Uma enfermeira deveria poder fazer um
aborto?
Por se tratarem de procedimentos de baixo risco, o
aborto farmacológico e a aspiração intrauterina podem ser realizados por outros
profissionais, não apenas médicos. É o que orienta a Organização Mundial de
Saúde (OMS) em uma diretriz publicada em
2022. Mas não é o que vale no Brasil: apenas profissionais da medicina estão
autorizados a interromper a gravidez nos casos permitidos em lei – anencefalia
fetal, gravidez fruto de estupro ou que arrisca a sobrevivência da gestante.
O país passa por retrocessos até mesmo em relação à
garantia do direito ao aborto nessas situações, que põem a vida das mulheres em
situações limite. Os serviços de saúde que oferecem o atendimento são escassos
e em muitos casos estão sendo desmontados. Entidades da saúde – Aben, Abenfo,
Cebes, SBB, Rede Unida e Abrasco – junto ao PSOL entraram com uma ação no
Supremo Tribunal Federal (STF) para rever quem tem permissão para tratar desses
casos.
A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental) 1207 pede a derrubada da limitação imposta no art. 128 do Código
Penal, que define que apenas “o médico” não sofrerá punições na prática do
aborto, nos casos previstos em lei. A ideia é que outros profissionais de saúde
e a própria gestante podem atuar na interrupção de uma gravidez de risco ou
fruto de um aborto.
Se trata, em primeiro lugar, de ampliação do acesso,
como alerta a médica Ana
Costa, diretora executiva do Cebes (Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde), uma das entidades peticionárias da ADPF. “Porque, hoje, o
volume de partos de crianças e adolescentes é um escândalo, no Brasil. Isso
significa que as meninas não estão tendo chance de interromper a gravidez,
mesmo tendo direito”, completa.
Números atestam essa restrição do acesso à saúde
reprodutiva no Brasil. Em estudo recente de
pesquisadores ligados à UFSC, constatou-se que a oferta de aborto legal se dá
majoritariamente em hospitais (98,6%), na região Sudeste (40%), em municípios
com mais de 100 mil habitantes (59,5%). Estabelecimentos que oferecem os
serviços estão em apenas 200 municípios brasileiros, ou 3,6%.
Jacinta Sena da Silva, presidente da
Associação Brasileira de Enfermagem (Aben), entidade que está à frente da ação
movida no STF, reforça a necessidade da ampliação do acesso, que seria
beneficiada pelas profissionais que representa: “A enfermagem é muito
capilarizada, o Brasil tem enfermeiro em todos os estados, em todos os
municípios, às vezes em municípios que nem têm médicos. A presença em todas as
unidades de saúde, em todos os municípios, dá condições de ampliar o acesso
equitativo e qualificado”.
Hoje, “o Brasil não usufrui do potencial da
capilarização da oferta do aborto nas primeiras semanas de gravidez e continua
centralizando esse cuidado em estabelecimentos de maior densidade tecnológica,
concentrados em capitais, o que limita o acesso ao serviço”, escreveu a Rede
Médica pelo Direito de Decidir – Doctors for Choice/Brasil, em uma nota pública
de apoio à ADPF.
Outros números que tornam essa realidade aterradora
dizem respeito às gravidezes por estupro. No Brasil, qualquer ato sexual com
menor de 14 anos é crime – portanto toda gestação que ocorre nessa situação
deveria poder ser interrompida. Em um estudo sobre o
acesso ao aborto conduzido no Distrito Federal, pesquisadores observaram que,
no período de 2021 a 2023, apenas 34 crianças tiveram acesso ao aborto legal,
enquanto o número de partos da faixa etária até 14 anos foi de 292.
Segundo dados do 17° Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora no país, sem
contar a subnotificação. A gravidez, nessa idade, ainda é um risco para a
criança que está gestando – e para o bebê que poderá vir. São pessoas assim a
quem se está negando um serviço que pode definir suas vidas.
·
Segurança à enfermagem
Para além do acesso, há outra razão para permitir a
realização do aborto por outros profissionais: garantir a segurança jurídica
para quem já atua nesse serviço. É o que pontua Elisiane Gomes Bonfim,
presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras
(Abenfo): “A gente já tem, no Brasil, uma rede de serviços estruturada que
presta assistência ao abortamento previsto em lei. Dentro dessa rede, a equipe
de enfermagem e de enfermeiras obstétricas também atua”, explica ela.
Jacinta Sena da Silva, da Aben, acrescenta: “A
enfermeira e o enfermeiro têm condições técnicas e científicas para realizar o
procedimento e oferecer a atenção integral que essas pessoas, especialmente as
mulheres, requerem nessas condições”.
As enfermeiras podem ser muito importantes, por
exemplo, na administração do misoprostol, o medicamento permitido no Brasil
para a interrupção da gravidez. O método tem extrema segurança, mas a lei não
permite que os profissionais de saúde sem a prática médica o utilizem. Segundo
Elisiane, “a enfermagem administra diversos outros medicamentos, num trabalho
em equipe que já acontece na prática”, alguns deles de maior complexidade que o
misoprostol – a própria ocitocina, medicamento que pode ser usado para induzir
o parto, cita ela.
Elisiane traz a questão para o mundo real: “Às vezes, a
mulher fica mais tempo esperando para receber uma medicação. Está lá com a prescrição
médica, mas fica aguardando porque, às vezes, o médico está em outro
procedimento ou atividade. A enfermeira poderia fazer essa administração
tranquilamente, do jeito que ela executa outros medicamentos prescritos”.
A médica Helena
Paro, coordenadora do Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral às
Vítimas de Agressão Sexual) em Uberlândia, também atesta a importância da
pauta. “Sobretudo nas primeiras 12 semanas de gravidez, em que o aborto não
precisa de ser um procedimento hospitalar, e sim ambulatorial, existe o
compartilhamento de tarefas no cuidado em aborto com outros profissionais que
não médicos. Inclusive os de nível médio de formação, como agentes comunitários
de saúde.”
Helena, que é faz parte da Federação Internacional de
Ginecologistas e Obstetras, cita a Etiópia como um bom exemplo de país onde
estender a realização do aborto para profissionais da enfermagem e oferecer
cursos de formação contribuiu para a redução da mortalidade materna, de 32 para
7 por 100 mil. E isso acontece inclusive em regiões afastadas dos centros
urbanos. Ela acrescenta que a medida proposta pela ADPF diminuiria a sobrecarga
dos médicos brasileiros, que poderiam se dedicar aos abortos mais complexos,
como os com tempo gestacional mais avançado, que pode gerar mais complicações.
·
Aborto no postinho de saúde?
Para a OMS, profissionais da Atenção Básica estão aptos
a realizar serviços de interrupção de gravidez em gestações menos avançadas. O
Brasil poderia, então, oferecer aborto nas Unidades Básicas de Saúde? Jacinta,
da Aben, reflete: “É uma discussão para a gente fazer. O que se aponta é que a
atenção básica deve incorporar esse tipo de ação”.
Para ela, é uma pauta que deve ser acompanhada da luta
por “educação permanente do campo da enfermagem, ampliação das residências em
enfermagem obstétrica, a especialização em enfermagem obstétrica. A gente sabe
que requer um leque de políticas públicas para ampliar, de fato, as condições
de um acesso equitativo e de qualidade” na atenção primária.
Elisiane, da Abenfo, pondera: “A gente precisaria
definir, na rede, qual é o melhor local. É possível fazer na UBS? É. Mas a
gente precisa garantir suporte para, no caso de um sangramento, a mulher ter um
local onde ser acolhida”.
Já Ana Costa, do Cebes, é mais enfática na defesa da
interrupção da gravidez em UBSs: “Primeiro porque nós estamos falando de aborto
legal, de aborto que as mulheres têm direito a fazer, porque é uma gravidez
decorrente, por exemplo, de uma violência sexual. É importante porque amplia o
acesso e porque os hospitais que existem hoje, os centros de aborto legal, não
dão conta de atender o volume da demanda”.
·
CFM contra a população
Não impressiona que a posição do Conselho Federal de
Medicina tenha sido a de “demonstrar preocupação” com a ampliação do acesso ao
aborto nos casos previstos em lei. Argumenta, contrariando a OMS, que apenas os
médicos podem oferecer assistência “nos casos de complicações” – casos
extremamente raros, como enfatiza a médica Helena Paro e prova a literatura
científica.
Ana Costa rebate: “No CFM mais um obscurantismo. A
interrupção medicamentosa da gravidez pode ser feita por enfermeira e na
atenção primária tal como preconiza a OMS. Evidências mostram baixo risco. Além
disso enfermeiros e assistentes sociais atuam nas equipes hospitalares de
aborto legal e devem ser protegidos pela lei”.
Fonte: Por Gabriela
Leite, em Outra Saúde
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