sábado, 15 de fevereiro de 2025

Urariano Mota: O caso Juscelino Kubitschek de volta

Na história que se recupera da ditadura brasileira, um dos casos sem solução é o do “acidente” mortal de Juscelino Kubitschek. A notícia, quase 50 anos depois, está hoje em todos os jornais.

“O governo Lula e a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos analisam a morte do ex-presidente num acidente na via Dutra em 1976, com um laudo do engenheiro e perito em transportes Sergio Ejzenberg”.  

Para a justa medida, penso que é hora de retomar artigo de 2013 onde pude escrever:

“Motorista envolvido em acidente de JK diz que recebeu oferta para assumir a culpa. O motorista do ônibus envolvido no acidente que matou o presidente Juscelino Kubitschek, em agosto de 1976, disse em depoimento à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo nesta terça-feira (1º) que recebeu oferta com uma mala de dinheiro para que assumisse na época a culpa da tragédia.

Josias Nunes de Oliveira, 69, afirmou que cinco dias depois do acidente foi procurado em sua casa em São Paulo por dois homens. ‘Eram dois cabeludos, que vieram em uma moto e se identificaram como repórteres. Eles disseram que se eu assumisse a culpa, receberia a mala cheia de dinheiro. Eu vi a mala, cheinha de dinheiro. Mas não assumi, pois não tinha a menor culpa’ “.

Onde há interesse em mentir, há culpa. Então pude recuperar anotações da pesquisa que fiz há alguns anos sobre essa morte. Passo a elas.

De imediato, o leitor observe, primeiro, que o “acidente” sofrido por Juscelino Kubitschek chegou a ser anunciado como um destino, uma profecia, como era costume na ditadura, que às vezes perdia o timing entre assassinato e notícia. Vinte dias antes do óbito de JK, nas redações dos jornais já corria o boato de que ele havia morrido.

Ora, as mortes de Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda, em um período de 9 meses, já deveriam ter inspirado em nossa imprensa mais que conjeturas. Assim como Deus da frase de Einstein, a história não joga dados. Aos dados que não se jogam, portanto, nos limites de JK.

1. Em 1975, o jornalista Jack Anderson revelou que o general chileno Manuel Contreras qualificou Kubitschek como uma ameaça, em uma carta enviada ao ditador João Figueiredo. Contreras era chefe do Serviço de Inteligência do regime do Augusto Pinochet, responsável pela morte do ex-chanceler chileno socialista Orlando Letelier, ocorrida em 1976 em Washington, e atribuída à Operação Condor.

2. Segundo o cientista político Luiz Roberto da Costa Jr, em artigo no Observatório da Imprensa, ao mencionar as circunstâncias da morte de JK: “Não houve choque com o ônibus da Cometa, pois este estava atrás da Caravan verde. Testemunhas do ônibus que afirmam ter visto o clarão (‘sol’, como quer a versão oficial) e ouvido a explosão (‘batida’, como quer a versão oficial) não depuseram…”. E importante: “O Opala periciado em 1996 não corresponde ao Opala do acidente em 1976, o chassi é diferente”.

3. Na revista Época de 29.3.1999, sob o título de Um tiro na história, foi publicado: “Depois de 35 anos trabalhando como perito criminal na Polícia Civil de Minas Gerais, o historiador Alberto Carlos Minas está se aposentando e decidiu fazer uma revelação: ‘Eu vi um buraco de bala no crânio do motorista Geraldo Ribeiro’. Era Geraldo Ribeiro quem dirigia o Opala do ex-presidente Juscelino Kubitschek no dia 22 de agosto de 1976, quando bateu num ônibus na Via Dutra…” teria batido, segundo a polícia, corrigimos. “Segundo Minas, quando o corpo de Geraldo Ribeiro foi exumado, há pouco menos de três anos, o crânio estava inteiro e tinha um buraco. ‘De bala’, garante. ‘Depois que vi isso não me deixaram entrar na sala novamente’ ”.

4. E mais, do mesmo Carlos Alberto, em uma rápida entrevista: “As fotos das vítimas sumiram. Em 1996 o processo foi reaberto, mas jamais poderia ter prescrito. A família do motorista nunca viu o corpo dele. Eu era o perito do caso e não pude acompanhar de perto a exumação dos corpos. Quando levantaram a ossada do Geraldo Ribeiro, vi um buraco de bala no crânio dele… Do tamanho da tampa de uma caneta, de cerca de 7 milímetros. O crânio estava íntegro e intacto. Eu o vi inteiro na minha frente, ele não estava esfacelado como depois apareceu. Podem dizer que eu estava enganado quanto ao buraco, mas, se eu estiver errado, como eles explicam um objeto metálico dentro do crânio do Geraldo? Por que o crânio ficou fragmentado depois dos exames?”.

5. Em livro que me foi enviado por Maria de Lourdes Ribeiro, filha do motorista de JK, há o laudo número 12.31/96, do IML de Minas Gerais. Nele se escreve: “… fragmento metálico de forma cilindro-cônica, medindo sete milímetros de comprimento e diâmetro médio de dois milímetros, revelando-se como fragmento de prego enferrujado e corroído, recolhido do interior do crânio”….

 

¨      A morte de Soledad Barrett - um dos mais perversos crimes da ditadura brasileira. Por Urariano Mota

No STF, o digno Ministro Flávio Dino já esclareceu: não existe anistia para o crime de ocultação de cadáver, porque é um crime permanente que continua a se consumar no presente, quando não devidamente elucidado. Este é o caso do corpo da paraguaia, guerreira internacional, internacionalista Soledad Barrett Viedma, assassinada no Recife. Até hoje não se sabe dos seus restos mortais. Ela teria sido enterrada no Cemitério da Várzea como indigente, sem nome, e não se achou mais.

Mas essa história não chegou a seu fim. Para Soledad Barrett, os dados continuam a rolar, como cantava Cazuza. A brava guerrilheira, poliglota, poeta, atraiçoada pelo marido, o agente duplo José Anselmo dos Santos, Cabo Anselmo, que a entregou grávida para a morte, ainda clama justiça. Musa do poeta Mario Benedetti, narrada em meu livro Soledad no Recife, merece urgente uma solução do crime que deixou seus restos mortais insepultos.

Se, além de Fleury e de Cabo Anselmo, não temos os nomes de seus torturadores, cabe uma responsabilização dos peritos legistas que no Recife assinaram a FARSA da perícia tanatoscópica. Pesquisei com calma e paciência nos arquivos da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara e pude ver. Os peritos João Bosco Rolim Araruna e Agrício Salgado Calheiros, mais a testemunha policial Maria da Penha Procópio de Almeida, que assinam o documento, merecem ser, no mínimo, ouvidos em inquérito.

Como vaso ruim não quebra, é possível que depois de 1973, passados 52 anos dos crimes, estejam vivos. Se vivos, estarão por volta dos seus 82 anos de idade bem vividos na impunidade. Não foram os executores, mas legitimaram o processo e podem falar sobre o que viram assinaram e assassinaram.

Esta é uma história bárbara, feita por bárbaros, assassinos fascistas do regime implantado em 1964. O feto de Soledad foi arrancado de seu cadáver!

“Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão grande de terror. A boca estava entreaberta, e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou algum tempo deitada, e a trouxeram. O sangue. quando coagulou, ficou preso nas pernas; era uma quantidade muito grande. E o feto estava lá, nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali ou se foi ali mesmo, no necrotério, que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror.”

Quando a grande advogada Mércia Albuquerque declarou essas palavras, ela não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco, falou entre lágrimas, com a pressão sanguínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: “A boca de Soledad estava entreaberta”. No depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa que fraterniza e confraterniza com pessoas. “Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela”.

O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmera de sofrimento. “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror”. Os olhos de Soledad congelaram o seu último instante. Câmera invertida.

Ao fim do meu livro, pude escrever:

“As santas virgens do Paraguai carregam o filho nos braços e a seus pés têm anjos, às vezes também luas em quartos minguantes. Sangue e feto aos pés, só a guerreira Soledad Barrett Viedma.”

 

¨      Cem anos de Elizabeth Teixeira = cem vezes a necessidade de pautar a reforma agrária

Elizabeth Teixeira agora é uma mulher centenária. A líder histórica das Ligas Camponesas faz aniversário neste dia 13 de fevereiro de 2025 como unanimidade entre aqueles que defendem o direito à terra e a luta pela reforma agrária. O Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, em Sapé (PB), promove três dias de comemoração a seus 100 anos, com direito a reunião emocionada da família e atividades culturais. Os jornais repercutem. Desta vez, ela não está invisível.

A mulher que teve de trocar de nome durante a ditadura, dois anos após o assassinato de seu marido, João Pedro Teixeira, protagonizou em 1984 o documentário “Cabra Marcado Para Morrer”, de Eduardo Coutinho. Mas ainda está longe de ter o reconhecimento que merece como líder camponesa. A recorrência da reforma agrária em sua fala é inversamente proporcional ao tanto que o tema é pautado no Brasil atual.

Em comemoração ao centenário, De Olho nos Ruralistas disponibiliza ao público, em seu canal no YouTube, o documentário “Elizabeth”, de 2023, dirigido por Alceu Luís Castilho, Luís Indriunas e Vanessa Nicolav. Vanessa e Indriunas entrevistaram a agricultora em João Pessoa, quando ela tinha 98 anos.

Confira aqui, na íntegra, o curta-metragem premiado em três festivais de cinema pelo Brasil:

MEMORIAL DAS LIGAS CAMPONESAS FOI UM DOS LOCAIS DE EXIBIÇÃO DO CURTA “ELIZABETH”

O documentário foi lançado em setembro de 2023, durante as comemorações dos sete anos do observatório, no centro cultural Al Janiah, em São Paulo. Em menos de um ano foi exibido em pelo menos 35 eventos, realizados em 12 estados diferentes e no Distrito Federal. Os locais de exibição e os públicos foram os mais diversos, de movimentos sociais a estudantes universitário. Em alguns desses encontros, com a participação dos diretores ou outros integrantes da equipe do De Olho nos Ruralistas.

O filme retrata a trajetória de Elizabeth Teixeira, uma das líderes das Ligas Camponesas na Paraíba e protagonista do filme “Cabra Marcado para Morrer“, clássico de 1984, dirigido por Eduardo Coutinho. Com 98 anos de idade, ela foi entrevistada pela editora de imagem Vanessa Nicolav e pelo editor Luís Indriunas, da equipe do De Olho nos Ruralistas, em julho. A dupla também ouviu outras mulheres sobre o legado da líder. Entre os objetivos, resgatar a memória de luta camponesa e fomentar as discussões sobre a questão agrária no país.

Para saber mais sobre Elizabeth, leia também reportagem de nossa editoria De Olho na História: “Elizabeth Teixeira, 95 anos, uma camponesa marcada pela resistência“.

Cenário do documentário gravado em julho de 2023, o Memorial das Lutas e Ligas Camponesas, em Sapé (PB), foi um dos locais onde o filme foi exibido. A primeira sessão foi especial, com familiares e visitantes, em 30 de setembro de 2023. Durante o mês seguinte, o Memorial, que participou da produção do filme, continuou apresentando o documentário para grupos que visitaram a sede. Ainda no estado, o filme foi visto por doutorandos de Sociologia Rural, na Universidade Federal da Paraíba (PB), e teve sessão especial na Assembleia Legislativa da Paraíba, com a presença do coordenador de projetos do observatório, Bruno Stankevicius Bassi.

INCRA PEDIU DESCULPAS AOS CAMPONESES PELOS CRIMES DA DITADURA

Ainda em dezembro de 2023, em Brasília, os ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) promoveram o evento a “Fala da Terra: Memória e futuro das Lutas no Campo”.

Na ocasião, o Estado brasileiro formalizou um pedido de desculpas às populações camponesas devido à atuação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na ditadura iniciada em 1964, por meio de uma carta, assinada pelo presidente do Incra, César Aldrigui, em cerimônia com a presença do ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar do Brasil, Paulo Teixeira.

“O pedido de desculpas, ele é necessário, obviamente, é importante, mas ele não basta”, analisou a presidente do Memorial, Alane Maria Silva de Lima, uma das personagens do documentário “Elizabeth”. “É preciso haver a reparação agrária”.

O documentário lembra dos anos de clandestinidade a que Elizabeth Teixeira foi submetida após ser perseguida pela ditadura, quando substituiu João Pedro Teixeira na liderança das Ligas Camponesas. Teixeira é o “cabra marcado para morrer” do clássico de Eduardo Coutinho. O Memorial das Ligas Camponesas define Elizabeth como “mulher marcada para viver” — o que será tema de novo filme sobre a paraibana.

FILME GANHOU PRÊMIO NO FESTIVAL DE VITÓRIA E NA MOSTRA DE AGROECOLOGIA NO RIO

O curta-metragem “Elizabeth” foi reconhecido pelo júri popular como melhor filme da 7ª Mostra Nacional de Cinema Ambiental no 31º Festival de Cinema de Vitória, que aconteceu entre 20 e 25 de julho de 2024. Com isso foi um dos vencedores do Troféu Vitória, em uma das treze mostras do evento, que exibiu 78 filmes e reuniu cerca de 10 mil pessoas na capital capixaba, com 78 filmes.

O filme também participou da seleção oficial da Mostra Clandestina de Cinema Feminista, que aconteceu na cidade de Goiás (GO), em abril do ano passado. E foi um dos selecionados no 7º Curta Caicó, em outubro, festival realizado no interior do Rio Grande do Norte. Ele foi um dos cinco filmes exibidos na categoria Sessão Especial.

A Bahia teve exibições em Ilhéus, Jacobina, Caravelas, Caetité (duas vezes), Ruy Barbosa e Salvador. Os organizadores foram a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Grupo de Trabalho Política Agrária, Urbana e Ambiental do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (GTaua – Andes), o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o Núcleo de Estudos em Cultura e Cidade da Universidade do Estado da Bahia (NECC – Uneb) e a Associação dos Pequenos Produtores de Jaboticaba (APPJ).

O Rio de Janeiro teve sessões em Seropédica, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ); na capital, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), por meio do INCT Proprietas, e na Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) Rio.

O filme também participou do 2° Festival Internacional de Cinema Agroecológico (FicaEco), no tradicional Cine Odeon, no centro do Rio. A mostra, que aconteceu em novembro, fez parte do XII Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA). Os diretores Alceu Luís Castilho e Luís Indriunas receberam do líder indígena Junior Hekurari Yanomami a estatueta do guerreiro Omama, “guerreiro criador, protetor da Amazônia e do povo Yanomami”.

Cada grupo de realizadores recebeu uma versão única do guerreiro, em barro e pintada à mão, feita pelo artista plástico Felipe Corcione. O símbolo faz parte da campanha “O Custo do Ouro”, contra o consumo de ouro e a invasão garimpeira no território Yanomami. Veja o vídeo da campanha.

Em São Paulo, o filme foi exibido na Assembleia Legislativa (Alesp), na capital, em novembro de 2023. Em Taubaté, na “Campanha 16 dias de ativismo pelo fim da violência”. E em Guararema, para alunos dos cursos da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 29 de setembro. Após a exibição do filme, que contou com uma conversa com a jornalista Nanci Pittelkow, da equipe do observatório, a turma do curso de Defesa e Soberania decidiu batizar o grupo de Elizabeth Teixeira.

O documentário também passou pelo Pará, Maranhão, Alagoas, Pernambuco, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

 

Fonte: Jornal GGN/Blog da BoitempoDe Olho nos Ruralistas

 

Nenhum comentário: