quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Neoconservadorismo e a ofensiva antigênero: o que está em jogo (risco) no Congresso este ano?

O ano legislativo no Congresso Nacional se inicia com muitas promessas de combate à “polarização” e à “radicalidade”, com foco na pauta econômica por parte dos novos presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos/PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União/AP). Ao mesmo tempo, a senadora Damares Alves (Republicanos/DF) é indicada para presidir a Comissão de Direitos Humanos do Senado. Mas o que isso quer dizer para as mulheres, as meninas e as pessoas que gestam? O que pode estar em jogo neste ano legislativo?

O Congresso vem ganhando mais poder nos últimos anos. Hoje os/as deputados/as têm maior acesso ao orçamento público e de um capital político diferente de outros momentos. Nesse contexto, a extrema direita avança compondo o Congresso mais conservador da história republicana, em que o retrocesso dos direitos sexuais reprodutivos, em especial, o direito ao aborto é uma das principais bandeiras, tendo prejudicado os direitos das mulheres e até mesmo das crianças e adolescentes. Além disso, a persistente baixa representatividade feminina na Mesa Diretora da Câmara Federal em 2025 reflete o contínuo desafio da participação das mulheres nos espaços de poder. Com apenas uma parlamentar mulher ocupando cargo na direção da Casa, a deputada Delegada Katarina (PSD/SE), a sub-representação feminina reforça a desigualdade na tomada de decisões e limita a perspectiva de avanços em pautas essenciais para a equidade de gênero.

Outro ponto de destaque no cenário político é a eleição de Trump, nos Estados Unidos, com propostas eugenistas, racistas e xenofóbicas de alto controle reprodutivo, com quem muitos dos parlamentares de direita e de extrema direita brasileiros têm identificação política – o que fortalece ainda mais esse movimento transnacional antigênero. O avanço da extrema direita e do neoconservadorismo no Brasil gera análises políticas que apontam o enfraquecimento do próprio governo, o que respinga em suas articulações dentro do Congresso. No começo do governo Lula, acompanhamos importantes acenos feitos pelo Ministério da Saúde como a revogação de resoluções bolsonaristas que dificultavam ou ameaçavam o direito ao aborto legal e os direitos reprodutivos de forma mais ampla, por exemplo. De todo modo, no início do segundo ano, observamos uma mudança de cenário. Nos primeiros meses de 2024, houve publicação de atualização de nota técnica sobre a interrupção da gestação acima das 22 semanas, entretanto as articulações da oposição dentro do Congresso, quase que em tempo real, pressionaram o governo a recuar. E o governo recuou, tirando a nota de circulação.

Vale destacar que ainda que seja fundamental defender um governo que pactua com a democracia e vem de longa trajetória nessa luta, inclusive na defesa dos direitos das minorias representativas; o que veio ficando nítido, infelizmente, é um cenário do Executivo enfraquecido, sem disponibilidade para colocar nossas pautas como prioritárias. Na Assembleia que discutiu votar a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que visa fortalecer o sistema garantidor de direitos que atende crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, fortalecendo o acesso ao aborto legal (construída também junto à #CampanhaCriançaNãoéMãe), a Casa Civil teve papel central de convocação para que os ministérios estivessem presentes, em peso, e votassem contra a resolução.

A infância sempre ocupou um papel central na agenda da extrema direita no Brasil e no mundo, sendo tratada como um dos principais eixos de disputa ideológica e cultural. Para a senadora Damares Alves (Republicanos/DF), essa pauta se consolidou como uma de suas principais bandeiras desde sua atuação como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo Bolsonaro. Tal gestão foi marcada pelo antifeminismo e pela dissolução de pautas fundamentais para as mulheres, como, por exemplo, o desmonte institucional de órgãos públicos, conselhos e programas. Durante a atuação de Damares como ministra, houve uma redução no orçamento para estrutura de programas voltados à proteção e autonomia das mulheres, incluindo políticas de combate à violência de gênero. Um exemplo disso foi o fatídico enfraquecimento do Ligue 180: canal de denúncias para mulheres vítimas de violência teve sua divulgação reduzida, foi aglutinado ao Disque 100 e perdeu relevância no governo Bolsonaro. Além disso, em seu discurso era presente a deslegitimação do feminismo: Damares atacava frequentemente o movimento feminista, alegando que ele “não representa as mulheres brasileiras” e associando-o à “ideologia de gênero”. Até mesmo a partir da desconsideração dos casos de feminicídio, a ministra minimizou o problema da violência contra as mulheres, afirmando que a pauta era exagerada e culpando as mulheres pelas agressões sofridas.

Com forte trânsito nas igrejas evangélicas, Damares construiu sua carreira política explorando temas como combate à suposta “ideologia de gênero”, defesa da família tradicional e denúncias de abusos infantis, muitas vezes envoltas em narrativas alarmistas. Sua atuação gerou embates acalorados com setores progressistas e organizações de direitos humanos, consolidando-a como uma das vozes mais influentes da extrema direita cristã no Brasil. Em 2024, um dos principais embates em torno dessa questão girou em torno da campanha “Criança Não é Mãe”, puxada pelas organizações e movimentos feministas para conter o PL 1904/24 (conhecido como PL do Estupro), que denunciou a grave realidade da gravidez infantil no Brasil e defendeu o direito ao aborto nos casos previstos em lei, especialmente para meninas vítimas de estupro. A iniciativa foi amplamente apoiada por organizações de direitos humanos e das infâncias, que alertaram para a necessidade de garantir proteção e assistência às meninas em situação de violência.

No entanto, a campanha também enfrentou forte resistência da extrema direita, que buscou deslegitimá-la sob a justificativa de uma suposta defesa da vida desde a concepção. Damares Alves, fiel à sua trajetória, foi uma das principais vozes contrárias à iniciativa, reforçando o discurso contra o aborto e mobilizando sua base evangélica para barrar avanços na garantia de direitos reprodutivos. Esse embate escancarou, mais uma vez, as profundas tensões em torno da pauta da infância no Brasil, evidenciando a disputa entre perspectivas conservadoras e progressistas sobre direitos fundamentais de meninas e adolescentes. Inclusive, a pedido da senadora Damares, a Justiça Federal do Distrito Federal anulou a referida Resolução do Conanda. Após intensa articulação das organizações e dos movimentos que compõem a campanha #CriançaNãoÉMãe com o Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (GAJOP), integrante do Conanda, foi interposto recurso, provido pelo Tribunal Regional Federal, o que permitiu a publicação da resolução no Diário Oficial de 8 de janeiro de 2025. Entretanto, a resolução ainda está sob risco até mesmo do Congresso Nacional, que tem reagido com indignação e estratégias legislativas para sustá-la, como o Projeto de Decreto Legislativo, apresentado pela deputada Chris Tonietto (PL/RJ), que associa o reconhecimento do direito ao aborto legal para crianças e adolescentes estupradas feito pela resolução como “deturpação ideológica”.

Acompanhamos no último ano legislativo um acirramento das ofensivas antigênero, com destaque para os ataques à agenda antiaborto na Câmara dos Deputados. Vivenciamos a aprovação do requerimento de urgência do PL 1904/24, já mencionado acima, e ainda pior, a admissibilidade da PEC 164/12 na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) com grande vantagem de votos. Essa Proposta de Emenda à Constituição ameaça o direito ao aborto legal mesmo em caso de risco de vida e estupro, assim como a fertilização in vitro e a pesquisa com células tronco embrionárias. Há muitas ameaças que visam retroagir com os nossos direitos na boca do gol, incluindo a possibilidade de formação de Comissão Especial para se discutir a PEC 164/12, o próprio PL do Estupro que pode entrar em votação no Plenário a qualquer momento, e a votação do PDL 343/23 na CCJ do Senado, que versa sobre plebiscito de aborto. Essa proposta assinada por outros 45 senadores foi feita pelo senador Rogerio Marinho (PL-RN), hoje líder da oposição na Casa. Isso para dizer que apesar de a conjuntura nesta Casa legislativa ser um pouco melhor, também espelha o estrago antidemocrático que impacta os direitos das mulheres. Não por acaso, Damares será a futura presidenta da Comissão de Direitos Humanos (CDH), o que é um forte exemplo da forte herança bolsonarista no parlamento.

Hoje tramitam no Congresso mais de cem proposições de risco para o direito ao aborto, segundo levantamento do CFEMEA (2024), além disso pipocam proposições legislativas que buscam retroagir com leis e políticas da agenda da violência contra as mulheres, população LGBTQIA+, indígena e negra no Brasil. Diante desse cenário crítico, as figuras de Hugo Motta e Davi Alcolumbre são bastante estratégicas para conter estragos promovidos pela composição totalmente desfavorável. Alcolumbre parece ter resistido a se relacionar com o tema dos direitos reprodutivos; entretanto, Motta foi o deputado apoiado oficialmente por Lira e já foi, inclusive, considerado pupilo de Eduardo Cunha, autor da PEC 164/12. Ele é apoiado por Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), co-autor do PL do Estupro, e tem grande diálogo com a bancada evangélica. Tratando-se das disputas em torno do aborto, o parlamentar é co-autor de requerimento de urgência para apreciação do Projeto de Lei 2.611/2021, que institui o “Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto, a ser comemorado, anualmente, em 08 de outubro”, além disso, também é co-autor de pedidos de homenagem ao Dia do Nascituro.

Na mídia, desde a posse, os presidentes têm feito falas amistosas, se colocando contrários à polarização, tendo o objetivo de unir os poderes: observa-se um movimento mais ao que se imagina do que seria um “centro”, o que dialoga também com o que vimos nos resultados das eleições municipais. Discursos e partidos ao Centro tiveram melhor desempenho nas disputas pelas prefeituras. “Essas pautas ideológicas, as pautas de costumes, penso eu, que não estão na prioridade do dia. É um debate interessante, às vezes até motiva mais do que debater coisas mais burocráticas, mas o que é que temos visto ao longo do tempo? Essas pautas muito mais dividem o país do que trazem benefícios imediatos”, analisou Hugo Motta. Nesse pronunciamento, ele não disse que o aborto, ou os direitos sexuais e reprodutivos de forma mais ampla, são “pauta ideológica”, mas dá para imaginar que essa é a agenda a que ele se refere. É preciso prestar atenção. Por mais que Motta sinalize que não irá avançar (o que pode ser verdade ou não: não é possível antecipar a conjuntura), essa forma de falar já traz em si uma desqualificação da agenda dos direitos reprodutivos. Essa fala os descola da perspectiva de direitos, de saúde, de dignidade, importante para a cidadania das mulheres, meninas e pessoas que gestam. Dessa forma, esse discurso de esvaziamento se aproxima muito mais da extrema direita do que do campo progressista.

Diante desse cenário, é evidente que os direitos das mulheres, das meninas e das pessoas que gestam seguem sob forte ameaça no Congresso Nacional. A composição conservadora e as articulações da extrema direita impõem desafios cada vez mais urgentes, exigindo mobilização constante da sociedade civil e das organizações de direitos humanos. Inclusive, fica ainda mais nítido que a própria concepção sobre “direitos humanos” está em disputa, tendo em vista a indicação de Damares para presidir a CDH do Senado, lugar histórico de debate sobre direitos das populações em maior situação de vulnerabilidade no Brasil. Essa escolha está longe de cumprir com a promessa da despolarização do Congresso que tem sido dita e repetida pelos novos presidentes. Por fim, como mais um retrato das disputas nada sutis da linguagem, a tentativa de esvaziar o debate sobre os direitos reprodutivos como “pauta ideológica” não apenas desqualifica sua importância, mas também favorece retrocessos perigosos para a democracia brasileira.

 

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