sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Trump: o filho legítimo da Europa

Trump é um filho legítimo, não bastardo, da Europa moderna. Tal qual o foi Hitler no seu tempo. A mãe que gerou estes filhos vai gerar outros até vir a ser devorada por um deles, talvez pelo próprio Trump. Em vez de ser o Saturno de Goya a devorar os seus filhos, será a Europa a ser devoradas pelos filhos. Nesta metáfora ser devorada não significa extinguir-se. Significa voltar a ser o que era até ao século XIV, um canto insignificante da Grande Eurásia onde o Mediterrâneo Oriental pontificava como ponte entre os mundos oriental e ocidental então conhecidos. Trump começou a desestabilizar a Europa desde 2016, a devorá-la para atenuar as piores consequências do declínio do imperialismo norte-americano. O processo não começou com ele e continuou depois dele, com Biden e por outros meios: em vez da guerra comercial, a guerra da Ucrânia. Estamos, pois, perante um processo histórico que analisamos com a dificuldade própria de quem analisa a corrente das águas ao mesmo tempo que é arrastado por elas.

A Europa auto-denominou-se educadora do mundo a partir do século XV. E a cartilha dos educadores foi dominada pela ideia de que educar o outro é devorar o outro. Devorar é progresso para quem devora e destino comum para quem é devorado. Devorar é sempre progresso, seja devorar por evangelização, por compra, por roubo, por ocupação, por guerra, por assimilação. Por devorar entenda-se uma forma de antropofagia. A forma europeia auto-designou-se civilização e, consequentemente, todas as outras formas de antropofagia que os educadores europeus foram encontrando no mundo foram declaradas bárbaras e, como tal, proscritas e demonizadas. Trump é não só um filho legítimo como um estudante que aprendeu bem a lição que os educadores europeus lhe deram.

Por mais sonantes que sejam as rupturas entre a política as usual e o tsunami Trump, eu tendo a ver continuidades e são elas que significam o perigo do tempo que vivemos. O facto de se salientarem as rupturas leva a pensar que, uma vez Trump passado à história, tudo voltará a ser como dantes. Não voltará. Trump é historicamente o espetáculo do declínio do que chamamos Ocidente. Não é o declínio dos EUA, é o declínio da Europa e do mundo ocidental. O longo ciclo que se iniciou no século XV está a chegar ao fim. A inconsciência deste facto por parte da social-democracia europeia (que se foi suicidando a partir de 1980) está bem expressa na publicação recente da Social Europe, da Fundação Friedrich-Ebert, intitulada “EU Forward: Shaping European Politics & Policy in the Second Half of the 2020s” (2025). As ruínas explicadas por aqueles que as causaram limitam-se a propor soluções que eles próprios recusaram na altura em que elas poderiam ser possíveis e evitar o desastre. A partir de 1945, o pacto colonial entre a Europa e os EUA inverteu-se. A autonomia dada à Europa dividida e a generosidade da sua defesa (NATO) tiveram por objectivo conter o perigo comunista. A Europa interiorizou de tal modo esse papel que agora não tem outro remédio senão inventar o inexistente perigo comunista para subsistir. Europa é hoje uma colónia de sua antiga colónia, sem que nenhuma delas tenha passado por um verdadeiro processo de descolonização.

<<<< A matriz europeia de Trump

A matriz europeia tem os seguintes componentes: superioridade civilizacional; racionalidade instrumental; exclusividade epistémica da ciência-tecnologia; íntima relação entre comércio e guerra; conquista ou contrato desigual; pacta sunt servanda quando convém; linha abissal entre seres plenamente humanos e seres sub-humanos; a natureza pertence-nos, nós não pertencemos à natureza; soberania, inimigos internos e inimigos externos; dialética da revolução/contra-revolução. Esta matriz não desceu dos céus nem foi revelada a nenhum descendente tardio de Moisés. É constitutiva da estrutura de dominação (exploração, opressão, discriminação) da modernidade ocidental constituída por três pilares de dominação principais e intrinsecamente articulados: capitalismo, colonialismo, patriarcado. Esta tríade variou muito ao longo dos séculos, mas mantém-se intacta, ontem como hoje, e sempre se serviu de dominações-satélites, sejam elas castas, capacitismo, etarismo, religião, política, etc.

Esta matriz não é exaustiva, teve múltiplas interpretações e versões e produziu efeitos contraditórios. A modernidade europeia também permitiu que dois grandes intelectuais malditos, um no princípio do ciclo e outro no início do fim do ciclo, vissem como ninguém as contradições das interpretações dominantes desta matriz e as catástrofes que produziria. Refiro-me a Baruch Espinosa e a Karl Marx.

·        Superioridade civilizacional

Na modernidade ocidental a superioridade civilizacional pressupõe a superioridade racial. Por sua vez, a superioridade racial pressupõe que não se pode usar com os inferiores os mesmos procedimentos e instituições que se usa entre os iguais. Segundo uma lógica multissecular, de Aristóteles a Nietzsche, seria um contrassenso tratar como iguais os desiguais. O racismo e o militarismo foram sempre os sub-textos da superioridade civilizacional. Devorar em nome da superioridade civilizacional, qualquer que seja o instrumento utilizado, provoca uma forma específica da ansiedade decorrente da possível reacção dos destinados a ser devorados. O racismo desumaniza para legitimar a brutalidade da repressão, o militarismo elimina. Trump prefere o racismo extremo porque lhe permite combinar desumanização com eliminação. Ao contrário dos índios, os imigrantes não têm de ser eliminados. São transferidos para os seus países de origem ou para novas reservas, sejam elas em Guantánamo ou em El Salvador. Os imigrantes são algemados para dramatizar o contraste com a libertação dos verdadeiros americanos.  

·        Racionalidade instrumental e exclusividade epistémica da ciência-tecnologia

O princípio moderno de que o conhecimento é poder só seria um princípio benévolo se a pluralidade dos conhecimentos existentes no mundo fosse reconhecida e as possibilidades de enriquecimento mútuo fossem celebradas. Em vez disso, deu-se uma prioridade exclusiva à ciência e posteriormente à tecno-ciência. Isto teve as seguintes consequências: um desenvolvimento científico e tecnológico sem precedentes; massivo epistemicídio, ou seja, destruição, supressão ou marginalização de todos os conhecimentos considerados não científicos; a construção de um senso comum segundo o qual ser racional é adequar os meios aos fins propostos sem que estes sejam sujeitos a discussão (eficiência); a desvalorização da ética decorrente da substituição da razoabilidade pela racionalidade; crescente discrepância entre consciência técnica e consciência ética, em detrimento desta última; recusa dos limites externos do conhecimento cientifico, ou seja, das perguntas a que a ciência nunca poderá dar resposta por mais que avance, pela simples razão de que tais perguntas não são formuláveis cientificamente (por exemplo, qual é o sentido da vida?); tendência em transformar problemas políticos em problemas técnicos e em reduzir questões qualitativas a questões quantitativas. Elon Musk é a face visível e caricatural do extremismo a que este tipo de racionalidade pode conduzir. Mas ele não é causa, é consequência. Os que o criticam pelo seu triunfalismo delirante são os mesmos que celebram a inteligência artificial sem se darem conta de que são duas manifestações do mesmo tipo de inteligência e do mesmo tipo de artificialidade. Levada ao extremo, a racionalidade instrumental implica a irracionalidade ético-política. O actual crescimento da extrema-direita é um dos sinais disso mesmo. 

·        O uso racional dos recursos naturais e humanos

A racionalidade instrumental da dominação moderna capitalista, colonialista e patriarcal estabeleceu como fim a maximização da acumulação de recursos como condição da maximização dos lucros; os meios para o atingir foram aqueles que cada época tornou possível, em face da resistência dos que foram sendo “desacumulados” ou despossuídos, fossem eles os seres humanos ou a natureza. Antes de ser utilizado pelos marxistas para caracterizar as relações de trabalho, o conceito de exploração fora há muito consagrado para explorar a natureza segundo o mesmo princípio de que conhecer é poder. O neoliberalismo nas relações de trabalho e o colapso ecológico são as duas faces da mesma moeda. Tal como “drill, baby, drill!” e o tratamento dado aos trabalhadores migrantes são duas faces da mesma moeda. 

Na lógica da racionalidade moderna tudo o que é racionalmente utilizável é natureza. Parece contraditório porque a distinção entre natureza e humanidade é central pelo menos desde o Iluminismo: a natureza pertence-nos; nós não pertencemos à natureza. Não há, de facto, contradição porque a definição de cada um dos termos permanece sempre em aberto para que tudo o que possa ser usado racionalmente como recurso acumulável seja convertido em natureza. Os povos nativos eram natureza, tal como as mulheres, tal como os escravos. E se hoje atentarmos no modo como os corpos humanos estão a ser industrializados de forma a funcionarem eficazmente nas novas configurações do trabalho, é a re-naturalização do humano que está em causa.

·        Íntima relação entre comércio e guerra

Desde o seu início, o comércio e a guerra foram as duas faces da expansão colonial europeia. Francisco de Vitória (1483-1546), o grande advogado do comércio livre, da propriedade individual e do direito internacional, é também o advogado da guerra justa sempre que os valores anteriores sejam violados. Aliás, na opinião dos críticos do universalismo liberal, este carregou sempre consigo o estigma de justificar a guerra em nome de princípios que só favorecem uma das partes, a que tem o poder para, num dado momento histórico, definir o que é o universalismo liberal. Os critérios duplos como princípio de governação são inerentes à modernidade ocidental. O princípio de que os pactos são para cumprir (pacta sunt servanda) sempre foi aplicado com uma cláusula invisível (aos desprevenidos): “sempre e só quando convém aos poderosos”

Na matriz da dominação moderna, a guerra é o início e o fim, o primeiro e o último recurso. Entre um e outro está a despossessão ou acumulação primitiva (e permanente), o roubo, o comércio, a troca desigual, a escravatura, o trabalho não pago das mulheres, etc. Para que tudo ocorra no marco da civilização e não da barbárie, inventou-se a diplomacia e os contratos desiguais. Já Adam Smith alertou para existência de contratos desiguais sempre que há desigualdade de condições materiais ou outras entre as partes que entram no contrato. A máxima desigualdade ocorre quando a parte mais fraca não tem outra opção de sobrevivência senão aceitar o contrato com as condições que a parte mais forte oferece. Dos contratos de trabalho e dos contratos de serviços entre indivíduos e empresas multinacionais aos contratos de exploração de recursos naturais e aos acordos comerciais entre os países centrais e os países periféricos, é longa a história de contratos desiguais na modernidade ocidental.

·        A linha abissal entre seres plenamente humanos e seres sub-humanos

A hierarquia entre civilização e barbárie assumiu diferentes características ao longo dos séculos. A partir do século XVI, essa hierarquia foi utilizada para justificar o colonialismo, primeiro a justificação pela religião e depois, com o Iluminismo, a justificação pela ciência. Superioridade civilizacional passou a ser racial, branca. Como diz Frantz Fanon em Black Skins White Masks, é o racista que cria o seu inferior. A partir de então, a ideia de humanidade universal, tão cara aos iluministas, passou a depender dos limites do universo do que se considera humano. E, por definição da superioridade civilizacional, esse universo não abrange todos os humanos. Uma linha abissal emerge entre os seres plenamente humanos (os que pertencem à sociabilidade metropolitana) e os seres sub-humanos (os que pertencem à sociabilidade colonial). A demarcação de exclusão/inclusão é de tal modo radical que, embora institucionalizada no período do colonialismo histórico (escravatura, code noir de 1695, as leis segregacionistas Jim Crow do final do século XIX e início do século XX, os códigos do indigenato português a partir de década de 1920), passou a ser a segunda natureza da civilização ocidental, e como tal sobreviveu ao fim do colonialismo histórico e ao fim de todas as legislações discriminatórias. É hoje uma linha tão radical quanto invisível ao nível da normatividade institucional. É nela que assenta o racismo, o continuado roubo dos recursos naturais do Sul global e a troca desigual entre os países centrais e os países periféricos do sistema mundial. Na modernidade eurocêntrica não é possível a humanidade sem a sub-humanidade. Como é uma linha abissal, a sua existência não depende de leis ou de demarcações físicas (tipo apartheid) porque está inscrita no mais profundo do inconsciente colectivo da modernidade ocidental. Isto não significa que não esteja sempre disponível para ser visibilizada quando tal convenha aos poderes políticos encarregados de reproduzir a dominação moderna. Os muros fechando fronteiras e as deportações massivas de supostos criminosos são as duas formas hoje mais visíveis. Recordemos que as deportações, embora tenham uma longuíssima história, foram uma das principais formas de punição-povoamento no período inicial da expansão colonial europeia. Os portugueses usaram-na desde o século XVI, enviando os degredados para os territórios “descobertos”; a partir de 1717, os ingleses deportaram cerca de 40.000 pessoas para as colónias, primeiro para a América do Norte e depois para a Austrália (entre 1787 e 1855). À luz desta história compreende-se que Trump insista tanto em que os imigrantes são todos criminosos. Aprendeu bem a lição europeia.

·        A conquista

O princípio da conquista é inerente à modernidade ocidental. Não se limita à conquista territorial; inclui também a conquista da religião, da espiritualidade, da mente, das emoções, da subjectividade. A conquista usa múltiplas armas, desde as militares às económicas, educativas, discursivas, religiosas, lúdicas. A conquista “sabe” que encontrará maior ou menor resistência e por isso opera segundo a lógica da neutralização preventiva. O mais eficaz e económico uso da força é o que se fica pela ameaça. A conquista implica roubo, compra, apropriação, diplomacia e violência. Se olharmos para o actual território norte-americano veremos que ele é o resultado do mais radical exercício do plano moderno da conquista. Trump mantem-se fiel a esse exercício ao imaginar as sua novas conquistas territoriais

·        Soberania, inimigos internos e inimigos externos

A ideia de soberania moderna que emerge do Tratado de Vestefália (1648) está na origem tanto do nacionalismo como do internacionalismo modernos. Qualquer deles teve tanto de realidade como de invenção e os seus sentidos políticos foram diferentes e até contraditórios ao longo do tempo e segundo as circunstâncias. O exacerbar do nacionalismo entre os países colonizadores foi sempre o prenúncio de guerra, enquanto o nacionalismo dos países colonizados foi uma condição para a independência. Como os EUA são uma colónia que se tornou independente sem se descolonizar, o nacionalismo esteve tanto ao serviço da guerra como do isolacionismo. 

Esta ambiguidade do conceito de soberania, ao mesmo tempo que criou a distinção entre inimigos internos e inimigos externos, tornou possível manipulá-la para servir os interesses políticos do momento. Assim, os imigrantes são, segundo Trump, uma entidade híbrida, entre o inimigo interno e o inimigo externo. A mesma manipulação é possível com os amigos internos e externos. Muito se terão surpreendido que Trump tenha começado por castigar com tarifas os amigos mais próximos (Canadá, México, Europa). Na lógica de Trump, como na da Francisco de Vitória, quem é rival económico é inimigo político, por mais amigo que pareça. 

·        Dialética da revolução/contra-revolução

Devido ao seu expansionismo incessante e incondicional, a modernidade ocidental é constituída pela dialética entre a insurgência e a contra-insurgência. Quer uma quer outra usaram métodos mais ou menos violentos em períodos distintos e segundo as circunstâncias. Estamos num período em que a insurgência usa métodos não violentos (democracia, sistema judicial, opinião pública), enquanto a contra-insurgência usa crescentemente métodos violentos (discurso do ódio, crescimento da extrema-direita, ameaça de guerra). Ninguém pode antecipar as consequências desta discrepância. No passado, esta discrepância levou à prevalência da contra-insurgência.

>>>> E agora?

·        O excepcionalismo norte-americano está desconfirmado?

Sim. Tal como a Europa e todos os países do mundo, os EUA tanto podem produzir heróis como vilões, tanto podem criar democracias como destruí-las. A diferença do benefício ou do dano está no poder de cada país no sistema mundial moderno

·        O fascismo pode voltar?

Sim e não. Hitler deu o golpe em 1933 depois de ganhar as eleições de 1932. Trump ganhou as primeiras eleições em 2016 para preparar o golpe institucional (as nomeações para o Tribunal Supremo) e agora exerce o novo mandato como se fosse um golpe democrático. A extrema-direita de todo o mundo está muito atenta de modo a definir em cada país qual a estratégia que, na mesma linha, conduza aos mesmos resultados

·        Haverá guerra global?

É provável. No caso das guerras anteriores, alguns dos maiores defensores da paz foram os que mais prepararam a guerra e depois a travaram. Se houver guerra será com a China e, desta vez, o território norte-americano será teatro de guerra. Acho que os norte-americanos estão tão viciados na ideia do excepcionalismo que ainda não se deram conta disso.

·        A esquerda poderá pontualmente estar de acordo com Trump?

Pode. Esta resposta é certamente a mais polémica. Mas tomemos o exemplo da USAID. Durante anos os analistas críticos criticaram a USAID como sendo o lado benévolo da contra-insurgência levada a cabo pela CIA. Foi criada em 1961 para impedir que a revolução cubana se espalhasse por todo o subcontinente. A ajuda humanitária teve sempre como termo de referência desenvolver atitudes e comportamentos favoráveis ao imperialismo norte-americano. Os comentaristas ao serviço do império (sempre equivocados a respeito dos desígnios do império) desfazem-se em lamentações por mais este golpe de Trump na benevolência da ajuda dos EUA aos povos mais desfavorecidos. Sem dúvida que essa ajuda foi preciosa para as populações e o seu corte abrupto vai criar muito sofrimento. Mas não tardará que a China e os seus aliados preencham o vazio deixado pela USAID. Com melhores condições para os países beneficiados? Provavelmente sim, enquanto a China for o império ascendente. Depois se verá. 

 

Por Boaventura de Sousa Santos, em Brasil 247

 

 

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