com as barbaridades do nazismo e seus campos de concentração.
Porém,
é fundamental compreender a declaração em seu contexto histórico e uma primeira
pergunta é: o que acontecia no continente africano em 1948 enquanto os países
da ONU assinavam a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Um continente
invadido e repartido para atender aos europeus na Conferência de Berlim
(1884-1885) tentava sobreviver à intensa exploração econômica de seus
colonizadores lidando com diversos conflitos étnicos gerados como consequência
de uma divisão territorial arbitrária, feita a partir da ganância
europeia.
Esse
fato nos diz muito sobre o conceito de direitos humanos para a população negra.
Os tratados são fundamentais, porém, eles se efetivam na luta política, assim
como a independência dos países africanos arduamente conquistadas, em grande
maioria, décadas após a declaração de 1948.
Para
ilustrar o que digo gostaria de compartilhar o relato de um momento histórico
que tive a honra de presenciar. Outubro de 2019, auditório da Anistia
Internacional Brasil lotado de mulheres negras, lideranças na luta contra o
racismo e contra o patriarcado. A convidada da noite era Angela Davis, uma
grande referência no tema da interseccionalidade, árdua defensora da urgência
de se observar os entrelaçamentos das opressões de gênero, raça e classe.
A
anfitriã, Anielle Franco, atual ministra da Igualdade Racial, outra mulher
negra, alçada à condição de defensora pela brutal execução de sua irmã,
Marielle Franco. Um auditório potente, repleto de dores e alegrias, lutas e
sonhos. Angela Davis inicia dizendo querer ouvir pois compreende que ali está
com irmãs de luta.
Algumas
lideranças se inscrevem apresentando análises de conjuntura. Destaco aqui o
relatado que mais me marcou nesse dia: o episódio da Marcha das Mulheres Negras
contra o racismo, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no ano de 2015. Na
capital federal, uma marcha de mulheres negras antirracistas é atacada com
tiros de dois policiais civis.
Atentas
e com seus corpos impactados, pois muitas que ali ouviam o relato em 2019
estavam entre aquelas que correram dos tiros em 2015. As mulheres negras no
auditório se mantinham firmes, ainda que com olhos marejados. Angela Davis, com
semblante indignado, ouvia a luta daquelas que ela própria chamara de irmãs de
luta. Como relatado, horas após os tiros, a marcha se (re)organizou e seguiu
seu curso: a luta contra o racismo estrutural neste país.
Essa
é a realidade das mulheres negras e os direitos humanos neste país. Naquele
auditório, repleto de defensoras, não ficamos teorizando sobre conceitos ou
tratados, importantes para garantir marcos legais, mas falamos de nossos mortos
e da urgência de seguir mesmo quando nossa vida está constantemente
ameaçada.
Compreender
essa conjuntura é fundamental para entender o conceito de direitos humanos a
partir do ponto de vista de mulheres negras. As defensoras negras conceituam e
explicam os direitos humanos a cada dia quando apresentam que direitos humanos
é a luta intransigente pela dignidade humana, o direito à água potável, à
alimentação, à moradia, à terra, à saúde, à educação, à igualdade racial e de
gênero, ao julgamento justo de crimes cometidos. Todas essas pautas são os
direitos humanos.
Enquanto
lutam para que seus filhos e filhas não sejam mortos por traçantes e balas que
de perdidas nada têm – já que nesse país pessoas negras são alvo –, nós,
mulheres negras, escrevemos com nossos corpos uma outra declaração dos direitos
humanos. Forjado a partir de nosso sangue, esse documento se atualiza a cada
dia quando uma de nós se levanta para dizer “Parem de nos matar!”
Em
seu livro infantil A vida não me assusta, Maya Angelou de forma poética mostra
a força das mulheres negras ao enfrentar os perigos da vida. Em outro conhecido
texto da autora, dirigido ao público adulto, ela afirma que mesmo após tantos
golpes da vida e do racismo, “Ainda assim eu me levanto”.
Nós,
mulheres negras, nos levantaremos sempre contra as opressões que nos atingem.
Não esperem de nós a docilidade dos acordos e tratados, sabemos fazê-los, mas
escutem e respeitem nossa dor e raiva. É o mínimo a se esperar de alguém que
realmente almeja romper com um passado colonial, patriarcal e escravocrata.
• Raivosas como uma categoria de
(des)qualificação: mulheres negras respondem ao racismo
No
Brasil ocupar a política não é algo fácil para as mulheres, mas para as
mulheres negras essa tarefa é ainda mais árdua, como aponta a pesquisa do
Instituto Marielle Franco Violência Política contra Mulheres Negras. Para além
do racismo estrutural repleto de ódio vindo de inimigos históricos saudosistas
do tempo das senzalas, muitas mulheres negras ao ocupar a política enfrentam
desqualificações de companheiros e companheiras acostumados com uma forma
tradicional, leia-se branca, hétero e classista, de fazer política.
Nesse
contexto, a discordância política, ao incomodar, é desqualificada, nomeada de
imaturidade, falta de habilidade e reduzida à “raiva”. Recorro aqui às palavras
de Audre Lord: “Minha raiva me causou dor, mas também garantiu minha
sobrevivência, e antes de abrir mão dela vou me certificar de que exista algo
pelo menos tão poderoso quando ela” (LORDE, 2019, p.165).
No
livro Irmã Outsider, a autora dedica um capítulo inteiro para discutir os usos
da raiva no combate ao racismo. O cenário político brasileiro precisa dessa
leitura, é urgente que o campo progressista do país compreenda a mensagem da
autora quando ela afirma que “minha raiva não serve de desculpa para que você
não lide com a sua cegueira, nem de motivos para que você se esquive das
consequências de seus próprios atos” (LORDE, 2019, p.165).
Respeitem
a raiva das mulheres negras! Destaco ainda que respeitar não é concordar, é
trazer para a arena política diferentes argumentos e experiências de leitura da
conjuntura. No Brasil, os úteros negros sangram mais que todos os outros, que
possamos de fato ouvir, enquanto estão vivas, as “Marias, Mahins, Marielles,
malês”.
Poucos
minutos antes de ser brutalmente executada, Marielle Franco, hoje um nome
internacional dos direitos humanos brasileiro, encerrou sua atividade na Casa
das Pretas dizendo sair de lá com o corpo, o coração e a mente fortalecidos
para as batalhas que viriam. Minutos depois nossa companheira tombou, mas ela
não foi e não será interrompida, pois era semente. Encerro este texto com a
mesma frase que ela escolheu para terminar o que seria seu último discurso:
“Não sou livre enquanto qualquer outra mulher for prisioneira, ainda que as
amarras dela sejam diferentes das minhas” (LORDE, 2019, p.167). Direitos
humanos para as mulheres negras é quebrar grilhões e destruir amarras.
Fonte:
Por Pâmella Passos, no Le Monde
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