Neoconservadorismo e a ofensiva
antigênero: o que está em jogo (risco) no Congresso este ano?
O ano legislativo no Congresso Nacional se inicia com
muitas promessas de combate à “polarização” e à “radicalidade”, com foco na
pauta econômica por parte dos novos presidentes da Câmara, Hugo Motta
(Republicanos/PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União/AP). Ao mesmo tempo, a
senadora Damares Alves (Republicanos/DF) é indicada para presidir a Comissão de
Direitos Humanos do Senado. Mas o que isso quer dizer para as mulheres, as
meninas e as pessoas que gestam? O que pode estar em jogo neste ano
legislativo?
O Congresso vem ganhando mais poder nos últimos anos.
Hoje os/as deputados/as têm maior acesso ao orçamento público e de um capital
político diferente de outros momentos. Nesse contexto, a extrema direita avança
compondo o Congresso mais conservador da história republicana, em que o
retrocesso dos direitos sexuais reprodutivos, em especial, o direito ao aborto
é uma das principais bandeiras, tendo prejudicado os direitos das mulheres e
até mesmo das crianças e adolescentes. Além disso, a persistente baixa representatividade
feminina na Mesa Diretora da Câmara Federal em 2025 reflete o contínuo desafio
da participação das mulheres nos espaços de poder. Com apenas uma parlamentar
mulher ocupando cargo na direção da Casa, a deputada Delegada Katarina
(PSD/SE), a sub-representação feminina reforça a desigualdade na tomada de
decisões e limita a perspectiva de avanços em pautas essenciais para a equidade
de gênero.
Outro ponto de destaque no cenário político é a eleição
de Trump, nos Estados Unidos, com propostas eugenistas, racistas e xenofóbicas
de alto controle reprodutivo, com quem muitos dos parlamentares de direita e de
extrema direita brasileiros têm identificação política – o que fortalece ainda
mais esse movimento transnacional antigênero. O avanço da extrema direita e do
neoconservadorismo no Brasil gera análises políticas que apontam o
enfraquecimento do próprio governo, o que respinga em suas articulações dentro
do Congresso. No começo do governo Lula, acompanhamos importantes acenos feitos
pelo Ministério da Saúde como a revogação de resoluções bolsonaristas que
dificultavam ou ameaçavam o direito ao aborto legal e os direitos reprodutivos
de forma mais ampla, por exemplo. De todo modo, no início do segundo ano,
observamos uma mudança de cenário. Nos primeiros meses de 2024, houve
publicação de atualização de nota técnica sobre a interrupção da gestação acima
das 22 semanas, entretanto as articulações da oposição dentro do Congresso,
quase que em tempo real, pressionaram o governo a recuar. E o governo recuou, tirando
a nota de circulação.
Vale destacar que ainda que seja fundamental defender
um governo que pactua com a democracia e vem de longa trajetória nessa luta,
inclusive na defesa dos direitos das minorias representativas; o que veio
ficando nítido, infelizmente, é um cenário do Executivo enfraquecido, sem
disponibilidade para colocar nossas pautas como prioritárias. Na Assembleia que
discutiu votar a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda), que visa fortalecer o sistema garantidor de direitos que
atende crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, fortalecendo o
acesso ao aborto legal (construída também junto à #CampanhaCriançaNãoéMãe), a
Casa Civil teve papel central de convocação para que os ministérios estivessem
presentes, em peso, e votassem contra a resolução.
A infância sempre ocupou um papel central na agenda da
extrema direita no Brasil e no mundo, sendo tratada como um dos principais
eixos de disputa ideológica e cultural. Para a senadora Damares Alves
(Republicanos/DF), essa pauta se consolidou como uma de suas principais
bandeiras desde sua atuação como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos no governo Bolsonaro. Tal gestão foi marcada pelo antifeminismo e pela
dissolução de pautas fundamentais para as mulheres, como, por exemplo, o
desmonte institucional de órgãos públicos, conselhos e programas. Durante a
atuação de Damares como ministra, houve uma redução no orçamento para estrutura
de programas voltados à proteção e autonomia das mulheres, incluindo políticas
de combate à violência de gênero. Um exemplo disso foi o fatídico
enfraquecimento do Ligue 180: canal de denúncias para mulheres vítimas de
violência teve sua divulgação reduzida, foi aglutinado ao Disque 100 e perdeu
relevância no governo Bolsonaro. Além disso, em seu discurso era presente a
deslegitimação do feminismo: Damares atacava frequentemente o movimento
feminista, alegando que ele “não representa as mulheres brasileiras” e
associando-o à “ideologia de gênero”. Até mesmo a partir da desconsideração dos
casos de feminicídio, a ministra minimizou o problema da violência contra as
mulheres, afirmando que a pauta era exagerada e culpando as mulheres pelas
agressões sofridas.
Com forte trânsito nas igrejas evangélicas, Damares
construiu sua carreira política explorando temas como combate à suposta
“ideologia de gênero”, defesa da família tradicional e denúncias de abusos
infantis, muitas vezes envoltas em narrativas alarmistas. Sua atuação gerou
embates acalorados com setores progressistas e organizações de direitos
humanos, consolidando-a como uma das vozes mais influentes da extrema direita
cristã no Brasil. Em 2024, um dos principais embates em torno dessa questão
girou em torno da campanha “Criança Não é Mãe”, puxada pelas organizações e
movimentos feministas para conter o PL 1904/24 (conhecido como PL do Estupro),
que denunciou a grave realidade da gravidez infantil no Brasil e defendeu o
direito ao aborto nos casos previstos em lei, especialmente para meninas
vítimas de estupro. A iniciativa foi amplamente apoiada por organizações de
direitos humanos e das infâncias, que alertaram para a necessidade de garantir
proteção e assistência às meninas em situação de violência.
No entanto, a campanha também enfrentou forte resistência
da extrema direita, que buscou deslegitimá-la sob a justificativa de uma
suposta defesa da vida desde a concepção. Damares Alves, fiel à sua trajetória,
foi uma das principais vozes contrárias à iniciativa, reforçando o discurso
contra o aborto e mobilizando sua base evangélica para barrar avanços na
garantia de direitos reprodutivos. Esse embate escancarou, mais uma vez, as
profundas tensões em torno da pauta da infância no Brasil, evidenciando a
disputa entre perspectivas conservadoras e progressistas sobre direitos
fundamentais de meninas e adolescentes. Inclusive, a pedido da senadora
Damares, a Justiça Federal do Distrito Federal anulou a referida Resolução do
Conanda. Após intensa articulação das organizações e dos movimentos que compõem
a campanha #CriançaNãoÉMãe com o Gabinete Assessoria Jurídica Organizações
Populares (GAJOP), integrante do Conanda, foi interposto recurso, provido pelo
Tribunal Regional Federal, o que permitiu a publicação da resolução no Diário
Oficial de 8 de janeiro de 2025. Entretanto, a resolução ainda está sob risco
até mesmo do Congresso Nacional, que tem reagido com indignação e estratégias
legislativas para sustá-la, como o Projeto de Decreto Legislativo, apresentado
pela deputada Chris Tonietto (PL/RJ), que associa o reconhecimento do direito
ao aborto legal para crianças e adolescentes estupradas feito pela resolução
como “deturpação ideológica”.
Acompanhamos no último ano legislativo um acirramento
das ofensivas antigênero, com destaque para os ataques à agenda antiaborto na
Câmara dos Deputados. Vivenciamos a aprovação do requerimento de urgência do PL
1904/24, já mencionado acima, e ainda pior, a admissibilidade da PEC 164/12 na
Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) com grande vantagem de
votos. Essa Proposta de Emenda à Constituição ameaça o direito ao aborto legal
mesmo em caso de risco de vida e estupro, assim como a fertilização in vitro e
a pesquisa com células tronco embrionárias. Há muitas ameaças que visam
retroagir com os nossos direitos na boca do gol, incluindo a possibilidade de
formação de Comissão Especial para se discutir a PEC 164/12, o próprio PL do
Estupro que pode entrar em votação no Plenário a qualquer momento, e a votação
do PDL 343/23 na CCJ do
Senado, que versa sobre plebiscito de aborto. Essa proposta assinada por outros
45 senadores foi feita pelo senador Rogerio Marinho (PL-RN), hoje líder da
oposição na Casa. Isso para dizer que apesar de a conjuntura nesta Casa
legislativa ser um pouco melhor, também espelha o estrago antidemocrático que
impacta os direitos das mulheres. Não por acaso, Damares será a futura
presidenta da Comissão de Direitos Humanos (CDH), o que é um forte exemplo da
forte herança bolsonarista no parlamento.
Hoje tramitam no Congresso mais de cem proposições de
risco para o direito ao aborto, segundo levantamento do CFEMEA (2024), além
disso pipocam proposições legislativas que buscam retroagir com leis e
políticas da agenda da violência contra as mulheres, população LGBTQIA+,
indígena e negra no Brasil. Diante desse cenário crítico, as figuras de Hugo
Motta e Davi Alcolumbre são bastante estratégicas para conter estragos
promovidos pela composição totalmente desfavorável. Alcolumbre parece ter
resistido a se relacionar com o tema dos direitos reprodutivos; entretanto,
Motta foi o deputado apoiado oficialmente por Lira e já foi, inclusive,
considerado pupilo de Eduardo Cunha, autor da PEC 164/12. Ele é apoiado por
Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), co-autor do PL do Estupro, e tem grande diálogo
com a bancada evangélica. Tratando-se das disputas em torno do aborto, o
parlamentar é co-autor de requerimento de urgência para apreciação
do Projeto de Lei 2.611/2021, que institui o “Dia Nacional do Nascituro e de
Conscientização sobre os Riscos do Aborto, a ser comemorado, anualmente, em 08
de outubro”, além disso, também é co-autor de pedidos de homenagem ao Dia do
Nascituro.
Na mídia, desde a posse, os presidentes têm feito falas
amistosas, se colocando contrários à polarização, tendo o objetivo de unir os
poderes: observa-se um movimento mais ao que se imagina do que seria um
“centro”, o que dialoga também com o que vimos nos resultados das eleições
municipais. Discursos e partidos ao Centro tiveram melhor desempenho nas
disputas pelas prefeituras. “Essas pautas ideológicas, as pautas de costumes,
penso eu, que não estão na prioridade do dia. É um debate interessante, às
vezes até motiva mais do que debater coisas mais burocráticas, mas o que é que
temos visto ao longo do tempo? Essas pautas muito mais dividem o país do que
trazem benefícios imediatos”, analisou Hugo Motta. Nesse
pronunciamento, ele não disse que o aborto, ou os direitos sexuais e
reprodutivos de forma mais ampla, são “pauta ideológica”, mas dá para imaginar
que essa é a agenda a que ele se refere. É preciso prestar atenção. Por mais
que Motta sinalize que não irá avançar (o que pode ser verdade ou não: não é
possível antecipar a conjuntura), essa forma de falar já traz em si uma
desqualificação da agenda dos direitos reprodutivos. Essa fala os descola da
perspectiva de direitos, de saúde, de dignidade, importante para a cidadania
das mulheres, meninas e pessoas que gestam. Dessa forma, esse discurso de
esvaziamento se aproxima muito mais da extrema direita do que do campo
progressista.
Diante desse cenário, é evidente que os direitos das
mulheres, das meninas e das pessoas que gestam seguem sob forte ameaça no
Congresso Nacional. A composição conservadora e as articulações da extrema
direita impõem desafios cada vez mais urgentes, exigindo mobilização constante
da sociedade civil e das organizações de direitos humanos. Inclusive, fica
ainda mais nítido que a própria concepção sobre “direitos humanos” está em
disputa, tendo em vista a indicação de Damares para presidir a CDH do Senado,
lugar histórico de debate sobre direitos das populações em maior situação de
vulnerabilidade no Brasil. Essa escolha está longe de cumprir com a promessa da
despolarização do Congresso que tem sido dita e repetida pelos novos
presidentes. Por fim, como mais um retrato das disputas nada sutis da
linguagem, a tentativa de esvaziar o debate sobre os direitos reprodutivos como
“pauta ideológica” não apenas desqualifica sua importância, mas também favorece
retrocessos perigosos para a democracia brasileira.
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