Por que o Brasil
não tem bomba atômica?
Em toda a história
da humanidade, o mundo nunca
esteve tão perto da destruição — nem mesmo no auge da Guerra Fria. O alerta foi
feito no final do mês passado pelo Boletim de Cientistas Atômicos (BAS), uma
entidade fundada nos anos 1940 por Albert Einstein e outros acadêmicos
preocupados com o avanço dos armamentos
nucleares.
A entidade
atualizou seu relógio do Juízo Final para 89 segundos para meia noite — um
gesto simbólico que serve para alertar o mundo para perigos como as ameaças
nucleares, possíveis usos indevidos de avanços em biologia e inteligência artificial
e mudanças climáticas.
Uma guerra nuclear
entre potências é uma ameaça antiga que nunca se consolidou.
Durante a Guerra
Fria, surgiram doutrinas militares — como a dissuasão nuclear e a destruição
mútua assegurada — que explicam por que o mundo não caminhou para uma guerra
nuclear. A ideia é de que o mero fato de um país ter armas nucleares serve para
intimidar outra potência nuclear rival — evitando assim uma escalada de tensões
que poderia levar, em última instância, à destruição do planeta.
A Guerra Fria
acabou e o mundo viu o estoque de armas
nucleares cair de 60 mil para 13 mil.
Ainda assim, a
ameaça de um conflito nuclear nunca desapareceu por completo. No ano passado, a
China interrompeu um diálogo com os Estados Unidos sobre proliferação nuclear,
em resposta à ajuda americana a Taiwan. Em novembro, a Rússia atualizou
seu protocolo para uso de armas nucleares, dizendo que o país poderia vir a
usar esse tipo de armamento em caso de ameaça à sua soberania e território.
Hoje no mundo nove
países possuem esse tipo de armamento: Estados Unidos, Rússia, França, China,
Reino Unido, Paquistão, Índia, Israel e Coreia do Norte.
Ao longo da sua
história, o Brasil teve oportunidades de fazer parte desse seleto clube de
países — mas nunca levou adiante a ideia.
Por que,
afinal, o Brasil nunca
desenvolveu armas nucleares — tido como instrumento importante de poder e
dissuasão?
Em 1998, o Brasil
assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, no qual assumiu o compromisso
com o resto do mundo de não desenvolver armas do tipo.
A BBC News Brasil
conversou com especialistas que explicam que a falta de consenso na sociedade e
a ausência de uma ameaça exterior clara desestimularam o país a perseguir esse
caminho.
"O Brasil não
tem arma nuclear porque não precisa", resume Carlo Patti, historiador da
Universidade de Pádova, na Itália, e que pesquisou extensamente o programa
nuclear brasileiro.
"O Brasil
nunca precisou de armas nucleares para ações de defesa estratégica. Ele nunca
teve uma ameaça real por parte de outros países, como uma ameaça da Argentina,
ou da União Soviética durante a crise dos mísseis em Cuba. E são as ameaças
externas que justificam a existência de um arsenal nuclear, e no Brasil essa
ameaça nunca foi séria."
Mas apesar da
ausência de ameaças concretas, a ideia de um arsenal nuclear brasileiro sempre
existiu — seja em discussões na sociedade ou dentro de gabinetes.
·
Vozes
na sociedade
"Sou o único
candidato a presidente que tem coragem de dizer que o Brasil precisa construir
a bomba atômica. Só cinco países no mundo têm o monopólio do poder nuclear, impondo
aos outros a humilhação de assinar tratados de não proliferação de armas
nucleares. É preciso construir a bomba não para jogar a bomba em ninguém, mas
sim para evitar que alguém jogue a bomba aqui, como os EUA fizeram com o Japão
em 1945. Se o Japão tivesse a bomba, ninguém se atreveria a ter destruído
Hiroshima e Nagasaki. Meu nome é Enéas."
O trecho acima é
parte da curta e folclórica propaganda eleitoral de 1994 de Enéas Carneiro,
médico que fundou nos anos 80 o partido nacionalista e conservador Prona e
concorreu diversas vezes à Presidência. Enéas foi o deputado federal mais
votado do Brasil em 2002 — mas o Prona nunca se estabeleceu como uma força de
expressão no debate nacional.
Enéas é um raro
exemplo de um político brasileiro que defendeu abertamente a bomba atômica.
Historiadores dizem
que nunca houve no Brasil um político ou qualquer outra voz de grande
relevância no debate nacional que defendesse que o país tivesse armas
nucleares.
"Quando se
criou o programa de energia nuclear brasileiro, sempre se usou o eufemismo
'segurança nacional'", diz a historiadora Ana Maria Ribeiro de Andrade,
pesquisadora aposentada do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), autora
do livro A Opção Nuclear: 50 Anos Rumo à Autonomia.
Ela conta que nos
anos 1950, quando o Brasil começou seu programa de desenvolvimento de energia
nuclear, as discussões eram lideradas dentro do governo tanto por físicos
brasileiros e militares.
Andrade leu as atas
das reuniões da época em que foi criado o Conselho Nacional de Pesquisas (o
CNPq, hoje conhecido como Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico), onde se discutiu também qual política o Brasil deveria adotar em
relação a pesquisa de energia nuclear, que era uma tecnologia nova na época.
Ela conta que as
atas possuem carimbos de "secreto" e com várias advertências de
militares ao longo das reuniões que era preciso manter sigilosas as discussões
em torno do assunto. Para ela, havia muito cuidado dos militares brasileiros em
tratar abertamente sobre a possibilidade de desenvolver armas nucleares.
Além disso, havia
pressão internacional para que o Brasil não tivesse um programa bélico.
"Houve pressão
dos EUA para que o Brasil não entrasse no seleto clube de fabricantes de
armamentos militares", diz Andrade.
·
Ditadura
militar e projetos secretos
Ao longo da
ditadura militar brasileira, a questão sempre foi discutida internamente —
dentro dos gabinetes de Brasília —, mas segundo a historiadora com pouca
transparência ou debate público.
Mas o Brasil deu
sinais ao mundo de que estaria aberto, em tese, a desenvolver suas próprias
armas nucleares ao não aderir, no final dos anos 1960, ao recém-criado Tratado
de Não-Proliferação de Armas Nucleares. O país só veio a aderir ao tratado em
1998.
Mas essa intenção
nunca foi expressa abertamente pelo governo. Ao invés disso, o Brasil perseguiu
— pelo menos oficialmente — um programa pacífico de energia nuclear, que
começou, segundo Andrade, com diversos intercâmbios científicos do Brasil com a
França e Alemanha.
Nos anos 1970, esse
programa nuclear pacífico brasileiro deu um salto com a assinatura de um acordo
com a Alemanha, com transferência de nove centrais atômicas para o Brasil e
todo o ciclo de produção do combustível nuclear. Andrade conta que foi
considerado o "acordo do século" do Brasil, e custou bilhões ao país.
"Havia a
expectativa dos militares brasileiros que o Brasil de fato iria absorver a
tecnologia nuclear da Alemanha. Mas se constatou que isso não era real",
afirma Andrade.
O acordo aumentou
muito o conhecimento científico brasileiro sobre energia nuclear. Mas não
permitia o país dominar completamente o ciclo do enriquecimento do urânio. Além
disso essa capacidade sempre esteve limitada a fins pacíficos.
"Esse acordo
[com a Alemanha] tinha salvaguardas internacionais, com fiscalização da Agência
de Energia Atômica", diz Carlo Patti, da Universidade de Pádova. Tudo que
o Brasil desenvolvia dentro dessa parceria com a Alemanha precisava ser
transparente, com acesso de inspetores internacionais às instalações nucleares
brasileiras.
Para perseguir
programas que não estivessem sob fiscalização internacional, e permitisse que o
país pesquisasse mais livremente a energia nuclear — desde o domínio do ciclo
do enriquecimento de urânio à capacidade de dispositivos explosivos —, o Brasil
desenvolveu projetos secretos no final dos anos 1970.
"Quando se viu
o fracasso do acordo com a Alemanha, que dali não sairia nada, as três armas
das Forças Armadas passaram a desenvolver seus projetos paralelos", afirma
Andrade. Ela ressalta que esses programas foram feitos sem repercussão na
sociedade e no meio científico e tecnológico.
A forma que as
Forças Armadas encontraram de evitar fiscalização internacional foi firmando
parcerias com centros de pesquisas civis autônomos em universidades brasileiras
— que não estariam sujeitos à ingerência internacional.
Em 1979, os
cientistas das Forças Armadas começaram a cooperar com centros de pesquisa
civis, como o Instituto de Engenharia Nuclear do Rio de Janeiro e o Instituto
de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) da Universidade de São Paulo (USP).
Essa cooperação
tinha vários objetivos específicos para o Brasil desenvolver diferentes
aspectos do desenvolvimento da energia nuclear.
O Exército tentou
construir um reator para produção de plutônio. A Aeronáutica buscou usar o
método laser para enriquecer urânio. E a Marinha perseguiu um submarino
nuclear.
·
Bomba
atômica brasileira
Mas houve intenção
dos projetos paralelos da ditadura militar de construir uma bomba atômica
brasileira?
Carlo Patti fala
sobre um dos projetos secretos da Aeronáutica para desenvolver artefatos
nucleares para uso pacífico — explosivos usados para abrir poços de petróleo ou
desviar rios, por exemplo. EUA e União Soviética também tinham projetos
pacíficos semelhantes na época.
Um dos problemas
dos programas de dispositivos explosivos nucleares pacíficos é que eles podem
também ser usados para fins de guerra.
"Não existe
diferença entre artefatos para uso pacífico e para fins militares. A tecnologia
é a mesma", diz Patti. Nos anos 1970, a Índia tinha um programa semelhante
— que foi usado no fim para dar a capacidade nuclear bélica ao país.
Uma das evidências
da existência desse programa especial secreto eram túneis construídos na Serra
do Cachimbo, no Sul do Pará.
Nunca ficou claro
sobre o quão sério os militares brasileiros estavam empenhados em construir uma
bomba atômica brasileira como parte desse projeto.
"Há
controvérsias se aqueles poços teriam profundidade suficiente para esses testes
de armamento bélico de origem nuclear", afirma o historiador.
A existência dos
poços de testes da Serra do Cachimbo era desconhecida do público e foi revelada
pela Folha de São Paulo em 1986, já após o fim da ditadura, durante o governo
do presidente José Sarney.
Com o fim da
ditadura militar e a redemocratização, o Brasil procurou mostrar ao mundo que
não tinha intenção de desenvolver armas nucleares. Em 1990, o então presidente
Fernando Collor foi à Serra do Cachimbo e enterrou os poços construídos pela
Aeronáutica. Em uma imagem simbólica, Collor apareceu colocando uma pá de cal
nos poços.
Dias depois, ele
viajou para a Assembleia Geral da ONU e fez um discurso ressaltando as ambições
pacíficas do projeto nuclear brasileiro.
Outra evidência que
historiadores encontraram de uma intenção de militares brasileiros de construir
uma bomba atômica foi em uma reunião a portas fechadas em Brasília no final do
último governo da ditadura, do presidente João Batista Figueiredo.
Patti conta que um
diplomata que participou de uma reunião em Brasília em 1984 relatou que o
ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos, teria proposto ao presidente
Figueiredo que o Brasil desenvolvesse e testasse um artefato nuclear.
Mas a ideia, que
parece ter sido levantada informalmente, foi prontamente descartada.
"Imediatamente
o presidente Figueiredo considerou isso uma maluquice. Eu li também um
documento do Itamaraty que dizia que se nós explodirmos uma arma nuclear,
teremos imediatamente um regime de sanções enormes, o Brasil vai ser isolado
pela comunidade internacional e destruiremos a nossa relação com a
Argentina", conta Patti.
·
Legados
Em 1982, o
Congresso brasileiro realizou uma CPI para investigar os projetos paralelos de
energia nuclear brasileiro. Andrade conta que o clima inicial da CPI era de
crítica dos parlamentares — mas que ao longo das sessões a opinião dos
congressistas mudou, e muitos viraram entusiastas do projeto nuclear
brasileiro.
O presidente da CPI
era Itamar Franco, que anos depois se tornaria presidente brasileiro. Em um
livro de memórias, Franco diz que a CPI concluiu que o programa oficial nuclear
brasileiro fora um fracasso, mas que os projetos paralelos foram bem-sucedidos
em aumentar a capacidade tecnológica brasileira.
Andrade e Patti
dizem que o projeto paralelo da Marinha, conduzido pelo almirante Othon Luiz
Pinheiro da Silva, foi extremamente bem-sucedido.
O objetivo inicial
era desenvolver submarinos com propulsão nuclear, mas o projeto civil militar
do Ipen e Marinha foi mais longe e levou o Brasil a dominar a capacidade de enriquecer
urânio através da tecnologia da ultracentrifugação.
Em menos de oito
anos, o Brasil passou a dominar essa tecnologia, que é secreta e não pode ser
inspecionada por inspetores internacionais. Em 1987 o Brasil anunciou sua
capacidade ao mundo.
"Quando a
notícia vazou, os EUA ficaram enlouquecidos", diz Andrade.
O feito só foi
feito graças à não participação do Brasil no tratado de não-proliferação
nuclear, que teria proibido qualquer iniciativa do tipo.
Mesmo não fazendo
parte do restrito clube de nove países com bombas atômicas, o Brasil é hoje
parte de outro seleto grupo.
"O Brasil é um
dos poucos países do mundo que tem jazidas de urânio e tem essa capacidade de
produção de combustível nuclear", afirma Patti.
·
Não-proliferação
Se o Brasil
conseguiu desenvolver tantos projetos nucleares sem dar satisfações à
comunidade internacional, porque o Brasil assinou em 1998 o Tratado de
Não-Proliferação, abrindo mão dessa independência?
Segundo Patti, o
Brasil aderiu ao acordo por quatro motivos diferentes. Primeiro, a
redemocratização e um pacto nacional de apenas desenvolver energia nuclear com
fins pacíficos.
Segundo, uma
aproximação com a Argentina, com fiscalização mútua dos programas nucleares dos
dois países. Para que essas fiscalizações ocorressem, tanto Brasil como
Argentina precisaram renunciar às suas intenções de desenvolver armas
nucleares.
Terceiro, o mundo
abandonou a ideia de desenvolvimento de artefatos nucleares para fins pacíficos
— o que vinha sendo usado por outros países.
E quarto por que o Tratado
de Não-Proliferação tenha uma adesão quase universal nos anos 1990. O custo de
adesão ao tratado pelo Brasil já não era muito alto, porque naquele momento o
Brasil já tinha desenvolvido suficientemente seu conhecimento nuclear.
Nos últimos anos, a
diplomacia brasileira vem se destacando por esforços de desarmamento nuclear no
mundo.
Dentro da sociedade
brasileira, o debate sobre o desenvolvimento de armas nucleares não está sequer
na pauta.
A declaração mais
recente sobre o assunto foi dada em 2019 pelo então presidente da Comissão de
Relações Exteriores da Câmara, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL/SP).
Ele defendeu que o Brasil discutisse a saída do Tratado de Não-Proliferação —
para ter a liberdade de desenvolver programas nucleares próprios.
"A gente sabe
que se o Brasil quiser atropelar essa convenção tem uma série de sanções. É um
tema muito complicado, mas eu acredito que um dia possa voltar ao debate
aqui", disse Eduardo Bolsonaro em uma reunião da comissão.
Em 2022, a Fundação
Getúlio Vargas fez uma pesquisa de opinião com 2 mil brasileiros sobre o apoio
à uma bomba atômica do Brasil.
Apenas 25% dos
entrevistados se manifestaram em favor de uma bomba brasileira. No caso de o
Brasil ser ameaçado por um país estrangeiro o apoio subia para 47%.
Caso o Brasil
decidisse hoje em dia abandonar o Tratado de Não-Proliferação, ele estaria em
condições tecnológicas de desenvolver sua bomba atômica?
Carlo Patti diz que
não há dados suficientes para se saber isso, com base nos documentos
disponíveis publicamente.
Fonte: BBC News
Brasil
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